DO WORLD TRADE CENTER AO REALENGO


Não tinha memória de quando começara a sentir aquela compulsão por doces. Parecia ser um daqueles registros que estão perdidos para sempre no arquivo morto da inconsciência. Quando criança, disso se lembrava bem, ele não liga-va muito para isso. Preferia salgadinhos. Sua mãe sempre brigava com ele por causa disso.
─Você só quer comer porcaria, né menino?
E daí? Ele gostava, e ela, embora vivesse pegando no pé dele por causa disso, no fundo não ligava, pois deixava que ele comesse quanto salgadinho quisesse e até os comprava quando ia ao supermercado.

Sua mãe. Que falta ela fazia. Toda vez que se lembrava dela, não conseguia reprimir as duas lágrimas quentes que lhe rolavam sobre a face, mas que eram secadas rapidamente, antes que alguém visse.
Odiava que alguém o visse chorando. Detestava qualquer manifestação que lembrasse sentimentalismo. Isso era coisa de boiola. Coisa de babaca. Coisa de menina.

Meninas gostam de doces? Perguntava a si mesmo, amiúde, achando que elas compartilhavam desse seu desejo compulsivo por esse tipo de guloseima.
Descobriu da pior forma que não. Uma vez, na escola, ofereceu um brigadeiro para uma garota da sala. Já fazia algum tempo que ele estava de olho nela. Era uma menina bonita, de cabelos louros, bem lisos, e grandes olhos azuis. Ela pintava os contornos deles como se fossem uma moldura. A pintura realçava o azul dos olhos dela e os fazia parecer maiores.
Gostava de ficar olhando para o rosto dela. Ela nunca reparou no interesse dele. Ou fez de conta que não reparava. Foi então que ele pensou que oferecer-lhe aquilo que ele mais gostava seria um meio seguro de se aproximar dela.
As pessoas sempre pensam que aquilo que as agrada deve agradar também aos outros. A sabedoria de que não existe um principio de identidade entre as pessoas nunca é a primeira descoberta que a gente faz. E também não há escola nem professor que nos ensine assim tão cedo, e como obrigação curricular, que uma pessoa é uma pessoa e outra pessoa é outra pessoa. Que elas são diferentes porque é assim que o mundo funciona. Que ele é um quebra cabeças cujas peças precisam ter diferentes contornos para poder ser devidamente encaixadas umas nas outras. Só assim os desenhos se completam.

A tentativa foi um desastre. A menina só faltou dar um tapa na cara dele. Primeiro ela o olhou com tanto nojo que ele não sabia se ela estava vendo nele um sapo, uma lesma ou um monte de merda. Depois disse um palavrão que ele jamais pensaria ouvir daqueles lábios que ele julgava tão encantadores. Imaginara que dali sairia um repertório de ternura e encantamento, nunca um projétil tão mortífero e destrutivo como aquele "tira essa merda da minha frente, seu babaca", que os lábios rosados da menina cuspiram para cima dele, como se aquela linda boquinha rubra, que ele comparava a uma cereja laqueada em mel, tivesse se transformado na boca do cano de uma arma fumegante que acabava de ser disparada queima a roupa contra o seu coração, matando instantaneamente a sua auto-estima.

Claro que não foi assim que a sua mente consciente registrou esse acontecimento. Ele acabara de fazer quinze anos. Sua linguagem de superfície, que é aquela linguagem que codifica as nossas memórias e resume o que aprendemos acerca das nossas experiências de vida, não sabia ainda construir essas metáforas. Para ele a sabedoria que a experiência com essa garota lhe transmitia estava nas caretas de desgosto e desprezo que ela fez, no rubor da raiva que mudou a coloração da pele rosada do rosto dela, e no tom ferino e mordaz da voz da menina.
Até então não percebera o quanto era arrastado o r da pronúncia dela.Nem o quanto machucava. Aquele "tira essa merrrda da minha frente" ficou martelando na cabeça dele vários dias. Era como se alguém lhe cutucasse uma ferida aberta.

