DOGMA DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O INTERESSE PRIVADO: NOVAS CONCEPÇÕES QUE RELAVIZAM E/OU NEGAM TAL SUPREMACIA.

Meirislei Gama Paiva1

Hugo Passos2

RESUMO

Análise do dogma da supremacia do interesse público sobre o privado, a partir da ótica das relações interativas, e não excludentes, de tais interesses; e dos direitos fundamentais do indivíduo. Abordagem sobre elementos estruturantes do Estado de Direito, com vistas a se ter melhor compreensão do cabimento de tal supremacia, e ainda, se esta não tem sido utilizada como meio autoritário de atuação estatal, que restringe direitos fundamentais. Averigua-se a tese defendida de que não existe fundamento constitucional para que seja aceita a supremacia do interesse público sobre o privado de forma indiscriminada. 

PALAVRAS-CHAVE

Direito Público. Direito Administrativo. Interesse Público. Interesse privado. Supremacia.

INTRODUÇÃO

O Direito Administrativo tem como fundamento, além dos princípios da legalidade, publicidade, motivação, impessoalidade, irrenunciabilidade, o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. No campo administrativo, predomina a desigualdade nas relações entre administrador e administrados, enquanto que, no campo privado, há igualdade nas relações. Esse arcabouço, uma vez mal compreendido ou pouco analisado, pode suscitar o falso entendimento, de que haja uma relação de Poder dominante do Estado, onde ele tudo pode, cabendo, aos particular, a submissão irrestrita. No entanto, doutrinadores têm se posicionado, no sentido de suprimir esse entendimento errôneo, utilizando, para isso, a análise da finalidade do Estado Democrático de Direito.

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1 Aluna do 7° período do curso do Direito da Unidade de Ensino Dom Bosco (UNDB) ([email protected]);

2  Professor da disciplina Direito Administrativo da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB)

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A partir dos fundamentos, dado pela Constituição Brasileira, tem-se o entendimento de que a função do Estado é a de realizar o atendimento das necessidades coletivas, atender ao interesse comum; ele que ele é instituído pelo povo para representá-lo não tendo, portanto, vida em si mesmo, vida própria mas, assume um status de poder-dever, diante da comunidade que o legitima. E, somente, neste sentido é que se pode compreender a supremacia do interesse público sobre o privado, na medida em que há íntima relação entre tais interesses, onde o interesse público se traduz, na verdade, como a expressão pública da vontade das partes, para realização do bem comum; e não como meio de dominação, de subjugação do aparelho estatal sobre os particulares, restringindo-lhes direitos fundamentais.

Muitas têm sido as críticas, à consagrada supremacia do interesse público sobre o privado, visto ter sido tomada como forma autoritária de atuação estatal e como meio de restrição de direitos fundamentais individuais. O presente estudo tem como finalidade verificar a leitura que tem sido feita, atualmente, sobre essa supremacia de um interesse sobre o outro. Procura-se, para tanto, fazer breve análise sobre a relação existente entre esses interesses, tendo como base, a função declarada do Estado compreendida no modelo de Estado Democrático de Direito.

1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O VÍNCULO ENTRE INTERESSE PÚBLICO E PRIVADO

O princípio do interesse público está expressamente previsto no art. 2° caput da Lei n° 9.784/99, e especificado no parágrafo único, com a exigência de "atendimento a fins de interesse geral vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei".

Uma das maneiras de se distinguir direito público do direito privado tem sido aquela que leva em conta o interesse que se tem em vista proteger; a partir dessa visão, o direito privado conteria normas de interesse individual e, o direito público, normas de interesse publico (DI PIETRO, p.65).

No entanto, esse critério não é suficiente, nem absoluto, uma vez que existem normas de direito privado que defendem o interesse público - como as concernentes ao Direito de Família - e existem normas de direito público voltadas à defesa dos interesses dos particulares - como as normas de segurança, saúde pública e censura - disposições em geral

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atinentes ao poder de polícia do Estado e normas do capítulo da Constituição consagrado aos direitos fundamentais do homem (Di. Pietro, p.65).

É comum se pensar o direito público como algo contraposto aos interesses individuais. No entanto, ele pode ser compreendido como o interesse do todo, do conjunto social, o que não significa dizer que seja a somatória dos interesses individuais (MELLO, p.56).

O falso antagonismo entre o interesse das partes e o interesse do todo propicia a errônea suposição de que o interesse público seja autônomo, desvinculando dos interesses de cada uma das partes que o compõe. Quando, na verdade, o interesse público se revela como função qualificada dos interesses das partes, ou seja, nada mais que uma forma específica da manifestação da vontade das partes. Sendo, portanto, a dimensão pública dos interesses de cada indivíduo, enquanto partícipe da sociedade. Restando, afastada, dessa forma, a inconcebível contraposição dos mesmos (MELLO, 2006, p.56).

