DIREITOS DA PERSONALIDADE À LUZ DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA: UMA ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR E CRÍTICA 

Gilberto Gnoato[1]

Maria Francisca Carneiro[2] 

RESUMO

Neste artigo examinamos o conceito e a evolução história da personalidade, no âmbito da Psicologia. Em seguida, examinamos o estado de arte dos direitos da personalidade, na seara jurídica. Em conclusão, apresentamos sugestões para o aprofundamento interdisciplinar do diálogo entre as duas áreas do conhecimento, que são o Direito e a Psicologia. 

PALAVRAS-CHAVE 

Direito – Psicologia e Psicanálise – direitos da personalidade – sujeito-interdisciplinaridade. 

1 Introdução

                Atualmente, no âmbito do Direito brasileiro, muito se tem falado e agido na seara dos direitos da personalidade. No entanto, o conceito de personalidade é emprestado da Psicologia, em cujo bojo se encerram várias questões controversas a respeito da matéria, das quais o Direito nem sempre parece estar ao par. Com efeito, para o Direito, a ideia de personalidade parece assente e pacífica. No entanto, tal não é assim para a Psicologia.

                No presente artigo, vamos examinar primeiramente o desenvolvimento histórico e conceitual da personalidade na esfera epistemológica da Psicologia, verificando quais os seus principais impasses e questões.

                Em seguida, refletiremos sobre a ideia de direitos da personalidade no âmbito jurídico, com base em autores de escol.

                Por último, extrairemos algumas conclusões parciais a respeito, na expectativa de colaborarmos para com o debate interdisciplinar que se realiza entre a Psicologia, a Psicanálise e o Direito, no que se refere aos direitos da personalidade.  

2 Aspectos críticos do desenvolvimento do conceito de personalidade no âmbito da psicologia 

2.1 O paralogismo acadêmico 

Embora se utilize com muita frequência, a palavra personalidade é um termo dêitico, isto é, há um consenso sobre seu uso, mas não há reflexão sobre o seu significado. Daí, ouvimos no nosso irreflexivo cotidiano afirmações convictas de quealgumas pessoas teriampersonalidade e outras não. Algo da ordem do impossível, pois todos nós temos personalidade. O mesmo equívoco ocorre com a utilização da palavra cultura. Ouve-se dizer, inclusive no meio acadêmico que certas pessoas não teriam cultura. Também a mídia proclama um discurso dêitico sobre o termo, quando afirma que as políticas culturais antielitista, levarão cultura para as classes desfavorecidas. Equívoco. Todos nós temos cultura. DAmatta ( 1986). Se assim não o fosse, seríamos bichos em vez de gente; pois justamente o que nos diferencia do mundo animal é a capacidade humana de simbolizar e, sobretudo, transmitir cultura. (cultura como uma teia de significados comuns para a vida social. Ver (Geertz, 1989). Este artigo não tem o propósito de discutir o conceito de cultura, mas apenas alertar ao leitor sobre o deslizamento sociológico a que estamos sujeitos, quando aplicamos um paradigma classista e quantitativo sobre a concepção antropológica da palavra cultura. Deslize muito facilmente percebido quando, por exemplo, a etnologia marxista se utiliza um modelo teórico de entendimento das sociedades modernas, para analisar as sociedades sem classe e sem Estado. Esta comparação forçada obriga os marxistas a dividirem as sociedades do planeta em sociedades pré-capitalistas e sociedades capitalistas. Trata-se de um grande equívoco, pois a “economia primitiva” é uma economia que não tem nada a ver com a lógica do capitalismo.

O mesmo fórceps ideológico é alavancado no estudo das sociedades modernas, quando se tenta justificar o “empobrecimento cultural” das populações desabastadas. A crítica marxista sobre a desigualdade econômica reafirma a ideia de que as elites dominantes seriam possuidoras dos bens de consumo e da força de produção, enquanto que a classe operária desfavorecida não teria capitais, nem bens, nem acesso à educação e por fim também não teriam cultura. Concepção esta,materialista, classista e quantitativa que confunde cultura como sinônimo de educação e conhecimento. Teremos a oportunidade de mais adiante analisar paralogismos semelhantes, mas não necessariamente pelos equívocos marxistas que ocorrem; acerca do uso da palavra personalidade.

