DISCURSO E FORMAÇÃO DE IDENTIDADES NAS CHARGES

Luciana Fernandes Nery[1]

RESUMO

As transformações que ocorrem na sociedade acabam nos afetando e modificando as nossas identidades, interferindo nas nossas crenças, valores e ideologias. Nesse contexto, buscaremos observar de que forma as charges contribuem para a formação de identidades, visto que este gênero é amplamente difundido e é um excelente meio para auxiliar o leitor numa visão mais crítica diante dos textos que circulam na sociedade. Com base na Análise do Discurso, sobretudo nas idéias de Pêcheux e Foucault, estaremos apresentando esclarecimentos sobre como os sujeitos incorporam os fatos e as personagens ali representados. Esperamos trazer contribuições para que a leitura seja trabalhada numa perspectiva discursiva e que haja possibilidade dos alunos perceberem os discursos que ficam por trás do que é dito.

Palavras-chave

Identidades – charges – análise do discurso

1 INTRODUÇÃO

A sociedade moderna é amplamente marcada por uma série de transformações. Vivemos em uma era, em que as imagens estão cada vez mais influenciando o modo de viver e de pensar dos seres humanos, provocando, dessa forma, mudanças na construção das identidades. Diante disso, o homem pós-moderno tem-se perguntado: quem eu sou e o que interfere no meu modo de ser e de agir? Essa nova forma de pensar a realidade produz uma crise de valores, ideologias e crenças. Portanto, qualquer acontecimento da sociedade afeta o comportamento dos cidadãos que estão inseridos nesse meio tão vulnerável e ao mesmo tempo tão complexo.

A relação palavra/imagem vem se mostrando com freqüência nos assuntos relacionados à leitura e à escrita e de como os sujeitos constroem suas identidades a partir dos personagens e de suas interações discursivas. Dessa forma, buscaremos analisar o gênero charges, uma vez que por possuir uma relação direta com a realidade é preciso fazer uma ponte com o que está acontecendo na sociedade e relacionar aos aspectos humorísticos produzidos pelo chargista. Diante disso, é importante perceber que o sujeito está inserido num contexto histórico-social, não há como fazer uma análise sem considerá-lo, visto que se trata de um gênero temporal. Desse modo, é preciso está atento ao momento que se deu o acontecimento para compreender o sentido.

O conteúdo chargístico revela muito mais uma opinião do que uma crítica. Por trás de um discurso, outros estão implícitos. Por isso, é imprescindível atentar para o fato de que todo discurso é heterogêneo. Portanto, para analisar tal gênero tomaremos como base as contribuições da Análise do Discurso, que implicará em observar não o que está explícito, mas principalmente o não-dito.

Abordar um texto com base na Análise do Discurso é uma forma de atentar para as condições e os fatores que influenciaram na sua construção, bem como estabelecer uma relação entre aquilo que somos e o que acreditamos. A partir das práticas discursivas com o outro é que construímos nossas identidades, ou seja, através da interação entre os indivíduos. Trata-se de um processo que depende dos significados que os participantes dão a si mesmos e de outros intrínsecos nos seus discursos.

O presente artigo justifica-se pelo fato de poder analisar os discursos apresentados no gênero "charge" e contribuir para que a leitura seja trabalhada numa perspectiva discursiva, auxiliando o leitor na construção de uma visão mais crítica diante dos textos que circulam na sociedade. Nesse contexto, têm-se a questão: como os alunos se identificam com os sujeitos "caricaturados" das charges, a partir do efeito de sentido ali construído?

Desenvolvemos este estudo a partir de leituras tendo como base a Análise do Discurso, com ênfase nas implicações da construção de identidades, mediante as teorias de Foucault (1969), Bakhtin (1992), Orlandi (1999), Pêcheux (1997), Authier-Revuz (1982), Hall (2006) e Dantas (2007). Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, qualitativa de cunho descritivo-interpretativista. Além disso, será desenvolvido um estudo de caso, visto que o próprio pesquisador será o responsável pela a aplicação e desenvolvimento desta atividade.

