Direitos e garantias constitucionais e processuais ASSEGURADOS AO INDICIADO NA PERSECUÇÃO PENAL *

 

Danielle Murad Fernandes**

Luana Christian de Araújo Muniz***

 

 

Sumário: Introdução; 1 Inquérito policial; 2 Indiciamento; 2.1 Possibilidade de desindiciamento; 3 Princípios, direitos e garantias constitucionais assegurados ao indiciado; 3.1 Mitigação dos direitos e garantias constitucionais e processuais assegurados ao indiciado no inquérito policial; Conclusão; Referências.

 

 

 

RESUMO

O presente paper pretende discutir o indiciamento como instrumento que cria e, ao mesmo tempo, viola direitos e garantias constitucionais. O ato de indiciar torna o individuo sujeito à investigação preliminar, imputando-lhe uma série de cargas e direitos. Se com o indiciamento ele se torna mais submisso aos atos da investigação, em contrapartida ele adquire direitos, dentre os quais o de não ser submetido a tratamento desumano, o de ter respeitada sua integridade física e moral, o de permanecer em silêncio e até os mais polêmicos, como os direitos da ampla defesa e do contraditório. No entanto, para que isto ocorra, é necessário que o indiciamento seja acompanhado de fortes indícios e razões. Significa dizer que o ato de indiciar pressupõe uma boa fundamentação. E se assim não a tem, viola o direito à ampla defesa e o respeito a sua integridade moral, configurando, inclusive, constrangimento ilegal. O que se observa, portanto, é que o indiciamento faz surgir direitos que vão ser violados. Por essas razões é mister esclarecer de que forma esse “surgir” e “violar” coexistem ao longo do indiciamento.

Palavras-chave: Indiciamento. Direitos e garantias constitucionais. Fortes indícios. Violação. Coexistência.

INTRODUÇÃO

 

Durante a fase de investigação preliminar no processo penal, especificamente no inquérito policial, há um momento bastante curioso e polêmico, qual seja o do ato de indiciar. Sem muitas previsões legais - apenas com referências à figura do indiciado- o indiciamento confere maior certeza quanto à autoria do crime, pois de posse de fortes indícios, cumpre ao Delegado de Polícia indiciar o individuo, colocando-o como provável autor. Deste ato decorre uma série de direitos e garantias previstas tanto constitucionalmente quanto processualmente. Ocorre, porém, que ao mesmo tempo em que cria o ato de indiciar, se não forem cumpridos os requisitos indispensáveis à sua propositura, podem ser violados esses direitos e garantias constitucionais e processuais, impedindo, inclusive, a ampla defesa.

Tendo como parâmetro esses fatos, mister analisar a coexistência entre surgimento e violação dos direitos. Para tanto, valendo-se de uma linha de raciocínio lógico, no primeiro capítulo analisar-se-á em que efetivamente consiste o inquérito policial, apresentando seus pressupostos, conceitos, procedimento e etapas.

Em seguida, no segundo capítulo, mostrar-se-á de forma clara e concisa, mas objetivando sempre o aprofundamento pertinente, o instituto do indiciamento e a possibilidade de desindiciamento.

Por fim, no terceiro capítulo levantar-se-á o ponto central do trabalho: evidenciar os princípios, os direitos e garantias constitucionais e processuais inerentes ao Indiciado, enquanto sujeito passivo do Inquérito Policial. Mostrar-se-á também neste tópico que, apesar de serem reconhecidos direitos e garantias ao indiciado, é notório que não há sua plena aplicação no Inquérito Policial. Não raramente esses direitos e garantias são violados.

 

1 INQUÉRITO POLICIAL

 

No ordenamento jurídico brasileiro, o processo penal é dividido em duas fases principais: investigação preliminar criminal e ação penal. A primeira delas é também chamada de fase pré-processual, pois ainda não há um processo efetivo. O que se tem aqui são investigações policiais, e, a depender do rumo delas, os seus resultados poderão fazer surgir uma ação penal. Essas investigações constituem o inquérito policial.

