DIREITO ESTATAL E O DIREITO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS DIANTE DO MOVIMENTO DO DIREITO LIVRE: Reconhecimento das Uniões Homoafetivas [1]

 

André Pinheiro Lopes[2]

 

                                                                               

Sumário: Introdução; 1. Exegetismo e Jurisprudência dos Conceitos como escolas que representam o pensamento inflexível para além do racionalismo 2. Escola do Movimento do Direito Livre como fonte alternativa para casos de lacunas; 3.Analise da decisão de reconhecimento das uniões homoafetivas; 5.Conclusão.

RESUMO

O presente trabalho busca analisar a decisão da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 que trata sobre a união homoafetiva, sobre a ótica das escolas de interpretação hermenêuticas, para saber se a decisão foi correta ou não. Para tanto, será ressaltado alguns pontos, como a omissão legislativa, a importância da sociedade e dos costumes para o julgamento da ação e qual escola deverá ser adotada como forma de embasamento da sentença.

Palavras-Chave: Movimento do Direito Livre; Homossexualidade; Escola da Exegese; Jurisprudência dos Conceitos; Kantorowicz.

 

Introdução

           

O debate em torno da união homoafetiva e o presente trabalho científico se faz relevante justamente pela ocorrência atual de vários fatos ligados a essa questão. A exemplo, temos o aumento do índice de homicídios decorrentes da homofobia, dados que podem ser constatados segundo o jornal folha de São Paulo. Ainda de acordo com o jornal, o Brasil ocupa o primeiro lugar com mais de cem homicídios por ano, apenas motivadas pela homossexualidade. Isso nos remete a questão do preconceito vivenciado pelos homossexuais, em face de um país que já é marcado por tantas desigualdades sociais e econômicas[3].

            Tendo isso em vista, o que veremos a seguir ao longo desse paper de análise de case é como as escolas de interpretação hermenêutica podem servir de parâmetro para a análise da decisão da ADI 4.277, que permitiu o reconhecimento da união homoafetiva.

 

1. Exegetismo e Jurisprudência dos Conceitos como escolas que representam o pensamento inflexível para além do racionalismo

           

A escola da Exegese e a Jurisprudência dos Conceitos são duas escolas de interpretação que representam bem o pensamento racionalista.

            O pensamento exegetista surgiu na França, com a influência da criação do Código Civil Francês ou o Código de Napoleão, que traduziu a sistematização de normas capazes de uniformizar o direito, suprindo a obscuridade, a ambigüidade, a incompatibilidade e a redundância entre os vários preceitos normativos. Representa uma vitoria da razão sobre a expressão cultural[4].

            Os métodos preponderantes de interpretação, são o gramatical e o sistemático, e através da própria estrutura gramatical e pelo conteúdo dos termos técnicos se expressava a vontade do legislador, que representava a máxima expressão de vontade geral. Não há aqui poder para além da lei. Qualquer poder fora do conteúdo expresso na lei é arbítrio. Ou seja, o juiz é um mero aplicador do texto legal. Os códigos não deixam margem para o interprete fazer direito. O que se pretendia aqui, era afastar toda e qualquer incerteza sobre o direito, através daquilo que está escrito. O objetivo era encontrar na lei a resposta para todos os conflitos[5].

            Do mesmo modo, a Jurisprudencia dos Conceitos limitava a atividade do juiz à uma mera subsunção lógica da matéria de fato nos conceitos jurídicos. Havia da mesma forma um apego à literalidade do texto. Nessa conformidade, concebia o ordenamento jurídico como um sistema fechado de conceitos jurídicos, requerendo assim o primado da lógica[6].

            A partir dessa concepção fechada, nasce a crítica de Fraçois Gény. O próprio Código Napoleônico em seu art. 4º ao determinar sobre a obrigação do juiz de julgar diante do silêncio, da obscuridade e da insuficiência da lei contribuiu para tal crítica. Na verdade, os juízes começaram a se deparar com muitos casos de “lacunas” na lei, onde a mera subsunção lógica do fato à norma não era suficiente para se obter a solução do caso. Foi com base nisso que Gény fez sua defesa pela Livre Investigação Científica[7].