O corpus da pesquisa é constituído de charges publicadas no jornal da Paraíba. Para efetuarmos a análise, selecionamos uma turma da 1ª série do Ensino Médio da EJA (Educação de Jovens e Adultos) do município de Juazeirinho-PB, a fim de observarmos como esses alunos conseguem atribuir sentidos nessas charges e como os efeitos por elas produzidos contribuem para a formação de suas identidades.

2 CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DO DISCURSO PARA A LEITURA DAS CHARGES

Falar em Análise do Discurso implica considerar alguns conceitos importantes. Primeiramente, é preciso definir o que seja discurso. Normalmente, associávamos o discurso ao pronunciamento de uma determinada pessoa ou grupo social, assim nos referíamos ao discurso político, religioso, jurídico, etc. Trabalhando com a AD, o discurso passará a ser uma palavra chave e será entendido como um processo de significações.

Nesse sentido, Orlandi (1999, p.15) o define como sendo:

(...) a palavra discurso, etimologicamente, tem a idéia de curso, de percurso, de correr, de movimento. O discurso é assim a palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando (...).

Dessa forma, denominamos de discurso, os enunciados produzidos numa determinada interação verbal, no qual os sujeitos são constituídos de acordo com as suas posições sociais e ideológicas. Assim sendo, os discursos não são fixos, visto que somos influenciados pelo meio ao qual pertencemos, portanto estão sempre em constantes mudanças. Possenti (1999) apud Dantas (2002, p.86) ainda afirma que: "(...) o discurso é um efeito de sentido, uma posição, uma ideologia, que se materializa através da língua (...)". Diante dessa afirmação do autor, podemos dizer que o discurso não é exterior à língua, mas depende dela para se materializar. O discurso é materializado na língua, é nela que passa a possuir uma existência real, no entanto, para apresentar um significado não há uma relação de dependência entre eles.

De acordo com Fernandes (2007) para analisar o discurso é preciso considerar o sujeito falando. Diante disso, é preciso observar a produção de sentidos como parte integrante desse processo, uma vez que um mesmo discurso pode ter diferentes sentidos, dependendo do lugar em que é produzido, da ideologia ao qual o sujeito que o pronunciou está filiado e das condições em que se deu a sua produção.

Segundo o mesmo autor (p.36):

O sujeito não é homogêneo, seu discurso constitui-se do entrecruzamento de diferentes discursos, de discursos em oposição que se negam e se contradizem. Ao considerarmos um sujeito discursivo, a cerca de um mesmo tema, encontramos em sua voz diferentes vozes, oriundas de diferentes discursos. A presença dessas diferentes vozes integrantes da voz de um sujeito, na Análise do Discurso denomina-se de Polifonia.

De acordo com essa afirmação de Fernandes, podemos dizer que o sujeito discursivo é constituído na interação social, ele não é o centro do seu dizer, em sua voz, um conjunto de outras vozes se manifestam. O sujeito é polifônico e é constituído por uma heterogeneidade de discursos. Assim sendo, o nosso discurso não será algo novo, ele será sempre reflexo de um discurso pré-existente, pois o que dizemos em algum momento já foi dito por outra pessoa ou então expressa uma multiplicidade de vozes de vários seres de uma mesma sociedade. Nesse sentido, atrelada à noção de polifonia, temos a noção de heterogeneidade. Dessa forma, o discurso através do diálogo incorpora diferentes vozes, teremos assim na presença de um "eu" o surgimento do "outro".

Diante disso, a Análise do Discurso passará a questionar por que tal indivíduo produziu tal discurso. A partir destas idéias, o falante passa a ser considerado como sujeito, resultado de um processo histórico-social e influenciado ideologicamente pela instituição ao qual pertence. Segundo Pêcheux (1990), a ideologia adquire materialidade no discurso, assim para trabalhar com Análise do Discurso é preciso considerar dois conceitos importantes: o de formação discursiva e o de formação ideológica. Focault (1969) diz que a formação discursiva refere-se aos enunciados que vão compondo o sujeito.