 

2.2A noção de personalidade e indivíduo: alguns equívocos radicais

 

 A noção de personalidade tem suas origens no início da história da psicologia quando esta disciplina ainda se aflorava da profunda influência que o paradigma naturalista exerceu nas primeiras décadas do século XX sobre a construção das ciências humanas. Historicamente, a psicologia nasceu do estudo da consciência e sua relação com o ambiente, através da atenção, percepção e linguagem. Categorias que o fundador da psicologia experimental, Wilhelm Wundt (1832-1920)

 

 

procurou desenvolver, assentando grande parte das suas experiências no modelo biológico e cerebral da consciência humana. Depois dele, outros autores reafirmaram a posição da psicologia como uma ciência natural, como foi o caso do seu aluno Titchener (1867-1927). Também a corrente funcionalista norte americana representada por J. Dewey (1858-1952), J. Angel (1869-1949) e H. A. Carr (1873-1954) e poucos anos mais tarde, também nos Estados Unidos, a psicologia comportamental de J. B. Watson (1878-1958) ou o behaviorismo radical de B. F. Skinner (1904-1990); mantiveram de forma redutiva, o estudo do comportamento humano, confinado ao positivismo experimental. Qual a importância destas informações para o propósito deste artigo? Com elas, gostaríamos de alertar ao leitor que algumas correntes psicológicas ainda hoje vigentes, se apoiam na concepção de um aparelho psíquico dirigido por uma semente biológica: a personalidade. No entanto, é a partir da ruptura com a psicologia norte americana que os estudos psicológicos contemporâneos introduziram nas suas investigações o enfoque sociológico e cultural; permitindo-nos assim ressignificar a noção de personalidade.

Até então, a psicologia esteve, de um lado, sobre o forte efeito das ideias de Charles Darwin e do outro, sob o efeito da razão aristotélica e positiva de Augusto Comete (1798-1857). O darwinismo reafirmava a existência de uma substância genética no comportamento e na evolução da espécie humana, enquanto que a tradição teofilosófica ,  introduzia a ideia de que o ser humano seria portador de uma essência única e  indivisa (a  etimologia da palavra indivíduo vem do latim “ individuu”  como uma entidade única, indivisa e singular.). Foi deste contexto que brotou a raiz seminal do conceito de personalidade, folheada por uma essência biológica e moral que daria ao indivíduo a ilusão de ser ele, o senhor de si. Tais atribuições potencializariam a força do indivíduo sobre a sociedade. Em outras palavras, reafirmava-se sua suposta autonomia e independência social, porque até então, indivíduo e sociedade eram tratados por disciplinas independentes. A psicologia se ocupava do indivíduo e a sociologia, da sociedade. No entanto, com o surgimento da psicologia social e com suas ressignificações a partir dos anos 80 no Brasil (Lane,1985), passa-se a levar em conta a sociedade, a  história e a cultura na constituição psicológica do ser humano. A Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) fundada em 1980 e os marcos teóricos de uma nova psicologia , formulada pelas obras de Silvia Lane e Wanderley Codo,  em 1981, marcaram a passagem da individualização do social, para a sociologização do indivíduo. Ao se aproximar os estudos da sociologia e da antropologia, a psicologia se desprende do paradigma biológico e da concepção substancialista de indivíduo e personalidade para acrescentar aos seus estudos, uma concepção dinâmica e interacionista do ser humano; diluindo o sólido conceito indiviso de personalidade, na superfície relacional da identidade.

 

2.3Indivíduo. Pessoa e Sujeito: três categorias distintas.

 