O inquérito policial, conforme disposto no art. 4º do Código de Processo Penal, será exercido pelas respectivas autoridades policiais no território de circunscrição com o escopo de identificar os crimes e seus autores. É dizer, o inquérito policial é “o procedimento administrativo, preparatório e inquisitório, presidido pela autoridade policial, e constituído por um complexo de diligências realizadas pela polícia judiciária com vistas à apuração de uma infração penal e à identificação de seus autores” (BONFIM, 2007, p. 1000). Em outros termos, é “atividade específica da polícia denominada judiciária, isto é, a polícia civil, no âmbito das Justiças estaduais, e a polícia federal, no caso da Justiça Federal, e tem por objetivo a apuração das infrações penais e de sua autoria” (OLIVEIRA, 2003, p.28).

Apurar a infração penal é colher informações a respeito do fato criminoso. Para tanto, a Polícia Civil desenvolve laboriosa atividade, ouvindo testemunhas, tomando declarações da vítima, procedendo a exames periciais, nomeadamente os de corpo de delito, exames de instrumento do crime, determinando buscas e apreensões, acareações, reconhecimentos, ouvindo o indiciado, colhendo informações sobre todas as circunstâncias que circunvolveram o fato tido como delituoso, buscando tudo, enfim, que possa influir no esclarecimento do fato. Apurar a autoria significa que a Autoridade Policial deve desenvolver a necessária atividade visando a descobrir, conhecer o verdadeiro autor do fato infringente da norma. (TOURINHO FILHO, 2003, p. 63/64).

 

A finalidade do inquérito é, portanto, colher todas as informações possíveis, valendo-se de todos os meios legais cabíveis. Seja ouvindo testemunhas e vítimas, seja realizando perícias, seja promovendo acareações ou outros meios. O objetivo é adquirir toda informação capaz de esclarecer o fato criminoso e que conduza para a real identificação do autor do crime.  É dizer, “o inquérito tem por finalidade fornecer, ao órgão estatal incumbido da persecução judicial, os elementos necessários para o ajuizamento da ação penal, especialmente sobre a materialidade e a autoria dos fatos apontados, em tese, como penalmente típicos” (BETANHO, 2004, p.89).

Inicialmente a competência é ratione loci, ou seja, em razão do lugar. Significa dizer que, a priori, investigação cabe àquele distrito em que ocorreu o crime. “Essa atribuição, no entanto, não é rigorosa: em cidades divididas em mais de um distrito, bem como nos grandes centros, uma autoridade policial pode determinar diligencias em outras circunscrições, independentemente de precatórios, ofícios e outras formalidades” (BETANHO, 2004, p. 90). Do mesmo modo, é possível competência ratione materiae, quando houver delegacias especializadas, a exemplo da delegacia da mulher, delegacia contra crimes informáticos, etc.

Via de regra, é atividade típica da polícia. Todavia, o § único do art. 4º, do CPP, admite a possibilidade – desde que prevista em lei- de inquérito extrapolicial, “isto é, elaborados por autoridades outras que não as policiais, inquéritos esses que têm ou podem ter a mesma finalidade dos inquéritos policiais” (TOURINHO FILHO, 2003, p. 64).

Pois bem, certo é que, conforme disposto no art. 5º do Código de Processo Penal, apenas será instaurado de ofício pela autoridade policial quando se tratar de crimes de ação penal pública incondicionada. Se a ação penal pública for condicionada à representação ou requisição será instaurado mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo. A autoridade pode indeferir requerimento do ofendido ou de quem o represente, porém, contra esse despacho é cabível recurso perante o chefe de Polícia (art. 5, §2º). Ao revés, não pode a autoridade policial indeferir requisição do Ministério Público, posto que “requisição é exigência legal. Requisitar é exigir legalmente. Já a palavra requerimento traduz a ideia de solução de algo permitido em lei” (TOURINHO FILHO, 2003, p. 73). Se o crime for de ação penal privada, o §5º, do art. 5º, dispõe que a autoridade policial apenas poderá instaurar o inquérito se o ofendido, ou quem legalmente o represente, intentar.