Pêcheux (1990, p.314) reportando-se a Focault diz que:

A noção de formação discursiva (FD) começa a fazer explodir a noção de máquina discursiva estrutural fechada na medida em que o dispositivo da FD está em relação paradoxal com seu exterior: uma FD não é um espaço estruturalmente fechado, pois é constitutivamente "invadido por elementos que vêm do outro (isto é, de outras FDs) que se repetem nela, fornecendo-lhe suas evidências discursivas fundamentais.

De acordo com Focault, é a formação discursiva que determina o que pode ou não ser dito em uma determinada época e meio social. Uma FD nunca é homogênea, todo discurso resulta de um já-dito. Para tratar de formação discursiva, é preciso atentar para a interação entre elas, pois o sujeito sempre pertencerá a diferentes FDs, ou seja, uma formação discursiva tem dentro de si outras com as quais dialoga, quer seja para contestá-las ou para uní-las a sua voz..

Falar em formação discursiva implica considerar outro conceito importante: o de formação ideológica.A esse respeito, Pêcheux (op.cit, p, 166) diz que a formação ideológica é o "conjunto complexo de atividades e representações que não são nem individuais nem universais, mais se relacionam mais ou menos diretamente às posições de classes em conflito umas com as outras".

A ideologia refere-se a um conjunto de atitudes e representações que os falantes têm de si mesmo, sobre o interlocutor e o assunto em pauta. A formação ideológica está relacionada com a posição social e com as relações de poder que se estabelecem entre os indivíduos. Sendo assim, um mesmo enunciado possui sentidos diferentes, pois é determinado pelas posições ideológicas que estão em evidência no momento em que é produzido. O indivíduo embora tenha a ilusão da autonomia do seu discurso, se submete livremente as condições de produção, visto que o dito estará inserido numa determinada prática ideológica. Esse processo na AD é denominado de assujeitamento.

Trabalhar com Análise do Discurso implica num processo de investigação, significa ser singular no meio da pluralidade. Esta teoria metodológica trabalha com a língua como uma estrutura simbólica. Parte-se do pressuposto de que a língua não pode ser desvinculada de suas condições de produção, uma vez que os processos que a constitui são históricos sociais. Sendo assim, nós, enquanto sujeitos, precisamos ser contextualizados.

2.1 Discurso e Identidade

O discurso, de acordo com Althusser (1974) é um aparelho ideológico, no qual se confrontam dois ou mais discursos. Segundo este autor, a todo momento somos condicionados por aquilo que somos e o que acreditamos. Isso quer dizer que os indivíduos constroem os seus significados a partir da interação por meio da linguagem. É através desse processo de construção de significados que as pessoas tomam consciência de quem são e constroem as suas identidades.Trata-se de uma atividade que está sempre se modificando, uma vez que a sociedade está em constante mudança, consequentemente mudamos a nossa forma de pensar e agir.

Hall (2006, p.38-39) diz que:

A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através dos processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento (...) Ela permanece sempre incompleta, está sempre "em processo" sempre sendo formada. Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é preenchida a partir de nosso mundo exterior, pelas formas através dos quais nós imaginamos ser vistos pelos outros (...).

Diante dessa afirmação do autor, podemos perceber que a nossa identidade está sempre sendo construída, além do mais também somos produzidos de acordo com aquilo que pensam sobre nós. Em relação a isso Johtnston (1973) apud Moita Lopes (op.cit, p.35) diz que "a identidade é o que você pode dizer que é de acordo com o que dizem que você é". Com isso, podemos dizer que não construímos nossas identidades sozinhos. Não é um processo solitário, pois estamos sempre rodeando de pessoas que acabam influenciando nas nossas crenças, valores e ideologias. Nós somos produzidos por outros seres, portanto a nossa identidade não é uma construção individual, mas sim social produzida de acordo com os interesses da classe dominante. Nem sempre agimos e pensamos da forma que queremos, mas porque uma força nos leva a isso.