A Psicologia social brasileira de abordagem sócio-histórica (Bock, 2001) abandona definitivamente o conceito de personalidade e proclama a noção de identidade, inspirada no princípio da contradição e do ser em movimento, opondo-se ao princípio fixista da existência de “uma coisa em si”. Nada existe de substancial que tenha o poder de se auto constituir, senão na relação paradoxal com a exterioridade. Eis o panorama: De um lado, a escola americana se fundamentava na individualização da psicologia, pela influência do positivismo e do pragmatismo americano. Do outro lado, a escola soviética de psicologia, fundamentada na dialética marxista e encabeçada pelo psicólogo Vygotsky, procurava entender as marcas sociais na mente humana. Influenciado pela sociologia francesa, Vygotsky “foi o primeiro psicólogo moderno a sugerir os mecanismos pelos quais a cultura torna-se parte da natureza de cada pessoa” Vygotsky (2007, p. 24). Para a sociologia e por extensão para a nova psicologia social, indivíduos quando estão em grupo não agem como indivíduos, mas sim como pessoas. Etimologicamente a palavra pessoa vem de persona, máscara pelas quais saiam as falas dos atores na dramaturgia grega. Passou-se a considerar que somos atores sociais e desempenhamos papéis segundo o lugar que ocupamos na vida social. Somos o que dizemos ser, mas também somos aquilo que o grupo espera que sejamos. Estudos da sociologia de (Goffman, 1985 e Elias, 1994) nos mostram que tudo que fazemos na vida, fazemos de acordo com o outro; o nosso duplo. Qualquer ação social não ocorre no plano da individualidade e, portanto da personalidade, mas sempre numa relação ambígua com a exterioridade e, portanto, com os papéis que nos marcam como pessoas, resignando-nos a um sistema que é ao mesmo tempo supra e trans individual. Como pessoas deontológicas, teríamos mais obrigações sociais do que direitos individuais. Nossas ações sejam elas construtivas ou destrutivas, não existem como propriedade e produto de um indivíduo, mas sempre como processo relacional. O que é uma ação relacional? É aquilo que só existe e ocorre apenas com a presença de outra pessoa. O sociólogo Howard Becker desenvolveu um excelente estudo sobre o comportamento desviante, publicado na obra Outsider.(Becker,2009) entende, através da adoção de uma concepção interacionista de ação social, que não é possível analisar um ato de transgressão apenas concentrando o foco no indivíduo “desviante”. Sua teoria concebe uma abordagem relacional do desvio, na medida em que defende a ideia de que há um “sistema” em jogo que coopera para a ação desviante. Tudo que as pessoas fazem no cotidiano elas o fazem juntas, em pares, por um processo retro alimentador destas ações. Logo as ações do ser humano não é um produto do indivíduo, mas em última análise, dos indivíduos.

  As contribuições da Antropologia especialmente em (Mauss 2003) sobre os estudos que desenvolveu acerca da categoria pessoa e das representações coletivas nas sociedades tradicionais aliados aos estudos sobre o individualismo nas sociedades modernas (Dumont, 1992), possibilitam-nos compreender as dificuldades do ocidente em aceitar a noção de pessoa numa sociedade que se utiliza da lógica individualista, para que finalmente pudéssemos levantar a convicção de que não existe o “indivíduo” na sociedade, mas sima sociedade no “indivíduos”.

Encontramo-nos perante três categorias distintas. A noção de indivíduo, pessoa e sujeito. Vimos que a primeira nasceu da convicção sobre uma força centrípeta da psicologia acerca do ser humano, cujo centro da individualidade seria a personalidade. Esta concepção foi construída nas primeiras décadas do século XX por uma psicologia assentada no modelo positivista das ciências naturais e na cisão das disciplinas da época. A segunda categoria apresentada foi a noção de pessoa, derivada das contribuições da sociologia e da antropologia e entende que uma ordem maior imprime papeis sociais construídos pela cultura de pertencimento, cujo véu interage com a pessoa, fazendo-a agir, de forma geral, em nome do grupo social.

 Por fim a terceira categoria a ser apresentada aqui, trata da noção de sujeito. Os trabalhos de Sigmund Freud (1856-1939) vieram de um contexto muito particular para a época: a clínica. Assim, a psicanálise chegou até nós por um caminho muito distinto da psicologia e das outras disciplinas das ciências humanas. Enquanto estas estavam engatadas na biologia, na história, na cultura e na sociedade; a escutaclínica de Freud nasceu no âmbito do sofrimento humano e das interpretações  acerca das queixas apresentadas por seus pacientes. Sua estratégia para a compreensão dos problemas expostos por eles consistia em pedir para que simplesmente falassem sobre o que viesse em suas mentes. Através destas escutas, o fundador da psicanálise percebeu as angústias e a dimensãoambivalente do ser humano. Observou que algumas falas e lembranças surgiam no discurso mesmo que involuntariamente, ou que; em meio ao relato das queixas, havia lacunas que suprimiam a fala dos pacientes. Mesmo que quisessem falar, encontravam-se impedidos de continuar os relatos. Foi assim que Freud localizou,no inconsciente,  uma das mais fortes manifestações do ser humano.  Suas publicações iniciais produziram um impacto imenso na comunidade científica e, sobretudo no senso comum, pois o século da hipocrisia sustentava-se, na Europa, pela intensa repressão da sexualidade e de outras pulsões (Freud, 1908).