Quando se analisa, por exemplo, o instituto da propriedade priva e de sua função social. Interesse privados e coletivos, nesta sede, não se excluem. Ambos, a um só tempo, encontram-se albergados numa síntese dialética: a propriedade nem se presta apenas para satisfazer os interesses exclusivos do proprietário e nem tampouco justifica um sentido de coletivização ou funcionalização absoluta de sua utilização (SCHIER, 2004, p.180).

O entendimento, acima exposto, não elimina a possibilidade de o interesse público se voltar contra o interesse de um indivíduo que, diante do instituto da desapropriação, por exemplo, não queria se expropriado. No entanto, tal indivíduo enquanto partícipe da sociedade não poderia se opor ao dito instituto, visto ser ele, em determinadas situações, necessário e utilizado em seu próprio favor. Pois, através dele, há possibilidade de abertura de ruas, estradas, escolas, hospitais, hidroelétricas, canalizações necessárias aos serviços públicos e etc. Convém frisas, que existe, para tal ato, a forma prescrita em lei, não podendo ser realizado sem a observância do princípio da legalidade que, em termos de administração pública, é parâmetro e controle do poder estatal (MELLO, p.58).

Confirmando essa necessidade do atendimento ao princípio da legalidade, como meio proteção e controle dos cidadão em fase da atuação estatal, tem-se o atendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello (2006, p, 42), ao falar sobre as bases ideológicas do Direito Administrativo, quando ele diz que:

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O Direito Administrativo nasce com o Estado de Direito (...) é o direito que regula o comportamento da Administração. É  ele que disciplina as relações entre administração e administrados, e só poderia mesmo existir a partir do instante em que o Estado, como qualquer, estivesse enclausurado pela ordem jurídica e restrito a mover-se dentro do âmbito desse mesmo quadro normativo estabelecido genericamente. Portanto, O Direito Administrativo não é um direito criado para subjugar os interesses ou direitos dos cidadão aos do Estado. É, pelo contrário, um direito que surge exatamente para regular a conduta do Estado e  mantê-la afivelada ás disposições legais, dentro desse espírito protetor do cidadão contra descomedimentos dos detentores do exercício do Poder Estatal. Ele é, por excelência, o Direito defensivo do cidadão o que não impede, evidentemente, que componha, como tem que compor, as hipóteses em que os interesses individuais hão de se refletir aos interesses do todo, exatamente para a realização dos projetos de toda a comunidade, expressão no texto legal.

O referido autor, ainda, menciona a visão de Léo Duguit sobre o Estado, compreendido como conjunto de serviços públicos; dando enfoque ao deve servir, e não ao poder de impor. Aqui, o Estado seria visto como alguém que gere negócios de terceiros. Essa idéia guarda relação como o dispostos no art. 1°, §1º, do texto constitucional brasileiro, em que o povo é o titular do poder, cabendo ao estado o papel de representá-lo, naquilo que foi autorizado. Portanto, o poder, conferido ao Estado, é instrumento que deve ser utilizado somente, como via necessária e indispensável, para a consecução do bem comum, Ou seja, não cabe  mais a relação de outrora, antes do constitucionalismo, entre Estado e administrados, onde de um lado estava o soberano e do outro, os súditos, em que o poder era centrado na pessoa do rei como aquele que não pode errar; aquele que se impõe a todos sem compensação. Hoje, é necessária a total submissão á ordem jurídica á ordem jurídica constitucionalizada (MELLO, 2006, p,42).

Observa-se que a  relação existente entre interesse público e privado não é de contraposição. Seguindo essa linha de pensamento, tem-se o seguinte pensamento;

(...) a regra, sempre, é a unidade. Interesses públicos e privados não se contradizem, não se negam, não se excluem. Tais interesses, antes harmonizam-se. A realização de um importa na realização do outro. Devem ser vistas como excepcionais as situações de exclusão mútua. Neste caso, a opção do constituinte originário, previamente, pela prevalência de um ou de outro, não determina a existência implícita de um princípio de supremacia formal. Trata-se, neste caso, apenas de um critério de solução a priori de conflitos que poderão nas concreta (SCHIER, 2004, p.178).

 

2. DISCUSSÃO QUE QUESTIONA A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO.

 

 

          

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O principio da supremacia do interesse público é o corolário do direito público. Ele é observado desde que a lei é elaborada até o momento de sua aplicação. Este princípio vincula a autoridade administrativa em todas as suas decisões. A justificativa para sua existência está no fato de que o Direito deixou de atender apenas as garantias do individuo e passou a ser instrumento de consecução da justiça social, do bem comum, do bem-estar coletivo (DI PIETRO, 2011, p. 65).

O Estado, a partir do modelo constitucional de Estado de direito social, teve ampliada, sobremaneira, a sua atuação para atender as necessidades coletivas. Portanto, o Estado está voltado a atender necessidades de ordem pública, ordem econômica e social. Assim, como também é, cada vez mais, crescente a preocupação com os ditos interesses difusos, como o meio ambiente e o patrimônio histórico e artístico nacional. Tudo isso, amplia a atuação estatal como u poder-dever, que quando não exercido resulta na responsabilidade do mesmo pela omissão, pois tal postura enseja prejuízo ao interesse público (DI PIETRO, 2011, p.65).