Com isso, podemos perceber que o sujeito possui uma identidade fragmentada, possui não uma, mas várias identidades em diferentes momentos da sua vida. Até mesmo dentro de nós mesmos apresentamos identidades que, muitas vezes, tornam-se contraditórias ou mal resolvidas. Na medida em que vamos vivenciando novas situações, outras identidades vão surgindo. Por esta questão é que Silva (2006, p.13) afirma que "a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia". Assim sendo, a nossa identidade não é fixa, permanente, ela é transformada continuamente.

As identidades sociais não podem ser construídas fora do discurso, elas não estão intrínsecas aos indivíduos, mas surgem a partir da interação entre eles. É assim que as pessoas se tornam participantes nos processos de construção dos significados na sociedade. É por isso que precisamos compreender o discurso como sendo produzido em locais históricos e institucionais específicos. Quando nos engajamos no discurso, estamos ao mesmo tempo considerando o discurso do outro e reconstruindo a nossa identidade. Visto assim, podemos afirmar que desempenhamos múltiplas identidades, pois estamos sempre em contato com diferentes interlocutores, ora assumimos a identidade de professor, ora de aluno, confidente e assim sucessivamente. As pessoas não podem ser definidas apenas pela a sua cor, sexo, idade, visto que somos seres altamente complexos e heterogêneos.

A questão da identidade não está relacionada apenas ao que somos ou de onde viemos, mas, sobretudo, ao que nos tornamos. Como nós temos sido representados e como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós mesmos. Os sujeitos modernos precisam ser vistos não como iguais, mas sim como diferentes, visto que a sociedade moderna é marcada pela diferença e é nessas diferenças ou por meio delas que construímos nossas identidades.

Diante desses questionamentos, Silva (2007, p.112) enfatiza que:

As identidades são as posições que o sujeito é obrigado a assumir, embora sabendo que são representações, e que a representação é sempre construída ao longo de uma falta, ao longo de uma divisão, a partir do lugar do Outro e que, assim, elas não podem, nunca ser ajustadas, idênticas, aos processos de sujeito que são nelas investidos.

Essa afirmação de que somos construídos a partir da relação com o Outro tem levado o sujeito pós-moderno a se policiar, como se estivesse a todo momento diante de um espelho.

Somos ainda diretamente afetados pelas transformações que ocorre na sociedade. É por esta questão que as nossas identidades estão sendo descentradas, deslocadas ou fragmentadas. Essas transformações têm influenciado na descentralização do sujeito e, consequentemente, provocado uma "crise de identidade", pondo em xeque a idéia que temos de nós mesmos. Fala-se em crise de identidade do homem pós-moderno por não haver mais um identidade unificada e estável. A identidade de um sujeito se faz a cada dia, pois ele está diante de tecnologias que o faz conhecer o mundo e é impossível não ser influenciadas por elas. Dessa forma, o homem não possui mais uma identidade local, mas integra a ela outras diferentes. A partir da modernidade, a identidade passa a ser encarada como algo sujeito a mudanças e inovações.

2.2 Charges: um discurso polifônico e dialógico

Hoje, frequentemente, deparamo-nos com diversas formas de críticas em jornais, revistas ou até mesmo na internet. Dentre essas manifestações, temos as charges que, de uma forma humorística, apresenta uma posição em relação a um fato ou a um determinado personagem.Não se consegue determinar ao certo qual foi a sua origem, mas se acredita que o gênero charge teria surgido na França e a sua criação seria atribuída a Honoré Daunier, que por meio de desenhos publicados no jornal La Caricature, buscava criticar o governo da época, talvez por isso o foco dos conteúdos chargísticos seja a política, apesar de também outros fatos serem representados.