Mister ressaltar que o inquérito policial é um instrumento informativo. Nele, conforme já dito, a autoridade policial irá colher todas as informações capazes de identificar o crime e sua autoria. Essas informações permitem que aquele que tenha a titularidade da ação penal exerça o jus persequendi in judicio. “Se essa é a finalidade do inquérito, desde que o titular da ação penal (...) tenha em mãos as informações necessárias, isto é, os elementos imprescindíveis ao oferecimento de denuncia ou queixa, é evidente que o inquérito será perfeitamente dispensável”. (TOURINHO FILHO, 2003, p. 67)

Além do caráter dispensável – desde que já se tenha as informações necessárias- o inquérito policial tem natureza administrativa e “são seus caracteres: ser escrito (art. 9º do CPP), sigiloso (art. 20 do CPP) e inquisitivo, já que nele não há contraditório. (...) Não se pode dizer seja o inquérito contraditório. Primeiro, porque no inquérito não há acusado; segundo, porque não é processo” (TOURINHO FILHO, 2003, p. 67). Outro fator importante ressaltar é que “o inquérito policial serve também como elemento de ‘filtragem’ do sistema penal, ao prevenir a movimentação do Poder Judiciário para o processamento de fatos não esclarecidos ou de autoria ainda desconhecida” (BONFIM, 2007, p. 101).

Fato é que, uma vez instaurado o inquérito, a autoridade policial irá seguir um procedimento, cumprindo uma série de diligências. O Código de Processo Penal traz em seu art. 6º quais essas regras. Pela sequência disposta no referido artigo, a autoridade policial deverá: dirigir-se ao local, isolando-o; promover a apreensão dos objetos relacionados ao fato, depois de liberado pelos peritos; colher todas as provas capazes de esclarecer o fato e suas circunstâncias; ouvir o ofendido; ouvir o indiciado (observando o disposto no capítulo III, do Título VII) devendo o termo ser assinado por duas testemunhas que tenham ouvido a leitura; promover o reconhecimento e realizar acareações; se entender necessário, determinar que seja feito exame de corpo de delito e outras perícias; promover a identificação do indiciado, juntando aos autos, quando houver, a folha de antecedentes e, por fim, analisar a vida pregressa do indiciado em todos os seus aspectos, antes e depois do crime, averiguando tudo que possa contribuir para identificar seu caráter e temperamento.

Cumpridas todas estas etapas, se entender necessário para identificar de que modo ocorreu o crime em questão, pode a autoridade policial proceder à reprodução simulada dos fatos, desde que não contrarie a moralidade e ordem pública. É o que dispõe o art. 7º do CPP.

Por fim, no que se refere à forma de encerramento do inquérito policial, o art. 10 do Código de Processo Penal, estabelece que deve encerrar-se no prazo de 10 (dez) dias, se o indiciado estiver preso, ou por prisão em flagrante ou de modo preventivo, contados do dia em que executar o ato de prisão, e o prazo de 30 (trinta) dias se o investigado estiver solto. Ressalta-se que “Na Justiça Federal, o prazo é de quinze dias, estando preso o acusado, podendo, todavia, ser prorrogado por mais quinze, nos termos do art. 66 da Lei 5.010/66” (OLIVEIRA, 2003, p. 31).

Concluída a investigação, seja pelo esgotamento do prazo determinado em lei, ou entendendo estarem exauridas as investigações, pela determinação e conclusão de todas as diligências que poderiam ter sido realizadas com vistas à apuração da infração penal objeto do inquérito, a autoridade policial dará por encerrado o inquérito policial. O término do inquérito não pressupõe necessariamente que todas as dúvidas acerca do fato investigado tenham sido resolvidas, mas apenas que foram realizadas todas as diligências possíveis. Se a autoridade policial não vislumbrar a possibilidade de reunir elementos suficientes corroborando a suspeita inicial, ou se encontrar elementos que demonstrem a inocência do investigado, o inquérito poderá igualmente ser encerrado. (BONFIM, 2007, p. 126).