 O contato com o inconsciente fez nascer um novo homem, cujo “sujeito” não será mais concebido como um indivíduo regido pela consciência e personalidade e nem entendido como um ator social representado pelos de papeis que a pessoa deve cumprir no seu grupo de pertencimento. O homem em Freud está sujeitado ao inconsciente, como uma entidade desprovida da arbitrariedade e do determinismo linear da consciência. O sujeito em psicanálise é regido pelo desejo das suas pulsões, no entanto sempre em conflitos, pois suas ações estariam constantemente divididas entre o princípio do prazer (pulsões) e o princípio da realidade (controle social). Daí o caráter paradoxal e ambivalente de um ser sempre dividido entre a consciência e o inconsciente. O “senhor de si” e a ordem sociológica se empalideceriam perante a descoberta do novo homem. Não mais os “direitos da personalidade”, mas sim o dever do inconsciente e sua responsabilidade sobre as escolhas que faz o sujeito através de uma lógica fora da razão.

 

2.4 Implicações práticas acerca da noção de indivíduo, pessoa e sujeito.                                                                                       

 

Convém ressaltar que as divisões feitas acerca das três categorias apresentadas acima não pretendem apenas definir suas fronteiras ou diferenciar conceitos. Com isto queremos salientar que em nosso contexto social e profissional, a noção de personalidade como centralidade do indivíduo ou mesmo a noção de indivíduo construída até então, pela autonomia da consciência não nos serviria mais, caso nos esforçássemos um pouco apenas para estreitar as fronteiras entre o Direito, a Psicanálise e a Psicologia Social. Valendo-nos destes argumentos, analisemos a seguinte situação.

 Em 1980 funda-se no Brasil, o SOS-Mulher, a primeira instituição feminista com o objetivo inédito de atender e acolher vítimas que frequentemente eram agredidas por seus cônjuges. Nos anos 80 acreditava-se, em especial pelos grupos de esquerda que “a situação da mulher se modificaria à medida que a sociedade se tornasse mais justa e igualitária” (Gregori, 1993; p. 28)  O grupo S.O.S-Mulher , em São Paulo estava mergulhado na militância de se construir um novo ser social e político, através dos trabalhos de “conscientização” da mulher  contra a “opressão”, palavra de ordem da época, masculina. Imbuídas da concepção marxista de que ao se tomar consciência da sua própria história e da História machista, as usuárias do SOS mudariam de atitude com seus companheiros e se converteriam ao feminismo. A aposta da mudança estava sustentada pela convicção de uma nova consciência. Procurou-se criar um ambiente acolhedor e receptivo para se iniciar o “processo de conscientização”’ (p73). A consciência psicológica sobre a agressão, somada à consciência histórica sobre o machismo, seriam as chaves que abririam as portas da liberdade das mulheres oprimidas. No entanto, não foi possível em termos de atuação profissional, articular “os relatos das mulheres agredidas (consciência psicológica: grifo nosso) com uma política feminista” (p. 70) (consciência histórica : grifo nosso). Noventa por cento das mulheres atendidas não voltaram mais e ainda no final de 1981 as plantonistas “começaram a se decepcionar com as mulheres atendidas: achavam suas falas repetitivas e não aguentavam mais suas lamúrias e queixas” (p.66). A concepção de que o indivíduo ao tomar consciência de um “fato” adquire a autonomia para mudar este “fato”, já não nos serve mais se, considerarmos que o que está em jogo aqui é o entendimento do que vem a ser um indivíduo e um sujeito no campo das leis jurídicas e das leis psíquicas. Atentemo-nos para uma observação muito pertinente feita pela antropóloga Filomena Gregori. “Nenhum procedimento (por parte das plantonistas) tocava nem de leve na questão que estava em jogo: não se discutia com as mulheres o significado de a maioria delas reivindicarem orientação jurídica para a separação e, ao mesmo tempo não procurar o advogado” (p72). Tal como não foi possível relacionar consciência psicológica com consciência histórica, também haveremos de entender as distâncias que separam as leis psicológicas das leis jurídicas; possivelmente proporcional ao abismo que separa o Direito da Psicologia e da Psicanálise. Se, entendermos que o ser humano é sujeito ambivalente, dividido pela lógica da consciência e a lógica do inconsciente, não haveria de se esperar que os direitos da personalidade e a conscientização, fossem o fármaco miraculoso para sanar a dor da opressão.

