Direito Penal: Conflito aparente de normas e procedimentos


SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Princípios. 3. Considerações finais


RESUMO: O conflito aparente de normas (CAN) sempre foi objeto de estudo acadêmico. Com a redefinição de delitos de menor e médio potencial ofensivo, ganhou ênfase a necessidade de melhor acerto na tipificação inicial de uma ocorrência policial, para não fazermos tabula rasa dos princípios da economia e celeridade processuais ao precisarmos reiniciar uma apuração através de outro procedimento.


Palavras – chave: normas – conflito – princípios – polícia - procedimentos


1. Introdução

Com o advento da Lei 9099/95, que criou os Juizados Especiais Criminais e definiu a existência de infrações penais de menor potencial ofensivo, uma das tarefas básicas da autoridade Policial adquiriu maior amplitude. Obrigado a tomar decisões no calor dos fatos o delegado de Policia geralmente tinha duas opções: auto de prisão em flagrante ou portaria inaugural de inquérito. Agora temos o Termo Circunstanciado, que poderá ser direto, quando feito imediatamente, ou indireto quando na sequência de um boletim de ocorrência que o antecedeu.
Cresceu a importância do raciocínio jurídico de subsunção do(s) fato(s) ao(s) tipo(s) penal(is) abstratamente previsto(s) em lei penal. É o conflito aparente de normas interferindo na escolha do procedimento de Polícia Judiciária. O conflito, que ocorre quando um fato aparentemente se subsume a mais de uma norma penal, é apenas aparente, porque se fosse real o ordenamento jurídico não o solucionaria. Tem como pressupostos a unidade de fato (o fato deve ser único) e a pluralidade de normas aparentemente aplicáveis para o enquadramento do fato. Pela mesma razão também será apenas aparente o conflito de procedimentos.

2. Princípios

Difere do concurso de crimes, porque este se refere a mais de um crime (formal, material ou continuado), havendo violação de várias normas ou sucessão de leis no tempo. O conflito aparente de normas (CAN) se resolve por três princípios básicos, a saber:
a) Especialidade: a norma especial terá preferência sobre a geral (lex specialis derogat generali). Ex.: infanticídio, em relação a homicídio. A espécie (art.123) excluirá o gênero (art.121) em face dos elementos especializantes (parentesco, influência do estado puerperal e o elemento temporal: durante ou logo após o parto). O latrocínio também será especial em relação ao homicídio. No concurso entre agravantes e atenuantes prevalecerão às circunstâncias subjetivas (motivos, personalidade, reincidência).
b) Subsidiariedade: haverá relação de primariedade e subsidiariedade entre normas quando descreverem graus de violação de um mesmo bem, de forma que a subsidiária terá menor gravidade que a principal (lex primaria derogat subsidiariae). A subsidiariedade será explícita quando definida pela própria norma (exemplo: o art. 132 do Código Penal), ou implícita ou tácita quando é elementar ou qualificadora de figura mais grave (exemplo: Constrangimento ilegal – art. 146 – que é elementar do estupro – art. 213).
c) Consunção ou absorção: ocorre quando uma conduta tipificada é fase normal de preparação ou execução de outra. Pode ocorrer em várias hipóteses, a saber:
- Quando há relação de perfeição e imperfeição entre normas (tentativa-consumação ou atos preparatórios puníveis). A violação de domicílio será ato preparatório do delito de furto.
- Quando houver relação de auxílio (partícipe) à execução (autor).
- Quando há relação de minus a plus (crimes progressivos). O agente para atingir um resultado mais grave necessariamente deverá produzir o menos grave. Exemplos: O homicídio pressupõe a lesão corporal. O dano absorve o perigo.
- Quando houver relação de parte ao todo (progressão criminosa). O agente, após praticar uma conduta contra uma objetividade jurídica, passa a realizar outro comportamento contra a mesma objetividade genérica pertencente à mesma vitima.
A progressão criminosa poderá ser em sentido estrito quando o agente, “verbi gratia”, perturba a vítima (contravenção), depois pratica vias de fato (idem); não satisfeito injuria (crime), depois comete lesões corporais (129); e, por final, mata a vítima (121). Só responderá pelo homicídio, ficando as demais condutas absorvidas devido à seqüência e vínculo temporal.
A progressão poderá ainda se verificar em caso de antecedente não punível (antefactum), quando a conduta anterior menos grave é meio ou fase preparatória ou de execução de crime mais grave. Para alguns autores a conduta deverá ser dirigida ao mesmo bem genericamente tutelado e pertencente à mesma vitima. Ex.: o detentor de chaves falsas (art. 25 da LCP) só responderá por furto se vier a praticar uma subtração. Já no fato sucessivo impunível, uma conduta posterior menos grave é praticada contra o mesmo bem, da mesma vitima. Ex.: Após o furto o agente danifica a coisa. Só responderá pelo furto, ficando o evento danoso absorvido.
Convém verificar que na progressão criminosa há multiplicidade de dolo, acompanhando cada ação, enquanto no crime progressivo haverá dolo único. A unidade de fato possui, portanto, duas formas: a) simples: com um só comportamento; b) complexa: com vários comportamentos disciplinados como um só, como nos crimes habituais. Somente desta forma se pode explicar a aplicação do principio da consunção à progressão criminosa.
Alguns doutrinadores se referem a um quarto principio para solução do conflito aparente de normas: o da alternatividade. Seriam vários fatos como modalidades de um mesmo crime. São os crimes da múltipla ação ou de conteúdo variável ou fungível (ex.: art. 122 do CP; 33 da Lei 11343/06, etc.) Não haverá falar-se em conflito aparente de normas porque a concorrência será interna, dentro da própria norma, sem conflito externo.

III- Considerações finais

A própria Lei 9099/95 sofreu alterações, uma delas ao seu artigo 60, para a inclusão da expressão: “[...] respeitadas as regras de conexão e continência” (redação dada pela Lei 11313/06). Vê-se que uma difícil tarefa de enquadramento típico tornou-se mais complexa, exigindo cada vez mais atenção da autoridade policial, uma vez que, da perfeita solução do conflito aparente de normas dependerá a escolha do procedimento correto na formalização dos atos de Polícia Judiciária. Para a escolha do procedimento adequado, além da observância das regras de conexão e continência, será necessário refletir sobre as circunstâncias do fato, verificando-se:
- Concurso de crimes (formal ou material);
- Conflito de leis no tempo;
- Concurso com o Estatuto da Criança e do Adolescente;
- Crime impossível;
- Excludentes de ilicitude;
- Extinção da punibilidade;
- Condições de procedibilidade penal;
- Concurso aparente de normas (CAN).

Conforme o caso será possível desmembrar a ocorrência, por exemplo, lavrando-se um termo circunstanciado e instaurando-se um inquérito, ou apurando-se os fatos em um só procedimento. Percebe-se a exigência de aperfeiçoamento técnico-jurídico para a correta aplicação da lei e melhor realização da Justiça na fase pré-processual da persecução penal.



Wagner Adilson Tonini
Delegado de Polícia e Professor da ACADEPOL em Bauru/SP