 

Assim, seja porque esgotou o prazo, seja porque não há mais diligências para cumprir, seja porque as investigações provaram a inocência do investigado, o inquérito policial poderá ser encerrado. Com a conclusão do inquérito a autoridade policial deverá expor minuciosamente o apurado por meio de um relatório. Esse relatório “deverá conter apenas a narrativa, isenta e objetiva, dos fatos apurados. A autoridade policial não deve emitir juízo de valor ou tecer considerações acerca da culpabilidade do investigado ou da antijuridicidade da conduta” (BONFIM, 2007, p. 127). Feito o relatório, este será juntado aos autos, e encaminhado ao juiz competente.

É ainda possível que no encerramento seja determinado o arquivamento do inquérito. Quando as investigações são encerradas, se a polícia judiciária não puder emitir uma conclusão sobre os fatos, os autos deverão ser encaminhados ao Ministério Público que: oferece a denúncia; devolve à autoridade policial para que seja feita novas diligências indispensáveis; ou requere o arquivamento “seja por entender inexistente o crime (...), seja por aceitar insuficiente o material probatório disponível (ou o alcance de novas diligências), no que se refere à comprovação da autoria e da materialidade” (OLIVEIRA, 2003, p. 33).

Quando o juiz recebe o requerimento “concordando ele com o pedido formulado pelo órgão do Ministério Público, será determinado o arquivamento dos autos, somente podendo ser reabertas as investigações a partir do surgimento de novas provas” (OLIVEIRA, 2003, p. 33). Essa é a hipótese de arquivamento direto. É ainda possível hipótese de arquivamento indireto quando o Ministério Público entender que aquele juízo não é o competente para julgar o caso. “Dessa forma, deve manifestar-se requerendo ao juiz que decline a competência para o juízo competente, remetendo os autos em seguida. Concordando o magistrado com os argumentos do Ministério Público, não há maiores implicações.” (REIS, 2010, p. 55).

Vale ressaltar que, mesmo estando arquivado, é admissível realizar investigações no inquérito. Mas, “é claro que o desarquivamento depende de que as evidências sejam realmente novas, ou seja, diversas daquelas que já constam no inquérito.” (BETANHO, 2004, p. 141). É o que dispõe o art. 18 do CPP.

Pois bem, de todas as diligências pelas quais a autoridade policial deve executar, observa-se que em várias delas faz-se referência à figura do indiciado. O indiciado é assim qualificado durante a etapa do indiciamento que será objeto de análise do próximo capítulo.

 

2 INDICIAMENTO

 

O indiciamento é a etapa do inquérito policial em que o individuo é retirado da condição de suspeito e enquadrado como indiciado. A Lei nº 12.830/13 veio regular e instituir a previsão legal do indiciamento determinando no art. 2º, § 6o,que “o indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”.

A partir do exposto na Lei, o que se observa é que o indiciamento “é ato exclusivo da autoridade policial que forma seu convencimento sobre a autoria e a materialidade do crime, elegendo o suspeito da prática criminosa.” (ROMANO, 201[?], p.1). Cabe, portanto, exclusivamente à autoridade policial instaurar o inquérito policial e, via de consequência, promover o indiciamento. Em outras palavras, “o indiciamento consiste no ato formal de se atribuir a autoria de uma infração penal típica, antijurídica e culpável a uma pessoa determinada.” (SANTOS, ZANOTTI, 2013, p.161).

 “O indiciamento é, assim, um ato posterior ao estado de suspeito e está baseado em um juízo de probabilidade, e não de mera possibilidade” (LOPES JR; GLOECKNER, 2013, p. 431). A probabilidade se traduz em indícios fortes e razoáveis e não apenas em suposições. Desta forma, “a partir do momento em que convergirem os indícios apontando uma certa pessoa (ou certas pessoas) como responsável penal pelo crime, deve ela ser formalmente indiciada” (BETANHO, 2004, p. 139).

