1. DO CONCEITO E DA NATUREZA JURÍDICA DO REEXAME NECESSÁRIO.

Reexame necessário consiste, pois, no imperativo normativo, previsto no art. 475, do Código de Processo Civil (BRASIL, 1973), que determina que certas matérias processadas e decididas pela primeira instância de jurisdição sejam, independentemente da vontade das partes, revistas e confirmadas, em sede de duplo grau de jurisdição, pelo Tribunal hierarquicamente superior, com o objetivo de garantir a proteção do interesse público.

Na lição do processualista Marcus Vinícius Rios Gonçalves (2005, p.59) " O reexame necessário consiste, portanto, na necessidade de que determinadas sentenças sejam confirmadas pelo Tribunal, ainda que não tenha havido nenhum recurso das partes".

De outro lado, Fredie Didier (2011, p.487), aderindo à corrente majoritária, entende que o reexame necessário "condiciona a eficácia da sentença à sua reapreciação pelo tribunal ao qual está vinculado o juiz que a proferiu. Enquanto não for procedida a reanálise da sentença, esta não transita em julgado, não contendo plena eficácia".

Todavia, necessário acrescentar que apesar da sentença não transitar em julgado na pendência do reexame, não significa dizer que a decisão não é válida ou inexistente, mas, ao revés, que somente produzirá efeito jurídico após sua confirmação pelo Tribunal competente.

Desta feita, ao se deparar com algumas das hipóteses legais de reexame necessário o Juízo tem a obrigação/dever de determinar a remessa dos autos ao tribunal ad quem[1] para que se proceda à reapreciação do quanto decidido. Assim não procedendo, configurando, portanto, omissão, o presidente do Tribunal, de ofício ou a requerimento das partes, poderá definir a avocação dos autos, determinando em seguida, sua distribuição a um relator para que seja processado e julgado o reexame. Nesta mesma esteira, poderá o representante do Ministério Público, atuando como garantidor da lei, requerer a remessa ou avocação dos autos.

Vale dizer, então, que o ato do juiz contrário à pretensão do Estado, constitui o primeiro momento de um ato jurídico complexo que somente irá se aperfeiçoar com o pronunciamento do tribunal recursal.

Como ilustração, pode-se dizer que o Juízo apresenta ao Tribunal "revisor" uma proposta de sentença. Reapreciado e aprovado, o projeto aperfeiçoa-se em sentença eficaz e apta a formar coisa julgada.

Lado outro, ao rejeitar e, por conseqüência, modificar o projeto, o Tribunal não estará reformando a sentença. Simplesmente estará moldando a minuta, segundo critérios de justiça e segurança jurídica, ao que lhe pareça ser a decisão correta.

Em uma perspectiva histórica e teleológica mister destacar a intenção do legislador de conferir, por meio do reexame necessário, maior garantia e proteção do interesse público a fim de evitar danos ao erário, em face de eventuais equívocos e injustiças provocadas por sentenças prolatadas pelo juiz singular.

Nesse mesmo sentido o entendimento de Francesco Carnelutti (2000) a seguir:

A função está em submeter a lide ou negócio a um segundo exame que ofereça maiores garantias que o primeiro, já que se serve da experiência deste e o realiza um oficio superior (...) o essencial é que se trata de um exame reiterado, isto é, de uma revisão de tudo quanto se fez na primeira vez, e essa reiteração permite evitar erros e suprir lacunas em que eventualmente se incorreu no exame anterior. (CARNELUTTI, p.158)

Por derradeiro, importante consignar que parcela autorizada da doutrina compreende o reexame necessário como um instituto legítimo dentro da ordem jurídica nacional, que possui a missão precípua de preservar o interesse público e a própria segurança jurídica.

Lado outro, acalorado debate vem sendo travado na doutrina e na Jurisprudência quando se trata de discutir e precisar a natureza jurídica do instituto do reexame necessário.

Parcela majoritária da doutrina classifica o reexame necessário como condição de eficácia da sentença, sendo-lhe negado a condição de recurso uma vez que ausentes alguns dos pressupostos próprios dos recursos.

Segundo Fredie Didier (2011):

De fato, além de não atender à regra da taxatividade, o reexame não está sujeito a prazo, faltando ao juiz legitimidade e interesse em recorrer. A isso acresce a circunstância de não haver o atendimento ao requisito da regularidade formal, que exige do recorrente a formulação do pedido de nova decisão e a demonstração das razões de fato e de direito que o fundamentam. Não se atende, ademais, à característica de voluntariedade do recurso, peculiar ao sistema recursal brasileiro, segundo a qual o recurso, para ser interposto, depende de provocação espontânea de um dos legitimados, eis que é manifestação do princípio dispositivo, não devendo decorrer de obrigação ou imposição legal. (DIDIER, p.487)

Além da ausência de pressupostos, a própria localização topográfica do dispositivo que trata do instituto, localizado no art. 475, do Código de Processo Civil (BRASIL, 1973), fora, então, do título que cuida dos recursos, é suficiente para retirar-lhe a feição de recurso.