Se fizermos uma análise hoje acerca da relação entre violência e gênero encontraríamos entranhas surpreendentes nas relações amorosas mediadas pela violência. A aplicação de uma teoria a base de fórceps, como fizeram os etnólogos marxistas usando um saber exótico para explicar a economia primitiva (Clastres, 2011), não seria prerrogativa de, ou advogados, ou psicólogos. Servir-nos-ia sim a proximidade de ambos. Muito frequente na academia a aplicação de teorias e conceitos apriorísticos em contextos exóticos. Os estudos sobre a violência entre gêneros mereceria um capítulo à parte, pois a violência não é apenas um produto do indivíduo e tampouco as escolhas amorosas que fazemos são, de todo, guiadas pela luz da consciência. Por vezes, o que nos guia são as “escolhas forçadas” pelo inconsciente e sabem lá quais são os seus desejos. De qualquer forma, não se trata de supervalorizar ou excluir uma ou outra categoria e nem de opor a consciência à inconsciência; mas de entender que são duas lógicas diferentes e que em algumas condições, especialmente no campo das paixões, elas podem ser completamente paradoxais.

 

3 Os direitos da personalidade no âmbito jurídico[3]

A história do direito reflete a evolução da própria sociedade que, em nossos dias, culmina com os valores propugnados pelo Estado Democrático de Direito, em cujo bojo concentra-se a preocupação com o social, com a política e, sobretudo, com as exigências da sociedade moderna, pluralista e multifacetada, na qual o princípio da igualdade não seja prejudicado. Nesse contexto, floresce nitidamente o delineamento do sujeito, cuja expressão mais acabada se faz pela tutela jurídica dos direitos da personalidade, que englobam aspectos tais como a honra, a imagem, a intimidade, o sigilo bancário, fiscal e a vida privada.

Na Idade Média, não havia sujeito de direito. No racionalismo francês ele surge, mas é fragmentado, sob influência cartesiana. Neste ponto, nossas ideias se tocam com as do tópico precedente, porque a influência cartesiana não só fragmentou o sujeito de Direito e provoca uma divisão epistemológica no embrião das ciências sócias. O dualismo mente e corpo dirigiu as ciências naturais para um lado e as ciências sociais para outra direção, dificultado o diálogo interdisciplinar. Atualmente, tal conceito se expande, ocupando uma posição central na Epistemologia do Direito, equivalendo, em certo sentido, a "indivíduo", considerando-se que todo indivíduo é um "sujeito de direito", dotado de uma personalidade tutelada juridicamente.

José Sebastião Oliveira, ao explanar a distinção entre os direitos fundamentais e os direitos da personalidade, aponta que “sob o prisma da Constituição, o que se constata é que os preceitos que dizem respeito aos direitos da personalidade são tidos como direitos e garantias individuais, não obstante existirem entre eles diferenças marcantes[4]”. Acrescenta o referido autor que:

“Os direitos da personalidade são direitos novos, incorporados à nossa recente Codificação Civil de 2002, cuja construção doutrinária e jurisprudencial se encontra em formação, pois a sua especificidade, advinda com a nova codificação, ainda está por receber muita contribuição por parte dos operadores do direito brasileiro”. [5]

Assim, da demonstração que os direitos da personalidade constituem um tema em construção, pode-se inferir que é possível que venha a existir uma zona de controvérsia sobre o assunto, a qual poderá se expandir ou recrudescer, conforme o seu desenvolvimento doutrinário, científico e pretoriano.

Para Wanderlei de Paula Barreto e LucianyMichelli Pereira dos Santos, no que respeita a um conceito de desdobramento da personalidade, “quer parecer que este se refira à faculdade, assegurada a qualquer pessoa, de que sua personalidade possa se desenvolver em seus aspectos físicos, psíquicos e morais, de forma plena e com a mais ampla liberdade possível”. [6]

Para corroborar este ponto de vista, José Sebastião Oliveira e Denise Hammerschmidt afirmam:

“O homem é um ser um constante evolução, e mantém com seu tempo e com a sociedade por ele criada uma contínua dialética, em que se manifesta simultaneamente como promotor e receptor de mudanças, fato gerador de uma contínua situação de adaptação. De igual forma, as novas tecnologias têm contribuído decisivamente para se possibilitar um conhecimento mais radical do próprio ser humano, pois durante milênios o homem tem sido um desconhecido para si mesmo”. [7]

Assim, vemos como a ciência e o avanço da tecnologia podem contribuir com o desenvolvimento dos direitos da personalidade, reforçando o seu caráter multidisciplinar e, por certo, ampliando as suas áreas de controvérsias.