Durante muitos dias sonhara sonhos recorrentes. Ás vezes eram canos fumegantes de revólveres, canhões, bazucas, e até bocas de vulcões vomitando lavas e fumaça com cheiro de merda pelo azul de um céu imaculado e inocente, que ele via. Outras vezes sonhava que andava por um jardim cheio de flores lindas e perfumadas. De repente pisava em algo mole e pastoso. Afundava até os joelhos. O cheiro nauseabundo não deixava dúvidas. Era aquilo. A merda.
Soube depois, por meio de um colega, que a tal menina sonhava ser modelo. Doce, para ela, era palavrão. Era ofensa das grossas. Mas para ele, foi o que bastou. Nunca mais teve coragem de aproximar-se de outra garota. Em sua ca-beça virara uma merda que precisava ser retirada da frente dos outros.

Tinha quase certeza que era isso mesmo que ele era. Ouvira isso várias vezes do seu pai bêbado. "Você é uma bosta que não vale o que come", era a locução favorita do seu pai quando ele fazia alguma coisa que o aborrecia. Co-mo o velho estava sempre bêbado e aborrecido com alguma coisa, isso era o que ele mais ouvia.
Mas o pior era ouvir isso também dos colegas. Gostava de jogar futebol, mas nunca conseguiu ser bom de bola. Sempre sobrava para ele a posição de goleiro. Goleiro é sempre o lugar onde os "grossos" são colocados, diziam os mais gozadores. Tudo bem, ele sabia que não era craque. Podia suportar muito bem isso e até fazer um papel bonito jogando no gol. Afinal, muitos goleiros fazem fama e fortuna defendendo o último reduto. Muitos jogos são ganhos pelo goleiro. Esses eram pensamentos que o consolavam.
Mas ele não era um bom goleiro e então vinham os "frangos". E com eles os xingamentos. " Você é mesmo uma bosta. Nem para goleiro serve".
Cresceu com esse som na cabeça e esse cheiro no nariz. Nenhuma namorada, raros colegas. Com vinte e quatro de idade era um jovem afastado de tudo e principalmente de todos.
Enquanto a mãe era viva ele ainda mantinha um elo de ligação com o mundo. O pai, pudim de cachaça, havia morrido de cirrose hepática há uns três anos atrás. Ficou aliviado pelo fato de Deus ter se antecipado a ele, pois sua intenção era acabar com a vida daquele desgraçado na primeira oportunidade. Era uma mágoa tão grande que ele guardava daquele cara, que sua morte, e principalmente a lembrança da agonia dolorosa que ele sofreu antes de morrer, lhe caíram como se ele tivesse tomado um remédio milagroso que aliviava repentinamente as dores de uma úlcera péptica que o consumia toda vez que a presença daquele homem feria qualquer um dos seus sentidos.
Se ele era tímido, retraído, caladão, enquanto a mãe vivia, depois da morte dela, ocorrida dois anos depois da morte do pai, tornou-se completamente ermitão. Terminara, com muita dor, o ensino médio, mais por conta da pressão materna do que por vontade própria. Por ele teria deixado a escola no dia em que aquela menina o transformou naquele "monte de merda ambulante" que tinha que viver escondido para não provocar aqueles esgares de nojo e desprezo que ele via na linguagem não verbal das pessoas que se apro-ximavam dele ou de quem ele tinha que se aproximar, mais por obrigação de viver, do que por necessidade ou desejo relacional.

Em alguma coisa, no entanto, esse isolamento lhe Fora proveitoso. A solidão e o afastamento do convívio com as pessoas fizera dele um nerd. Tornara-se perito em informática. Sabia tudo sobre computadores. Aprendera a trabalhar com tudo quanto era programa existente na praça. Só não se tornara um hacker porque tinha medo. Não tinha medo de morrer, mas de ser preso sim.
Seu mundo se tornara a Internet. Nela vivia, nela comia, nela sonhava. Quando não estava trabalhando, estava viajando pela rede.