No Brasil, as charges surgiram da fusão entre a caricatura com a sátira, por volta do final do século XVII ao inicio do século XIX. Inicialmente foi ganhando espaço nos jornais e, aos poucos se tornou matéria. Hoje, está presente diariamente e aparece relacionada às outras sessões do próprio jornal.

Moretti (2001) apud Mendonça (2003, p.197) tentando estabelecer diferenças entre a charge e a caricatura diz que "a caricatura é deformação das características marcantes de uma pessoa, animal, coisa, fato - pode ser usada como ilustração de uma matéria (fato), mas quando esse fato pode ser contado inteiramente numa forma gráfica, é chamado de charge".

Ao considerar essa afirmação, podemos dizer que a charge existe independente, enquanto que a caricatura vem atrelada a outro texto, ou seja, geralmente, acompanham reportagens fazendo parte da matéria. Já as charges apresentam desenhos aparentemente isolados de qualquer assunto, mas que apresentam possibilidades de interpretação e compreensão. Podemos dizer que as charges surgiram a partir da caricatura e tem como fim específico criticar ou zombar de fatos ou situações reais.

O chargista, por meio das imagens e do texto verbal, utiliza o humor para buscar o que está por trás dos fatos ou personagens representados. Diante disso, o conteúdo veiculado nesse gênero expressa muito mais uma opinião do enunciador do que uma informação. É preciso que haja uma interação entre leitor e autor do texto para que possa ser compreendido, uma vez que, ali está focalizada e sintetizada uma determinada realidade e somente os conhecedores dessa realidade é que a compreenderão.

Nas charges estão representados fatos ocorridos numa determinada época, num dado contexto econômico, cultural e social, portanto depende do conhecimento desses fatores para que possa ser entendida. O próprio jornal ou revista, em que foi publicada são os suportes para a sua compreensão. Quando isso não acontece o leitor terá que possuir certo conhecimento prévio para que o seu sentido se efetive.

Em relação a este gênero, Souza e Machado (2005, p.62) afirmam:

...é comum a charge apoiar-se apenas no desenho para a emissão de um sentido. No entanto, há charges que também apresentam o texto verbal, e esse conteúdo verbal refere-se tanto às palavras propriamente ditas quanto tão somente à presença de sinais de pontuação. O texto chargístico geralmente é escrito à mão e isso, obviamente, propicia ao produtor maior poder de representação figurativa, pois o sentido da mensagem pode ser reforçado e melhor atingido pelo próprio traçado das letras.

De acordo com esses autores, há nas charges vários fatores que conduzem ao sentido: a própria letra, o contorno, o tamanho, o traçado, etc. Estes traços são reforçadores da opinião que se deseja transmitir. Por isso, para alguns compreendê-las não é uma tarefa das mais fácies, principalmente, quando não se tem conhecimento da situaçãoque a originou. Também é interessante salientar que a linguagem da charge está em constante comunicação com a notícia, alimenta-se do novo, dos acontecimentos sociais, portanto possui vida efêmera. O leitor desse gênero precisa está bem informado acerca do tema abordado, para que possa compreender e captar o seu teor crítico. Além do mais, as charges são baseadas em textos já existentes, se não tivermos conhecimento da sua existência não conseguiremos entendê-las.

As charges têm como objetivo convencer, influenciar, de acordo com uma determinada ideologia o seu interlocutor, tornando-o mais consciente da sua realidade. Costuma ser um texto atraente aos olhos do leitor. Afinal de contas, através das imagens apresentadas em tal gênero podem ser transmitidas uma multiplicidade de informações num texto curto e num pequeno espaço de tempo. Além do mais, a leitura deste texto remete a outros, facilitando assim o interesse pelos os mesmos e pela busca de novas informações.