Para Gény, quando o ordenamento jurídico não apresentasse uma lei específica para determinado caso, o juiz deveria lançar Mao da análise feita sobre os fatos sociais, bem como das leis que regem a sua estabilidade, para então obter regra capaz de resolver a questão[8].

Isto é, de acordo com ele, quando não fosse possível ser obtida a resposta para o problema no sistema, o aplicador da lei poderia, através da atividade cientifica, encontrar a solução para resolver o caso fora do âmbito restritivo da lei positivada. Essa foi a primeira vez que se admitiu um pensamento que ia de encontro com o pensamento formalista e que permitia a busca do direito fora do texto-legal[9].

 

2. Escola do Movimento do Direito Livre como fonte alternativa para casos de lacunas

            De fato, em um momento de pouca complexidade social e progresso em lenta evolução, o pensamento racionalista conseguiu se manter até o final do séc. XIX. Mas logo essas idéias começaram a ser contestadas com o surgimento de outra corrente denominada de Direito Livre.

            O Movimento do Direito Livre surgiu na Alemanha, diante de um contexto de críticas, que envolviam às insuficiências da concepção metodológica tradicional relacionadas ao formalismo. Esse movimento não ficou caracterizado por um grupo de pensadores específicos. Foi mais compreendido como uma tendência que assumiu várias formas. Dentre os principais precursores importantes para o desenvolvimento dessa escola, podemos citar Oskar Bülow, Eugen Ehrlich e Herman Kantorowicz[10].

            Herman Kantorowicz é um dos principais autores da escola. Ele nasceu em 1877 e morreu em 1940. Era natural da Posnânia, cidade da antiga Polônia. Em 1906 ele publicou a monografia Der Kam um der Rechtwissenchat (a luta pela ciência do direito)[11]. Utilizava um pseudônimo, conhecido como Gnaeus Flavius para escrever suas obras. Já em 1933, ele se mudou para os Estados Unidos e ficou lecionando em uma cidade chamada Yale[12].

            Conduzido por Kantorowicz, este movimento proclamava que ao lado do Direito estatal e com a mesma importância estava presente o “Direito Livre”, criado pela decisão jurídica dos cidadãos, pela jurisprudência e pela ciência do direito. Ou seja, afirmava que o direito legislado era insuficiente. Tal ideologia partia da suposição de que nem todas as exigências da vida jurídica podem ser satisfeitas pela lei, daí a necessidade de outros elementos para poder superar essa falha[13].

            Os principais pensamentos giravam em torno da livre busca do direito ao invés da mera aplicação mecânica da vontade do legislador prevista na lei pelo juiz. Dizia que ao juiz competia, quando fosse julgar o caso, levar em consideração os fatos sociais que deram origem e condicionaram o problema, assim como os costumes e os valores que guiam a moral[14].

            Existe um direito vivo em contraposição ao apenas vigente diante dos tribunais, das fontes, que eram os documentos modernos, as sentenças judiciais e das observações empíricas. Para demonstrar a existência desse direito Ehrlich traz alguns exemplos, quando fala que

a realidade do casamento no campesinato austro-alemão, cujo regime de comunhão de bens nada tem a ver com a comunhão de bens de que trata o código civil austríaco e por isso as determinações do código civil nunca são aplicadas, porque sempre são excluídas do contrato matrimonial; fenômeno semelhante se daria com o contrato de arrendamento agrário, cujas prescrições jurídicas são substituídas pelas determinações dos próprios contratos, tais como estes hoje são firmados entre arrendador e arrendatário, dependendo do grau de desenvolvimento de nossa agricultura, das modernas condições sociais e econômicas; quanto ao direito de família, assevera que o direito vigente não reproduz o quadro mais pálido daquilo que realmente acontece na vida; destaca, por fim, a realidade do direito comercial, a única área do direito que parte regularmente, e não só ocasionalmente, daquilo que realmente se pratica[15].