Havendo fortes indícios que convençam a autoridade policial da autoria do delito, “nasce para o Delegado de Polícia o ‘poder dever’ de efetuar o indiciamento. No entanto, a Autoridade Policial que procede ao indiciamento sem preencher esses requisitos pratica constrangimento ilegal, admitindo-se a utilização do habeas corpus como instrumento hábil para sanar essa lesão” (SANTOS, ZANOTTI, 2013, p. 161). É dizer, a falta de um desses elementos caracteriza o indiciamento como constrangimento ilegal, “na medida em que significa ofensa ao status dignitatis e ameaça ao direito de locomoção. Daí por que se tem concedido habeas corpus para impedir ou tornar sem efeito o indiciamento feito sem um mínimo de elementos de prova de autoria, ou seja, com abuso ou por mera presunção” (BETANHO, 2004, p. 140).

Havendo, pois, a devida fundamentação, o indiciamento pode ser realizado a qualquer momento no curso do inquérito policial. Após a denúncia o delegado não poderá indiciar ninguém. “O indiciamento formal dos acusados, após o recebimento da denúncia, submete os pacientes a constrangimento ilegal e desnecessário, uma vez que tal procedimento, que é próprio da fase inquisitorial, não mais se justifica quando a ação penal já se encontra em curso” (HC 182.455/SP).

A ocorrência de constrangimento ilegal quando ausente a justa causa se justifica na medida em que se observa quais as consequências do indiciamento. Conforme dito alhures, esse procedimento muda o status da pessoa, passando-a de suspeita à posição jurídica de indiciada. “A pessoa passa a ter o direito de ficar calada e de não se incriminar, bem como nasce para o Delegado de Polícia o dever de averiguar a vida pregressa dessa pessoa e efetuar sua identificação criminal, caso seja legalmente cabível” (SANTOS, ZANOTTI, 2013, p. 162).

Ressalta-se, por fim, que o ato de indiciar pode ser feito de duas formas: “o indiciamento direto, que ocorre quando o sujeito não está foragido; e o indiciamento indireto, que tem lugar quando o sujeito está foragido ou em local desconhecido” (SANTOS, ZANOTTI, 2013, p. 162). Ou seja, diretamente se seu paradeiro é conhecido e de modo indireto quando não conseguir localizar o indiciado.

 

 

 

 

2.1 Possibilidade de desindiciamento

 

O investigado com “o indiciamento passa a ser considerado provável autor, condição que obviamente poderá ser elidida posteriormente, durante o inquérito ou já após o ajuizamento de ação penal, com a produção de prova favorável ao indiciado” (BONFIM, 2007, p.125). É dizer, é possível, sim, o desindiciamento.

O indiciamento, como se verá mais adiante, faz surgir uma série de direitos. Por essa razão, o indiciado não é apenas um objeto da investigação, mas um sujeito de direitos – e, por conseguinte, de deveres. E por ser assim “surge para o Delegado de Polícia o dever de analisar a todo o momento a constitucionalidade e a legalidade dos atos que foram praticados e que serão praticados no curso do inquérito policial” (SANTOS, ZANOTTI, 2013, p.164).

Significa dizer que a autoridade policial deverá sempre analisar se ainda há os elementos que levaram ao indiciamento, pois “a manutenção de um indiciamento que não mais se sustenta acarretaria, entre outras consequências, a prática do constrangimento ilegal pela autoridade policial e a violação de direitos fundamentais” (SANTOS, ZANOTTI, 2013, p.164). Não havendo mais qualquer um dos elementos, o delegado deverá promover o desindiciamento. Ocorre, porém, em situações excepcionais e deve-se ter muita cautela.

 

3 PRINCÍPIOS, DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS ASSEGURADOS AO INDICIADO

                   Os princípios fundamentais permeiam todo o ordenamento jurídico brasileiro e se concretizam na forma de direitos e garantias assegurados ao indiciado. Enquanto sujeito de direitos e deveres processuais o indiciado é protegido por uma série de direitos que tem como finalidade garantir uma posição processual apta a assegurar sua defesa e contribuir com a decisão final do processo.