Aos vinte anos arranjara um emprego numa editora de livros. Era uma editora especializada em livros religiosos e esotéricos, que publicava escritores independentes que pagavam as custas de edição de suas obras.
Ele fazia a diagramação dos livros. No começo se surpreendeu com a quantidade de escritores esotéricos que contratavam os serviços da editora para publicar suas estranhas obras. Eram estranhas composições literárias que falavam de vampiros, lobisomens, seriais killers, bruxas, rituais satânicos, simbologia sagrada, sociedades secretas, fetiches e fobias bizarras, esquizofrenias e outras aberrações da mente humana.
Ele não tinha idéia de quão grande era o número de pessoas que gostava de ler sobre esses assuntos. Mas o mercado devia ser bem amplo por que os livros tinham bastante saída. A editora publicava por demanda. Alguns deles alcançavam tiragem de dois, três, até dez mil exemplares, o que num país como o Brasil, diga-se, é um verdadeiro fenômeno.
Pouco a pouco, ele foi mergulhando naquele mundo de fatos e fenômenos banidos do mundo da razão e do convívio com as pessoas normais. Começou a estabelecer uma relação de simpatia e prazerosa convivência com eles. Eram como ele, aberrações que não suportavam o olhar das pessoas normais, eram fenômenos que precisavam ser catalogadas como sobrenaturais, anormais, aberrantes, acontecimentos e personagens que precisavam viver nas sombras como vampiros, ou esperar noites de lua cheia para se manifestar, como lobisomens.
Sim, eram como ele, um sujeito estranho que só saia de casa sob o manto protetor da madrugada e voltava envolto pela capa protetora da noite, esgueirando-se pelas ruas mais desertas, para evitar os olhares das pessoas, a voz delas, o contato com elas.

Odiava as pessoas tanto quanto amava os assuntos dos livros com os quais trabalhava. Sabia tudo sobre Jack o Estripador, Billy the Kid, Karyl Chessman, o Bandido da Luz Vermelha americana, O assassino do Zodíaco, que apavorou a vida dos caliornianos durante a década de 60, David Barkowitz, o famoso filho de Sam, que anos setenta matou uma dúzia de pessoas nos Estados Unidos e por aí afora. Seu preferido era o motoboy Francisco de Assis Pereira, que na década de 90 assassinou mais de dez garotas em São Paulo. "Elas mereceram" dizia para si mesmo, toda vez que mexia com aquele assunto. "Todas as garotas merecem. São depravadas e só pensam em sexo", concluía, para justificar o seu julgamento.
Sua banda preferida era os Dead Boys, cuja música heavy, soturna e arrepiante, o confortava e lhe dava prazer.
Desenvolvera também uma estranha simpatia por doutrinas racistas e religiões fundamentalistas. Achava as teorias que fizeram a cabeça de Hitler, como ele costumava dizer, o máximo. Por conta disso leu Alfred Rosemberg, Chamberlain, Gobineau e Nietszche com grande prazer, e comprou todos os CDs que reproduziam a música de Richard Wagner, compositor favorito de Hitler.
Ao ouvir a Cavalgada das Valquírias, A Ópera Parsifal e o Anel dos Nibelungos e depois, lendo na Internet o libreto com a história e a interpretação do mitos que serviram de inspiração para as respectivas óperas, ele logo compreendeu porque elas exerciam tanto fascínio sobre o espírito do lúgubre ditador alemão.
Não era a toa. Falavam de heroísmo e da nobreza do povo ariano. Descreviam holocaustos e sacrifícios rituais sangrentos. Falavam de heróis e deuses impiedosos.
Nada a ver com o mundo mesquinho, tacanho e moralista em que fora posto para viver, e que, no entanto, o rejeitara. Achava que poderia ter sido, com muito prazer, um soldado das S.S. E com muito orgulho e redobrado prazer teria participado das missões dos einsatz grupens destacados para missões especiais de extermínio de minorias raciais e grupos étnicos indesejáveis, que prejudicavam a gloriosa missão ariana de construção de uma humanidade pura e saudável.