3 EM CENA: AS CHARGES PERANTE OS ALUNOS

A charge é um gênero textual que circula diariamente na sociedade. No entanto, não costuma ser trabalhada na escola. É um texto que lida com o repertório disponível nas práticas sociais, ligando-se ao modo como um determinado grupo vê o outro. Esse gênero tem a função de convencer, influenciar o outro de acordo com uma determinada ideologia, a fim de torná-los mais conscientes da realidade. É importante verificar que a charge serve de estímulo à leitura de outros textos, ou seja, possibilita atividades dinâmicas, desenvolvendo o interesse do aluno pela leitura e pela busca de informações.

Partindo desses princípios, resolvemos observar de que forma os alunos conseguem assimilar os conteúdos veiculados nesse gênero e como o mesmo influencia na formação das identidades deles.

Vejamos a charge 1:


Em seguida, teremos a interpretação dos alunos em relação ao texto acima.

Dupla A: " No Brasil, o sistema de saúde está em péssimas condições. São milhares de pessoas doentes nos corredores de hospitais, falta de medicamentos , falta de médicos. Enfim, o sistema de saúde vai mal, por exemplo no Rio de Janeiro, o caso da dengue que já morreram mais de 100 pessoas. Na verdade, o SUS precisava ser mais organizado e estruturado para melhor atender a população".

Antes de analisar a compreensão dos alunos em relação à charge acima, devemos destacar alguns pontos que auxiliaram os mesmos para a construção de sentidos. Em primeiro lugar, o texto foi publicado no dia 21 de Março de 2008, data correspondente a Paixão de Cristo, por isso há toda uma relação de intertextualidade.A charge foi veiculada no jornal da Paraíba e apresenta através da articulação entre a linguagem verbal e visual uma crítica em relação ao SUS (Sistema Único de Saúde). Nela o autor explora os sentidos através de um jogo de discursos, deixando boa parte de forma implícita, por isso é preciso que o leitor possua certo conhecimento prévio para compreendê-la.

Observando a charge que foi selecionada para a análise, podemos perceber que há um cruzamento de dois tipos de discursos: o religioso e o da saúde. Publicada num momento em que o SUS está sendo denunciado pela falta de atendimento nos hospitais públicos, principalmente em relação aos casos de dengue no país, o autor apresenta no texto o ponto de vista católico-religioso. Para isso, utiliza-se da imagem do Cristo crucificado, uma vez que, na época da semana santa as pessoas ficam mais sensibilizadas com a sua morte.

O discurso, de acordo com Althusser (1970), é um aparelho ideológico, no qual se confrontam dois ou mais discursos. Segundo o autor, a todo momento somos condicionados por aquilo que acreditamos, por mais que tentamos fugir há sempre uma força que nos leva a refletir. Na charge em análise, considerando o discurso católico-religioso temos um sujeito que padece do mesmo mal que Jesus passou: a crucificação, a injustiça. Contrariando essa idéia de sofrimento, nos remetemos a outro discurso: o da saúde, ao qual se espera que cada um tenha direito a um tratamento digno de ser humano. O que vemos é um sujeito que está sendo crucificado. A cruz, neste caso, representa tanto o símbolo da crucificação, quanto o do SUS.

Outro aspecto interessante a se observar é a cor empregada no texto, o azul representa o céu, como se a pessoa que precisasse da prestação desse serviço tanto padecesse que já teria o seu lugar adquirido. Ainda podemos atentar para as roupas utilizadas pelo sujeito do discurso, são maltrapilhas, representando as mesmas utilizadas por um trabalhador comum.

Considerando agora a interpretação realizada pelos alunos, podemos destacar que os mesmos conseguiram assimilar o conteúdo veiculado e fazer uma relação com a realidade que os cerca. Segundo Authier-Revuz (1982), todo discurso resulta do entrelaçamento entre outros discursos, portanto o texto não se apresenta como algo homogêneo. O discurso é heterogêneo e o sujeito é descentrado, não exercendo controle sobre o que vai dizer. Percebemos isso, quando os alunos das duas duplas ao analisarem ao texto expressaram uma visão relacionando o texto à situação de todos os brasileiros.