A dignidade da pessoa humana é o princípio basilar de todo o ordenamento jurídico brasileiro: assegura ao indiciado o direito de não ser “coisificado”, isto é, de não ser tratado como objeto na persecução penal (LOPES JR; GLOECKNER, 2013, p. 438). É composto de forte carga axiológica de forma a atuar no ordenamento constitucional como conjunto de valores que objetivam proporcionar um mínimo necessário para uma existência digna (SARLET, 2001). Assim, da mesma forma que assegura a todos o direito à honra, intimidade e igualdade, o princípio da dignidade da pessoa humana funciona como um limitador do poder punitivo do Estado, na medida em que busca impedir que o cidadão, inclusive o indiciado, seja submetido a tratamentos desumanos e outras situações desonrosas (SARLET, 2001). Corroborando com o exposto, o indiciado deve ser encarado como sujeito de direito, e não como objeto de investigação. (LOPES JR; GLOECKNER, 2013, p. 438).

O direito de ampla defesa por sua vez surge em razão da hipossuficiência do acusado ante a força do Estado detentor do poder punitivo. Por esse motivo, devem ser garantidos instrumentos aptos a proporcionar ao investigado formas de efetivar seus direitos e resistir à pretensão punitiva estatal (LOPES JR; GLOECKNER, 2013). O direito de defesa, portanto, deve estar presente em qualquer momento ou grau de jurisdição, inclusive durante a realização do inquérito policial. Quanto ao exercício do contraditório decorrente do direito de defesa, consiste na possibilidade de influenciar na decisão judicial eventualmente proferida; pressupõe a comunicação ao indiciado sobre o andamento processual e a faculdade de manifestação a tempo e modo oportunos (LOPES JUNIOR, 2008).

O direito à igualdade assegura ao indiciado o direito de ter a mesmas oportunidades de fazer valer seus direitos durante a investigação criminal que a vítima. Os sujeitos no procedimento penal devem ser tratadas igualitariamente, na medida de suas igualdades (CAPEZ, 2003). Pelo direito à igualdade, abarcado pelo princípio da dignidade humana, todos os atos que emanarem do Poder Público ao exercer sua função jurisdicional, devem estar pautados na equidade do tratamento dos sujeitos processuais, respeitando a isonomia constitucionalmente assegurada. No âmbito do Inquérito Policial a isonomia deve ser observada, principalmente, no tratamento oferecido à vítima e ao indiciado: ambos devem ter as mesmas oportunidades de fazer valer seus direitos durante a investigação criminal.

Os sujeitos no procedimento penal “devem ter as mesmas oportunidades de fazer valer suas razões, e ser tratadas igualitariamente, na medida de suas igualdades, e desigualmente, na proporção de suas desigualdades (CAPEZ, 2003, p.19)”. O indiciado não poderá ser posto em situação desvantajosa no processo, muito menos poderá recair sobre ele distinção de tratamento que o inferiorize na persecução penal, pois lhe é assegurado igualdade de direitos. O indiciado não poderá ser posto em situação desvantajosa no processo, muito menos poderá recair sobre ele distinção de tratamento que o inferiorize na persecução penal, pois lhe é assegurado igualdade de direitos.

A legalidade por sua vez, garantia assegurada ao indiciado, insere limites ao poder estatal de processar, pois dita que apenas o que está na lei poderá ser aplicado: a persecução processual penal deverá obedecer às determinações legais, os ritos e formas previstos na lei processual penal (MORAES, 2003, p.197). Assim, ao indiciado é garantido que todos os atos praticados durante a investigação criminal devam estar pautados na norma legal: o indiciamento só poderá se instaurar validamente quando existirem indícios razoáveis de probabilidade da autoria, conforme dita a lei – não ocorre automaticamente conforme as vontades da autoridade policial (LOPES JR; GLOECKNER, 2013, p. 431-432). Como consequência disto, o indiciado não é obrigado a se submeter a qualquer pratica que não esteja em conformidade com o prescrito em lei.

                   Por sua vez “o direito ao silêncio, em especial nos interrogatórios, tem por objetivo resguardar a personalidade humana, como amplamente considerada, ou seja, em sua liberdade, segurança, saúde e intimidade” (SZNICK, 2002, p. 145).