Depois de algum tempo passou a admirar também aqueles terroristas muçulmanos que explodiram as Torres Gêmeas naquele fatídico 11 de setembro de 2001. Que coragem!
Terroristas para os americanos. Para ele eram verdadeiros heróis. Que destino fantástico era o daqueles homens, morrer por uma causa na qual acreditavam de verdade! Quantas pessoas no mundo teriam feito o que eles fizeram, com aquela frieza e determinação?
Estariam eles hoje no paraíso prometido pelo Alcorão? Esse era outro assunto que o fascinava. Seria verdade aquilo? Existiria mesmo esse paraíso, povoado por garotas que por mais sexo que fizessem, ainda continuavam virgens? Seria bom ser mandado para um lugar assim, onde os hímens nunca se rompiam, o pênis nunca amolecia e o sexo era uma atividade perene, desejável e santificada.
Ele não tivera ainda nenhuma experiência sexual. Era virgem como aquelas meninas que habitavam o paraíso muçulmano. Compreendia pois, o valor que a religião islâmica dava à questão da virgindade, figurando o corpo da mulher intocada como um território de prazeres ao qual nenhum homem teve ainda acesso e por isso mesmo, capaz de dar prazer inigualável a quem dele se apoderasse.
Talvez fosse por isso, por essa ilusão de eterna indevassibilidade, que elas eram capazes de manter o pênis do felizardo que as conquistava ereto para sempre.
Não importava que o paraíso dos muçulmanos se assemelhasse a um bordel santificado. Essa era uma imagem caluniosa que dele faziam os imperialistas cristãos que não conseguiam entender a grandeza dessa concepção, capaz de levar um homem a sacrificar a própria vida em prol de uma causa, coisa que nenhuma crença cristã, nos dias de hoje, era capaz de fazer.
Decididamente, pensavaque o ocidente se tornara um mundo de valores corrompidos e sem honra, que estava mesmo destinado a desaparecer. Por isso apoiava a causa dos lutadores da Jihad e se fosse possível, gostaria de se juntar a eles. Só não sabia como fazer.

Em seu trabalho na editora tinha que diagramar muitos livros. Assim acabava lendo vários deles. Ficara fascinado por um conto onde um desses terroristas suicidas detonava um colégio inteiro nos Estados Unidos por que seu mestre lhe dissera que a Jihad era mais completa quanto maior fosse o número de infiéis que ele conseguisse matar com seu ato.
E maior seria o seu galardão no paraíso por que as pessoas que ele matasse se tornariam seus escravos. Se fossem homens se tornariam seus eunucos, se fossem mulheres elas se tornariam virgens que fariam parte do seu harém de huris. Se já viessem virgens da terra, melhor ainda. Então o maluco jogou o seu avião em cima de colégio feminino matando mais de uma centena de meninas adolescentes. Duas eram as motivações do suicida: providenciar uma provisão bastante farta de huris para o seu harém e diminuir o número de matrizes que os infiéis teriam à disposição para reproduzir os seu malditos rebentos. Com isso Alá ficaria duplamente satisfeito. Mas ele teria que ter coragem para cruzar, de livre e espontânea vontade o Último Portal. Não poderia ser morto pelos infiéis. Teria que morrer pelas próprias mãos.Esse era o sacrifício que o evaria ao paraíso.
O conto era, naturalmente uma sátira e o seu autor tinha uma flagrante intenção de deboche. Fazia uma interpretação estereotipada e debochada do paraíso muçulmano e das crenças que levavam um fiel dessa realigião a se sacrificar pela causa.
Mas tinha amparo numa certa lógica fornecida pela História. Afinal não era costume na Idade Média que o perdedor de um combate se tornasse escravo do vencedor? Portanto, não havia nada de absurdo na idéia de que o morto pudesse se tornar, no outro mundo, servo de quem lhe tirou a vida.
Assim podia entender melhor o que se passava na cabeça daqueles caras que jogaram aqueles aviões no World Trade Center. Quantos escravos não estavam eles fazendo com aquele ato? Entre eles, quantas virgens para os seus harens não haveria? Não valia a pena morrer por um prêmio assim?

Adotara como tela de abertura no seu computador a imagem do boeing se arremetendo sobre as Torres Gêmeas. Desenvolvera outras telas com o mesmo motivo, mostrando boeings se chocando contra a Torre Eiffel, O Castelo de Windsor, o Prédio do Parlamento inglês, o prédio do Congresso em Brasília, a estátua do Cristo Redentor, no Rio, o Knesset em Israel, o Taj Mahal, o Vaticano. Contra tudo que representasse a tirania do homem contra o homem.
Em cada uma dessas montagens ele era o piloto do avião. Sentia-se um herói lutando por uma causa. Não era mais um "monte de merda que devia ser afastado da frente das pessoas." Dessas ações emergia como um sultão, de pênis eternamente rígido, e servido, não por uma lourinha malcriada, mas por um séquito de escravos e um exército de huris de olhos amendoados e escuros, castas como pérolas bem guardadas.
Com um prêmio desses não se importaria de jogar um avião no prédio do Congresso em Brasília. Adoraria ver todos aqueles deputados e senadores filhos da puta transformados em eunucos e virgens, sendo fodidos todo dia por ele, da mesma forma que eles fodiam todo mundo o tempo inteiro. Quanto ao avião que se chocava contra o Cristo Redentor, não era por ódio dos cariocas ou do Rio de Janeiro que ele fizera aquela imagem. Era pelos sentimentos que o Cristianismo lhe inspirava. A religião cristã era, para ele, a maior farsa que já fora perpetrada contra a humanidade. Uma religião de hipócritas, feita para hipócritas. Uma crença cujos praticantes falavam de paz, amor e perdão, mas na prática faziam a guerra, disseminavam o ódio e condenavam sem piedade milhões de pessoas à morte pela fome, através do controle dos mercados, pela guerra, por força do comércio de armas, e pela doença em virtude do controle das patentes farmacêuticas e da detenção do conhecimento em círculos muito restritos, só manter o preço alto dos medicamentos.
Que diabo de humanidade era essa que o Cristo representava? A quem ele dava aquele abraço? A tão poucos privilegiados, que talvez mal enchessem o círculo dos seus braços de pedra.
Afinal de contas, cristão era o mundo que o rejeitara. Cristã era a menina que o considerara um "monte de merda que devia ser afastado dos olhos do mundo."