Ainda é preciso atentar para as idéias de Dialogismo e Polifonia apresentadas por Bakhtin (1992). Por trás do discurso apresentado pelos discentes, outras vozes se manifestam, uma vez que a opinião expressa por eles é a mesma de milhares de outros brasileiros, principalmente daqueles que dependem do atendimento do SUS.Também foi possível perceber que, para que houvesse a construção de sentido foi preciso o diálogo entre o discurso da saúde e o da religião. Foi o entrelaçamento entre esses dois discursos que fizeram com que o texto fosse compreendido na sua dimensão social, cumprindo assim o papel a que a charge se propõe, ou seja, fazer uma crítica a um fato atual da sociedade, alertando as pessoas para que as mesmas se tornem conscientes dos problemas que ocorrem no país.

Mesmo não atentando para alguns aspectos da charge como: a cor, as roupas utilizadas, a cruz, os alunos conseguiram fazer a sua compreensão e expressar uma opinião em relação ao conteúdo veiculado, desenvolvendo assim o seu senso crítico e tendo a sua identidade sendo influenciada. Observando a análise feita por eles, é possível perceber que transmitem toda uma ideologia.

Observemos agora a charge 2 e a análise dos alunos:



Dupla B: "Nesta charge, entendemos que não devemos fugir dos nossos deveres, pois todos nós devemos pagar nossos impostos, para não sermos perseguidos pelo governo. Senão pagarmos , de qualquer forma, seremos cobrados e teremos que pagar com juros. Por isso mesmo contra nossa vontade, devemos está com o nome limpo, para podermos investir em outros benefícios. Fugir dos nossos problemas não adianta e sim teremos que enfrentá-los. O leãozinho que aparece no texto não é nenhum trombadinha, ele está apenas lembrando dos nosso imposto de renda".

Esta charge foi publicada no dia 07 de Abril de 2008 e o autor nos leva a refletir sobre os impostos que pagamos nesse país. Um deles é o imposto de renda, no qual milhares de pessoas são obrigadas a pagar um absurdo de dinheiro por ter consideravelmente uma renda alta. No texto acima, o pai compara esse imposto com os trombadinhas, dizendo que tanto um como o outro mete a mão no nosso bolso do mesmo jeito.

O humor presente na charge se dá através das imagens dos personagens que estão envolvidos, pelo exagero dos traços, mostrando além do aspecto visual, do alvo que se pretende atingir, uma crítica a realidade brasileira. O texto apresenta julgamentos e compreensões que influenciam na opinião do leitor, estabelecendo uma cumplicidade entre autor e leitor num mesmo contexto social. A compreensão passa do plano interindividual para o intraindividual. Isso implica dizer que para que haja compreensão nesse gênero um dos princípios básicos é a interação. Se o leitor não possui conhecimentos prévios em relação ao fato retratado, será muito difícil a sua assimilação.

Percebemos ainda que, há no texto a presença de dois discursos: o de que trombandinha é ladrão e outro que somos roubados pelo governo. É deste último que temos que correr, mas mesmo que façamos isso, não há como escapar. A linguagem utilizada pelo caricaturista explora a possibilidade de sintetizar ou condensar uma idéia complexa numa imagem criativa.Isso possibilita a adesão do leitor ao conteúdo enunciado.

Muitas vezes, o leitor não consegue compreender o conteúdo da charge. Os alunos ao lerem o texto acima poderiam não compreendê-lo, pois não são pagadores do imposto de renda, mas o autor se utiliza de imagens do senso comum para nos passar a idéia de que não é só trombadinha que é ladrão. Pode acontecer também que o leitor não consiga captar as pistas deixadas para a sua compreensão, mas este problema é de fácil resolução, pois o próprio jornal acaba fornecendo recursos que auxiliarão ao leitor nessa tarefa.