Presente no art. 5º, inciso III da Constituição Federal de 88, tem-se a proibição da tortura e qualquer outra forma de tratamento desumano ou degradante. É assegurado ao indiciado o respeito à integridade física e moral de modo que nenhum dos atos praticados na investigação criminal poderão molestá-lo. A observância de tal garantia é fundamental no processo de indiciamento, pois a situação de indiciado coloca o sujeito em posição de maior sujeição à investigação preliminar. Ora, o direito de não ser submetido a tratamentos desumanos ou degradantes deve ser respeitado e garantido, especialmente ao preso indiciado, pois este não necessariamente será o réu com a propositura da ação penal (LOPES JR; GLOECKNER, 2013, p. 442-445).

O devido processo legal assegura ao indiciado que durante todo o desenvolvimento do inquérito policial, o procedimento será executado de maneira coesa, respeitando todas as formalidades legais e garantindo os direitos do indiciado. A observância do devido processo penal, atua tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade do indiciado quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade de condições com o Estado persecutor, impedindo transgressões e resguardando as garantias individuais dos sujeitos e o iuris puniendi do Estado (MORAES, 2003, p.361).

 

3.1 Mitigação dos direitos e garantias constitucionais e processuais assegurados ao indiciado no inquérito policial

 

O processo a ser observado na persecução penal não pode ser encarado como simples instrumento através do qual o Estado exerce seu poder punitivo: tem a finalidade de limitar o poder punitivo do Estado e, principalmente, garantir o respeito aos direitos e garantias assegurados pelo ordenamento pátrio ao indiciado submetido a investigação criminal (LOPES JR, 2008). Assim, considerando os objetivos e finalidades do inquérito policial enquanto preparação para a propositura de uma futura ação penal se faz necessário estabelecer garantias processuais na fase preliminar da persecução penal (LOPES JR, 2008).

Contudo, é possível constatar que o ato de indiciar em razão da insuficiência de regulamentação legal, apesar de originar uma série de direitos e garantias ao indiciado, pode causar a mitigação desses mesmos direitos e garantias constitucionais que origina caso haja o descumprimento dos requisitos indispensáveis à sua instauração de forma válida. Para corroborar tal afirmação, faz-se necessário apresentar a forma como alguns dos direitos e garantias (em especial o contraditório e ampla defesa) apresentados anteriormente são tratados durante o inquérito policial.

O inquérito policial destina-se ao órgão da acusação na medida em que objetiva produzir provas que servirão de fundamento para a propositura (ou não) da ação penal. Como consequência não possui valor probatório que influencie o convencimento do juiz no sentido de condenar o imputado, pois as provas e informações obtidas nessa fase procedimental administrativa não foram produzidas com a participação do investigado, que, segundo lecionam alguns doutrinadores, não possui direito a ampla defesa, ao contraditório e a produção de provas (para que estas sejam produzidas se faz necessária autorização da autoridade policial).

                 O direito de defesa decorrente do princípio da ampla defesa e contraditório segundo alguns doutrinadores não existe no inquérito policial por ser este sigiloso e ‘não contraditório’(LOPES JUNIOR, 2008, p. 301). Para tais doutrinadores “o inquérito, tem mesmo de plasmar-se por um procedimento não contraditório, porque ali ainda não existe acusado, mas apenas indiciado” (MARQUES, 1997, p. 89). Adotando esta perspectiva é possível constatar que o indiciado é tratado como objeto da persecução penal, e não sujeito de direitos. O inquérito entendido como procedimento administrativo, é uma fase pré processual e não se confunde com a instrução criminal em si. Por esse motivo, em tese, não se aplicam os princípios processuais assegurados constitucionalmente ao processo JUDICIAL.

                 Ora, tal perspectiva se mostra inadequada. Todos os princípios e garantias processuais devem ser aplicados e respeitados durante persecução penal, independentemente de que fase da investigação esteja sendo realizada, pois se isso não ocorre há a violação de valores caros ao ordenamento jurídico.

