A perplexidade é a única moral literária
                   Compagnon,

O novo romance de José Saramago, Caim, nos leva a refletir sobre Literatura. Melhor: existem limites para o ser artístico? Há uma espécie de metro do qual o romancista não pode ultrapassar? Minha tese, a exemplo do que disse Umberto Eco, se referindo ao Código da Vinci, é sim. Todo texto literário, antes de tudo, é um encadeamento de Falsidades.

A literatura é um fazer criativo que se opera na "desautomatização" da inteligência, vai desbravando discursos e formas num talhar de "concretos ficcionais". Suas verdades são verificáveis por deduções, às avessas, de uma lógica inventiva própria.

A obra Caim nada mais é do que produção de "supra-realidades" a partir da força criadora saramaguiana. De modo que o autor tem não só o direito, mas o dever de inventar o que bem lhe convier. Ele não precisa pedir licença a ninguém para estruturar sua narrativa, criar suas personagens, entrelaçar o enredo, jogar com a linguagem, tecer seu estilo.

Se toma como foco central uma figura bíblica, é porque sabe jogar neste árduo terreno. Mesmo que dissesse ao leitor que deveria acreditar em sua história, isso seria mera estratégia de sedução. A encrenca começa, parafraseando mestre Eco, quando percebemos que um grande número de leitores ocasionais acredita realmente que está diante de um texto herético, produzido sob a inspiração do demônio, que a outra coisa não aspira senão povoar o inferno.

Literatura de qualidade reage contra repressões, não omite problemas, não perverte valores mimetizando o estabelecido. Nela, encontramos apelos inteligentes à práxis transformadora. Nela, mergulhamos em exercícios críticos que nos possibilitam conhecer e mudar o mundo. Ou o texto literário me dá sentidos ao mundo ou para nada serve. A menos que esteja interessado apenas em viagens metalinguísticas, tergiversações sobre ele e voos retóricos em torno de sua linguagem. Ora, a autêntica literatura sempre assombra o mundo.

Esse burburinho que cerca Caim procura legitimação nos discursos fundadores. São zonas de interpretações que se julgam superiores, ou seja, detentoras do absoluto, da verdade. Não é à toa que moral e teologia, aqui, são irmãs gêmeas. Há o que chamo de sintaxe estruturalista idealista. Disso, infelizmente, decorrendo uma espécie de involução permanente.

O ethos literário não é o silenciar, se recorrendo ao velho truque do dizer para melhor calar. Seu fio condutor é a libertação, esta, claro, entendida como "libertação da ignorância, da escravidão, da dependência, da submissão, da passividade, enfim, de diversas formas de opressão".

Caim é arte. Escrito com maestria provocativa e habilidade reconhecida internacionalmente. Ademais, o lemos de um só fôlego. Caim, amigo, é Fingimento metafísico.

    
 
Ary Carlos Moura Cardoso
Mestre em Literatura pela UnB

Professor da UFT