Vai daí a importância da regulamentação legal, doutrinária e jurisprudencial dos direitos da personalidade, de modo a acompanhar o seu franco desenvolvimento. Nesse momento, assinala o Professor Doutor Clayton Reis:

“A convivência social sempre foi conseqüência do relacionamento entre seres humanos disciplinado por objetivos preconizados por um grupo de pessoas. Assim, desde os primórdios, tornou-se necessária a criação de normas de conduta para equacionar os naturais e diferenciados instintos e pendores presentes na intimidade de cada pessoa. As regras de conduta, sabiamente instituídas pelos antigos legisladores, tiveram como pressuposto estabelecer um clima de convivência harmônica, para evitar os naturais conflitos e, por conseqüência, prevenir, tanto quanto possível, o processo de desagregação oriundo das dissensões”. [8]

Desse modo, vemos que a existência de conflitos é natural e faz parte do instinto gregário humano, donde se reforça a necessidade de um Direito em constante evolução, capaz de acompanhar as questões do seu tempo. Afirma Clayton Reis que “o Direito tem como pressuposto regular o comportamento humano, o que significa que a norma jurídica é um ordenamento que objetiva mudar atitudes, conscientizar as pessoas sobre o seu dever comunitário, preparar as pessoas para viver no meio social, mediante a conscientização da responsabilidade de cada um”. [9]

Para Silvio Rodrigues, “direitos há que são inerentes à pessoa humana e, portanto a ela ligados de maneira perpétua e permanente, não se podendo mesmo conceber um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade física ou intelectual, ao seu nome, ao seu corpo, à sua imagem e àquilo que ele crê ser sua honra. Estes são os chamados direitos da personalidade”. [10]

Assim, cientes da necessidade da interlocução entre o direito e a psicologia para um ramo do direito em construção, vamos apresentar a seguir, nas conclusões, algumas opiniões e argumentos, inclusive nas áreas de controvérsia, que possam colaborar com o debate sobre alguns aspectos dos direitos da personalidade.

4 Conclusões parciais

                          Vimos, neste artigo, que o conceito de personalidade não é pacífico no âmbito da Psicologia, tendo sido objeto de discussão entre diversos teóricos, ao longo de sua história. Por outro lado, o Direito Brasileiro, embora entenda que os direitos da personalidade estão em construção, ainda não contemplou toda a riqueza da discussão encetada pela Psicologia, tratando os direitos da personalidade ainda de modo mais simplista.

              A alma grega teria sofrido um processo de conversão moral com a difusão do cristianismo e da cultura latina no ocidente. Os gregos a concebiam como uma entidade antropomórfica dotada de vícios e de virtudes, enquanto que os cristãos a conceberam como entidade divina, e distante dos costumes mundanos. Esta é a raiz moral civilizadora que erigiu um indivíduo projetado no idealismo da razão, porém, um pouco distanciado da sua enigmática interioridade. Concordamos que os direitos da personalidade possam garantir o desenvolvimento dos aspectos físicos e morais do indivíduo, mas estamos inclinados a entender que tais direitos não têm o poder de dar as garantias psíquicas ao sujeito; categoria significativamente distinta da pessoa e do indivíduo. Tal sujeito não poderia ser amparado por uma moral virtuosa ou pela liberdade da consciência, se; considerarmos que o inconsciente impõe escolhas que norteiam o sujeito por uma lógica ambivalente e transversal ao equilíbrio da consciência. O sujeito, “um desconhecido para si mesmo”, é um ser dividido. Não é único, nem capaz de independência social e tampouco indiviso. Talcriatura aguardara na sombra do inconsciente o momento da sua  aparição, resplandecida pelas luzes da psicanálise e da psicologia social no crepúsculo do século XX. Tentamos ilustrar na prática, como as efervescências da paixão desgovernam as certezas darazão formal. Não ignoramos a sua existência, apenas diminuímos a sua importância. Assim, entendemos que os direitos da personalidade não têm o poder de garantir a liberdade do sujeito. Consideramos primordiais as regulamentações legais sobre este, visto que sem o controle relativo das pulsões básicas, traríamos o caos à organização social. No entanto, as leis jurídicas não podem governar umsujeito que não se define pela formalidade da razão e da consciência. Vimos nos estudos da antropóloga Maria Filomena Gregori, o fracasso de um trabalho que ignorou por completo a pluralidade das dimensões que constituem o ser. As relações humanas em contextos específicos, como o campo da educação, da família; da paixão e especialmente no âmbito da interioridade individual; se sustentam muito mais pelas vísceras do que pelo intelecto. O SOS Mulher, não retrata apenas a realidade dos anos 80, visto que, em pleno vigor do século XXI, a maioria dos trabalhos de pesquisa ou de intervenção acerca da relação gênero / violência; (só para citar um exemplo)  ou estão sob o signo da juridicidade ou sob os auspícios da consciência. Não serão pelas ideologias, pela formalidade jurídica ou apenas pela conscientização que o sujeito moderno encontrará paz para suas inquietudes. Nem tão sagrado quanto profano, teríamos que desfigurar a estampa da “Criação de Adão” e talvez encurtarmos a distância do dedo de Deus ao dedo dos homens. Pois, acreditamos que ao reconhecer no ser humano sua dimensão viciosa e não apenas virtuosa, em outras palavras, estaríamos reconhecendo enfim um sujeito real, de carne e osso liberto da divindade jurídica que o inventou. Indagamos até que ponto a riqueza conceitual da Psicologia e da Psicanálise, no que se refere ao tratamento da personalidade, pode contribuir para com uma justiça mais efetiva, em se tratando de direitos da personalidade.    