                 O contraditório e o direito de defesa no inquérito policial devem ser aplicados, o indiciado tem o direito de exercer a autodefesa positiva ou negativa, apresentar sua versão dos fatos ou de manter calado, valendo-se de seu direito de silêncio e igualdade, preservando sua dignidade enquanto sujeito de direitos que é (LOPES JUNIOR, 2008, p.302).

                 Não é o indiciado mero objeto de investigação. É indispensável a persecução penal justa e adequada a observância das garantias individuais do cidadão, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, igualdade, dignidade. Sendo possível concluir que não há motivos justificáveis que vedem a aplicação dos princípios e garantias constitucionais no inquérito policial.        

                 Assim, o inquérito policial por possuir liberdade de forma, por vezes acarreta violação de direitos e garantias assegurados ao indiciado enquanto sujeito de direitos, não proporcionando resultados satisfatórios. Por vezes, em razão da inobservância dos direitos do indiciado, há o predomínio do poder de punir e da força sobre a razão e a igualdade que devem existir na persecução penal.

CONCLUSÃO

                   Atualmente, é possível constatar que os direitos e garantias constitucionalmente assegurados ao indiciado não são exercidos em sua plenitude, não obstante sendo mitigados na persecução penal. As normas presentes na Constituição Federal de 1988 que trazem princípios, direitos e garantias ao cidadão devem ser aplicadas de forma irrestrita, seja durante o processo penal em si, seja na fase preliminar que precede a propositura da ação penal, pois todo procedimento processual penal deve estar em harmonia com a ordem constitucional.

                   Para tanto, não parece adequado que normas constitucionais sejam interpretadas de forma isolada: deve-se realizar interpretação sistemática analisando as normas em conjunto de maneira a superar a atual imprecisão existente em torno da situação jurídica do indiciado em razão da ausência de regulamentação legal específica que restrinja a discricionariedade da autoridade policial existente durante a realização do inquérito.

                A persecução penal busca revelar a verdade dos fatos e a efetivação da Justiça, não devendo olvidar a necessidade de real efetividade dos direitos e garantias assegurados pela Constituição e pelo Código de Processo Penal. Durante a fase pré processual deve-se buscar, acima de tudo, o exercício adequado de defesa e dignidade do indiciado.

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

BETANHO, Luiz Carlos. Aspectos Gerais do inquérito policial. In: Código de Processo Penal e sua interpretação jurisprudencial. Coordenação: Alberto Silva Franco, Rui Stoco. 2ª. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2004.

 

BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. 2ª. ed. ver. aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007.

 

BRASIL. Código de Processo Penal. In: Vade Mecum Saraiva compacto, 2014.

 

BRASIL. Lei nº. 12.830/13: Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12830.htm>. Acesso em 16 de abr. 2014.

 

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 182.455/SP. Disponível em: < http://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21104292/habeas-corpus-hc-182455-sp-2010-0151545-3-stj/inteiro-teor-21104293>. Acesso em 16 de abr. 2014.

 

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 10 ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2003.

 

LOPES JUNIOR, Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

 

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 3ª ed. rev. atual. vol. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

 

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. vol. I. Campinas: Bookseller, 1997.

 

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada e legislação

constitucional. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2003.

 

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 2ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

 

REIS, Rômulo Rocha dos. Inquérito Policial. Campo Grande, 2010. Disponível em: < http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=1055.29496>. Acesso em 07 de mar. 2014.

 

ROMANO, Rogério Tadeu. O PLC 132 e o novo indiciamento. Disponível em: < http://www.jfrn.jus.br/institucional/biblioteca/doutrina/doutrina317-o-plc-132-e-novo-indiciamenteo.pdf>. Acesso em 07 de mar. 2014.

 

SANTOS, Cleopas Isaías; ZANOTTI, Bruno Taufner. Delegado de polícia em ação: teoria e prática. Salvador: JusPodivm, 2013.

 

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2001.

 

SZNICK, Valdir. Princípios de defesa na Constituição. São Paulo: Iglu, 2002.

 

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.