Na construção composicional, o autor refere-se a personagens reais, trata-se de tipos socialmente reconhecíveis, podendo ser qualquer um de nós. A ironia do texto se dá principalmente na fala do pai quando ele diz ao filho: "corre que ele põe a mão no bolso do mesmo jeito". O discurso apresentado não se constitui em algo novo, em algum momento ele já foi utilizado. Diante disso, Focault (1969) diz que o nosso discurso não será algo inédito, a novidade estará no retorno desse dizer. O que será de novidade será o contexto histórico-social em que ele foi empregado. Por isso, ao trabalhar com a Análise do Discurso estaremos observando não o que foi dito, mas justamente o que ficou por dizer, o explícito não interessa porque já é perceptível.

Os alunos ao analisaram o texto levaram em consideração os enunciados num plano dialógico, confrontando tanto os seus dizeres como os dizeres dos outros. Compreender nesse sentido não é somente reconhecer o que foi dito, mas o que está por trás desse dizer. Não se trata de um processo de identificação, o que é realmente importante é a construção de sentidos levando em conta o seu conteúdo ideológico, não só do ponto de vista enunciativo, mas também das condições de produção e da interação entre locutor e receptor.

Souza e Machado (2005) ainda dizem que:

O humor presente nesse gênero visa a persuadir, isto é, ao mesmo tempo que existe um "eu" que revela um determinado ponto de vista, esse mesmo "eu" pretende a penetrar na subjetividade do "outro" de forma que este compartilhe da mesma opinião.

Diante dessa afirmação de Souza e Machado, podemos perceber que a compreensão dos sentidos emitidos pelas charges revela um acordo entre leitor e autor. O diálogo não expressa a veracidade ou não dos fatos, mas sim uma posição que acaba sendo reforçada pelas imagens. Posição esta que acaba influenciando os seus interlocutores.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A charge é um texto atraente aos olhos do leitor, pois a linguagem verbal e visual nela empregada é de rápida leitura e transmite múltiplas informações de uma só vez. No entanto, para compreender o seu sentido o leitor precisa possuir um conhecimento de mundo acerca do tema abordado, para que possa captar seu teor crítico. Afinal de contas, trata-se de um gênero temporal, focalizando e sintetizando um certo contexto histórico-social, portanto somente os que o conhece efetivamente conseguirão compreender os conteúdos veiculados.

Considerando a categoria de análise que nos propusemos a observar, percebemos que o discurso chargístico quando atingido de forma adequada, pode funcionar como um excelente meio para que o aluno reflita sobre fatos cotidianos e se torne mais consciente da sua realidade. Dessa forma, a sua identidade estará sendo influenciada, uma vez que todas as transformações que acontecem na sociedade acabam afetando na forma como somos e agimos.

Baseado, sobretudo, no humor, as charges apresentam por trás de um discurso aparentemente inofensivo e irreverente o cotidiano da vida social, questionando nossos valores, crenças e fazendo com que o leitor se questione em relação ao que é ao que poderá se tornar. É a partir da imagem do outro, que vamos construindo a imagem que temos do mundo e de nossos mesmos. Assim sendo, o discurso passará a ser entendido como uma ação que transmite toda uma ideologia.

Diante do exposto, podemos perceber que as charges se constituem num excelente meio para desenvolver a criticidade do aluno. Afinal de contas, a escola precisa ser formadora de cidadãos conscientes da sua realidade e capazes de interagir nela. O papel do professor deve ser o de formador de opinião, orientando os educandos para que estes percebam que o exercício da cidadania é dependente da capacidade de compreendermos e atuarmos nas situações que envolvem valores e posicionamentos. Enfim, é preciso que os discentes percebam que estamos inseridos em práticas sociais e ao interagirmos estamos construindo o nosso mundo e o dos outros, em um processo dinâmico e contínuo.

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[1] Possui Graduação em Letras, Especialização em Lingüística Aplicada ao Ensino de Língua Portuguesa pela FIP e Especialização em Língua Portuguesa da UEPB.Professora do Ensino médio do município de Juazeirinho-PB. Atualmente é aluna do Mestrado em Linguagem e Ensino da UfCG.