Então, para a corrente majoritária, a remessa necessária reveste-se de natureza jurídica de condição de eficácia da sentença, que determina que  enquanto não for procedida a reapreciação da sentença pelo tribunal ao qual está adstrito o juízo que a prolatou, esta não transitará em julgado e não terá, portanto, eficácia plena.

O Superior Tribunal de Justiça também já teve a oportunidade de se manifestar sobre a matéria defendendo, por mais de uma vez, que a remessa necessária possui estatuto processual próprio de condição de eficácia, jamais alcançado, pois, feição de recurso, senão veja-se:

RECURSO ESPECIAL – ALÍNEA "A" – REEXAME NECESSÁRIO – INVERSÃO DOS ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA – POSSIBILIDADE – PRECEDENTES.

A teor do disposto no artigo 475, inciso II, do Código Buzaid, a remessa necessária tem a natureza jurídica de "condição de eficácia da sentença". Por esse motivo, "tem translatividade plena, submetendo ao tribunal toda a matéria levantada e discutida no juízo inferior, mesmo que a sentença não a haja apreciado por inteiro" (Nelson Nery Júnior in "Princípios fundamentais - Teoria Geral dos Recursos", RT, 4ª edição, p. 57).

Assim, mesmo que a parte não tenha manejado recurso de apelação e suscitado o exame, pela egrégia Corte julgadora, da questão relativa aos ônus sucumbenciais, ou, se, hipoteticamente, não tivesse sido ultrapassado o juízo de admissibilidade de recurso interposto, ao Tribunal competia a análise dos pontos controvertidos do processo, em razão do reexame necessário, pois, de acordo com as disposições do artigo 475 do CPC, "há a devolução obrigatória da apreciação da matéria para o tribunal ad quem" (in Pontes de Miranda, "Comentários ao Código de Processo Civil", tomo V, 1974, Forense, p. 218).

Recurso especial provido para reconhecer que, a teor da decisão proferida pela egrégia Corte a quo, houve inversão dos ônus sucumbenciais no percentual fixado na sentença.

(REsp 200.967/PR, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/03/2002, DJ 30/09/2002, p. 210). (BRASIL, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA).

PROCESSUAL CIVIL. REMESSA NECESSÁRIA. NATUREZA JURÍDICA. AUSÊNCIA DE RECURSO VOLUNTÁRIO. PRECLUSÃO. NÃO CONHECIMENTO DO ESPECIAL.

1. Doutrina e jurisprudência dominantes tratam a remessa necessária como mera condição de exeqüibilidade da sentença, que embora existente e válida, somente produz efeitos após sua confirmação pelo Tribunal (CPC, art. 475).

2. Ocorre a preclusão lógica, quando evidente a conformação da parte em relação à sentença que lhe foi desfavorável; descabe, nesse caso, o interposição de recurso especial contra acórdão proferido em remessa necessária.

3. Recurso não conhecido.

(REsp 196.561/RJ, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 23/02/1999, DJ 29/03/1999, p. 225). (BRASIL, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA).

Noutro giro, ousando divergir da corrente majoritária e trazendo interessantes argumentos, existem doutrinadores que sustentam a tese de que o Reexame Necessário, por equiparação, alcança status de verdadeiro recurso.

Acontece que a remessa necessária apresenta, no seu aspecto procedimental, inegável semelhança com o recurso de apelação. Tanto é verdade que o instituto outrora já fora denominado como "apelação de ofício".

Em apertada síntese, infere-se que existe semelhança quanto i) ao rito - uma vez que a remessa necessária segue o mesmo procedimento da apelação; ii) quanto à ocorrência dos efeitos suspensivos e devolutivos; iii) quanto à supremacia dos acórdãos proferidos.

Contra o argumento da voluntariedade, considerado como motivo determinante para a denegação do status de recurso ao reexame necessário, vale repisar os argumentos da pena firme de Araken de Assis (2001)  assim delineados:

Àqueles que duvidarem do bom senso de alargar o conceito de recurso, relativizando sua voluntariedade, ousamos lembrar que, para os homens sensatos da época de Galileu, tementes a Deus e atentos à própria vida, o Sol girava em torno da Terra. Põe-se excessivo destaque no caráter voluntário de todo o recurso, olvidando seu eventual regime compulsório. E Até mesmo a voluntariedade surge no recurso ex officio. Constitui simples faculdade o recurso interposto pelo Presidente do Tribunal contra "decisões proferidas em dissídio coletivo" (art. 898, da CLT). Que dizer dessa hipótese excepcional, senão que há recursos ex officio obrigatórios e voluntários? (ASSIS, p.128-129)

Desta feita, ainda que a corrente majoritária da doutrina e a Jurisprudência dos tribunais superiores, em especial do Colendo Superior Tribunal de Justiça, neguem o status de recurso à remessa necessária conferindo-lhe apenas a condição de eficácia das sentenças, é possível, crível mesmo, seja pela equiparação quanto pela relativização dos pressupostos recursais, conferir ao instituto a feição recurso.



[1] Em tradução literal, "para quem". Diz-se para designar o Juiz ou Tribunal responsável pelo julgamento do recurso.