5 Referências

 

BECKER, H. Outsiders. RJ, Zahar; 2009.

BOCK, A.M.B.(Org.) Psicologia Sócio-histórica: Uma perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Cortez, 2001.

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ELIAS, N. A sociedade dos indivíduos. Rio de janeiro, Zahar; 1994.

FARR, R. As raízes da Psicologia social moderna. Petrópolis: Vozes, 1996.

FIGUEIREDO, L. C. Psicologia uma introdução. S.P, Educ;  1992.

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GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana Petrópolis, Vozes;1985.

GONZÁLEZ REY, L.F. O social na psicologia e a psicologiasocial.  Petrópolis-RJ: Vozes, 2004. 

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LANE, S. T. M. O que é psicologia social. SP: Brasiliense, 1985.

MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. S.P. Cosac Naify; 2003.

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VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Martins Fontes, S.P; 2



[1] Doutorando em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná, Especialista em Antropologia, Especialista em Psicologia Clínica e Especialista em Psicologia Social, Ex-coordenador de Curso de Psicologia na cidade de Curitiba, Ex-Diretor do Jornal do Leste- microrregião litorânea do Estado do Paraná, Comentarista do Programa Light News 95.1 FM da Rádio Transamérica de Curitiba, Autor de livros e artigos publicados no Brasil, contato pelo e-mail [email protected]
[2]Doutora em Direito pela UFPR, pós-doutora em Filosofia pela Universidade de Lisboa, membro da Italian Society for Law and Literature, membro do Centro de Letras do Paraná, professora na UFPR, autora de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior, contato pelo e-mail [email protected] .
[3] Neste tópico não faremos a distinção entre os conceitos de sujeito de direito, pessoa e indivíduo. Tal distinção voltará a ser feita na conclusão deste artigo.
[4] OLIVEIRA, José Sebastião. A família e as Constituições brasileiras no contexto dos direitos fundamentais e da personalidade. In: Revista Jurídica CESUMAR. Mestrado. Vol. 6, n. 1, Maringá: 2006, p. 132.
[5]Idem, ibidem, p. 141.
[6] BARRETO, Wanderlei de Paula; SANTOS, LucianyMichelli Pereira dos. O conceito aberto de desdobramento da personalidade e os seus elementos constitutivos nas situações de mobbing ou assédio moral. Idem, p. 475.
[7] OLIVEIRA, Sebastião; HAMMERSCHMIDT, Denise. Direito à intimidade genética: m contributo ao estudo dos direitos da personalidade. Idem, p. 424.
[8]REIS, Clayton. O abuso de direito nas relações privadas e seus reflexos nos direitos da personalidade.Ibidem, p. 201
[9] REIS, Clayton. Os novos rumos da indenização do dano moral. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 21.
[10] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – parte geral. Vol. 1, 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 61.