Por isso, quando ele deu o primeiro tiro dentro daquela sala de aula, naquele colégio onde ele entrara disfarçado de professor, ele não teve muito tempo para gozar o prazer que isso lhe deu. Mas não importava. Ele já o havia gozado centenas de vezes antes ao planejar aquela ação. Durante um ano ele estudou todas as nuances da sua Jihad. Conseguiu até permissão para ser professor voluntário naquela escola e ensinar para os alunos algumas aplicações mais avançadas de informática além daquelas que os alunos já aprendiam como parte do currículo escolar.
Escolhera aquele colégio porque era uma escola particular. Ficava num bairro rico e famoso da cidade que hoje está na vitrine do mundo. Justamente ali, onde se encontram os metros quadrados mais valorizados do mundo. Depois, lá a grande maioria dos alunos era do sexo feminino. Elegera o período matutino porque era reservado aos estudantes do ensino fundamental. Uma maioria de meninas entre doze e quinze anos. Cerca de trinta alunos por classe. O alvo perfeito.

Ao disparar o primeiro tiro escolhera a menina sentada na terceira cadeira da direita para a esquerda, no lado direito da sala. Fora numa cadeira igual aquela, na mesma posição, que a lourinha dos seus quinze anos o transformara num "monte de bosta que precisava ser tirado da frente dos olhos e dos narizes do mundo".
"Eu não sou um monte merda", pensou ele antes de apontar a arma e perguntar para a menina da terceira cadeira: "Você é virgem?"
Não deu tempo nem para ela se recuperar do espanto de ouvir pergunta tão inusitada, feita de maneira tão extravagante e assustadora. A cabeça dela acabara de explodir como se nela surgisse, de repente, uma cratera de vulcão esguichando sangue e pedaços de osso. Depois ele não viu nem pensou em mais nada. Em sua mente desfilavam imagens rápidas e confusas de canos fumegantes, aviões explodindo contra prédios e monumentos, soldados sem rosto, marchando ritmados e resolutos, vestidos com uniformes negros, com cruzes gamadas pintadas no ombro esquerdo.
E viu suas mãos que pareciam dois vulcões vomitando fumaça e jatos de lava de cor alaranjada, que contaminavam um céu azul, inocente e imaculado como um paraíso bíblico.
"Você é virgem? Você é virgem?" Perguntava e atirava contra a turba que fugia e se atropelava e escorregava em poças de sangue, que se tornavam cada vez mais densas e maiores. Não tinha tempo para fazer a conta. O importante era a quantidade de almas que precisavam ser capturadas. Sentia-se um bandeirante caçando índios para trabalhar no seu canavial ou um soba africano na sua tarefa de capturar escravos para vender aos fazendeiros do novo mundo.

Quase uma eternidade havia decorrido quando ele sentiu uma brasa queimar seu flanco direito. Soube imediatamente que tinha chegado a hora de transpor o Último Portal. Não podia esperar que o empurrassem. O ritual exigia que a iniciativa fosse sua. Por isso, com as últimas forças que ainda restavam no seu braço, e num último lampejo de consciência, encostou uma das armas na própria cabeça e puxou o gatilho.A sua Jihad estava completa. Restava agora esperar pelo julgamento de Alá.