Atualmente, tem-se discutido a supremacia do interesse público sob a ótica dos direitos fundamentais, pois estes, em nome de tal interesse, têm sido restringidos pela atuação estatal autoritária, que, lançando mão de tal princípio, utiliza-o para a consecução de seus fins, sem, contudo, haver convergência para o respeito para garantias individuais e direito fundamentais. A situação se complica mais ainda, quando o Estado, desvinculado de sua razão de ser, transforma tudo o que toca em interesses, público. Ele não deve poder fazer o que lhe é mais cômodo e lhe aceite um legislador complacente. A pessoa tem direitos sobre os quais o Estado não dispõe, os direitos fundamentais devem reger a Lei fundamental. O Estado legitima-se e  justifica-se a partir dos direito fundamentais e não estes a partir daquele. Portanto, não deve o interesse público ser entronizado em patamar hierárquico superior ao ocupado pelos direitos e liberdades individuais (SCHIER, 2004, p. 167).

Sobre a prevalência do interesse público em relação ao privado, ou deste àquele Paulo Ricardo Schier (2004, p.176) diz que:

Quando a Lei fundamental opta, in abstrato, pela predominância do público sobre privado (por exemplo, como sucede no art. 5º inciso XXV) ou do privado sobre o público (como no caso art. 5º XI  ou XII), onde a regra é a inviolabilidade dos direitos

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privados, toma esta atitude como técnica de solução previa de colisão de direitos fundamentais. Quando a solução não é dada pela Constituição a concepção de unidade impede que se atribua uma resposta pronta em favor deste ou daquele  mormento como fazem aqueles que propugnam pro uma hierarquia quase absoluta do interesse público sobre  o privado.

A função de  unificação política se remete á idéia de unidade dos valores, de princípios, de interesses, e unidade, aqui, possui claramente o sentido de pluralidade de coexistência na diferença de interesses diversos , como o público e o privado, ora em harmonia sim, mas ora em conflito, e nesta última situação, por  certo, o sentido democrático da Constituição não deve optar pela prevalência de um ou de outro. A unidade pública/ privado deve remeter a solução de eventuais conflitos às dimensões concretas da vida.

Percebe-se, com o exposto acima, é que é salutar buscar a base constitucional  para entender, no caso, concreto, quem deve prevalecer  e não simplesmente sustentar a tese indiscriminada de existência de um principio de supremacia do interesse público sobre o privado. Segundo Paulo Ricardo Schier (2004, p.176), a idéia de supremacia do público só se verifica em algumas situações especificas e, sempre, dentro de condições definidas e limitadas constitucionalmente. Diz, ainda, que esse entendimento não compromete o regime jurídico do Direito Administrativo, pois, o princípio da tutela do interesse público é bastante para sustentá-la e este, sim, tem respaldo constitucional, é relativo e ponderável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS          

 

O elo que existe  entre interesses público e privado não permite que os mesmos sejam vistos de forma contraposta e sim com sentido de complementaridade. A exclusão do interesse particular em face do público deve ocorrer em situações excepcionais e nunca de forma a suprimir totalmente os direitos e liberdades individuais e sempre com a finalidade de promoção de bem comum, do bem-estar social.

O Estado Democrático, de Direito só pode realizar aquilo que está instituído em lei. Portanto, a lei serve de parâmetro e controle para a atuação estatal. Atuação esta, que põe os direitos fundamentais acima de qualquer lei. Cabe ao Estado, portanto, gravitar em trono do núcleo formado por esses direitos fundamentais. E, só assim, a supremacia do interesse público sobre o privado não será tomada como cláusula geral de restrição de direitos; Far-se-á a devida mensuração do interesse público, tanto no momento da elaboração da lei, quanto no de sua aplicação, mediante a técnica da ponderação dos princípios constitucionais e dos valores envolvidos, atendendo, dessa forma, a finalidade do Estado que é a de promover a justiça.

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Verifica-se que não há espaço para prevalência de um interesse público sobre o privado de forma indiscriminada, pois ora se tem a prevalência de um, ora de outro. Diante do conflito aparente entre um interesse e outro, a Constituição deve ser analisada como um sistema, em que haja diálogo entre os preceitos. Isso impedirá a constitucionalidade tanto das leis quanto dos atos normativos deve ser a base para que se tenha a promoção e o respeito dos direitos fundamentais, tanto individuais quanto coletivos, finalidade última do Estado Democrático de Direito.

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REFERÊNCIAS

MELLO DE, Celso Antônio Bandeira. Curso de direito administrativo. 21 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Curso de direito Administrativo. 24 ed. São Paulo: Atlas. 2011.

SCHIER, Paulo Ricardo. Ensaio sobre a supremacia do interesse público sobre o privado e o regime dos direitos fundamentais. Revista brasileira de direito público. Belo Horizonte: Forum, Ano 2. n.4 jan/fev, 2004, p.167-185.