            Isto é, percebemos que a fonte para se reconhecer esse direito vivo não é só a lei e os códigos, mas também a observação direta dos costumes e dos valores sociais presentes no dia-a-dia.

            Vale ressaltar ainda, que essa doutrina defende a idéia de que nem todo direito se esgota no estado, quer dizer, o direito é muito mais rico e legítimo quando é oriundo espontaneamente dos movimentos e dos grupos sociais, o que é conhecido como direito natural. Este direito é que deveria ser reconhecido pelo Estado, através da função política do juiz[16].

            Outra questão importante a ser salientada repousa nas lacunas ou omissões legislativas presentes na lei. O direito positivado nem sempre acompanha os ensejos e as necessidades da sociedade, devido a constante evolução dos pensamentos.

O legislador não é capaz de dar cumprimento a ambos os ideiais (da determinação plena e o da plena adequação) mediante seus próprios preceitos. Por uma parte, sua capacidade de percepção é insuficiente. O legislador quer sentar preceitos para o futuro. Mas, o futuro não é absolutamente previsível, perceptível. A complexidade da vida moderna é quase infinita. As condições e os problemas da vida estão submetidos a uma mudança constante. Em segundo lugar, os meios expressivos do legislador são limitados. Se o legislador fosse capaz de perceber todos os casos da vida, ainda seguiria sendo incapaz de reproduzir ou expressar suas idéias de um modo inequívoco ou completo. A conseqüência destas dificuldades é que inclusive a melhor lei apresenta inumeráveis lacunas; que o juiz se encontra com situações vitais que deveriam obter uma solução jurídica concorde com as necessidades vitais e com as intenções gerais do legislador, mas para as quais não conta com nenhum preceito legal ou com nenhuma decisão concreta e reconhecível claramente como aplicável ao caso[17].

Com o reconhecimento da existência de lacunas no ordenamento jurídico, Kantorowicz repudiava a “mania de grandeza” da jurisprudência dogmática e proclamava que “a nova ciência” do Direito devia preencher as fendas não por meio da negação dos direitos em todos os casos em que a lei não os reconhece, mas mediante decisões proferidas na direção indicada pelo Direito Livre. Sua missão consistia, portanto, no descobrimento do Direito Livre, enquanto busca e aplicação do direito da comunidade[18].

Nesse sentido, a tarefa exercida pelo juiz não poderia se tornar aleatória, onde a subjetividade do juiz iria predominar. Ao contraio, ela deveria ser pautada pelas convicções éticas e as opiniões sociais predominantes no lugar e na época em que vive. Baseando sua decisão nas convicções morais e no sentimento de justiça que prevaleçam na comunidade ou na nação que representa[19].

3. Análise da decisão de reconhecimento das uniões homoafetivas

O problema do reconhecimento da união homoafetiva é um claro caso de omissão legislativa. A questão fundamental é saber se a convivência pública, duradoura e com o ânimo de formar família, por pessoas de sexo igual deve ser admitida como entidade familiar pela Constituição Federal[20].

A doutrina que se posiciona contra o reconhecimento da união, argumenta que o § 3º do artigo 226 CF/88 regula somente à união estável entre homem e mulher, e nada fala sobre casos entre homem e homem e mulher e mulher. Aqui temos um exemplo em que se poderia entender como silêncio do legislador no que diz respeito à união entre pessoas de mesmo sexo. Ou seja, um caso de lacuna presente nos textos normativos. Além disso, não há nenhuma lei específica que trate também sobre o assunto. O artigo 1.723 do Código Civil de 2002 apenas repete a redação do art. 226 da CF/88. Existe, então, uma dupla omissão legislativa, onde não caberia nem o principio da especialidade[21].

O presente caso não deixa outra opção, se não recorrer para o uso dos tradicionais instrumentos da ferramenta hermenêutica[22].

A análise mais adequada, a meu ver, reforça a decisão sobre o reconhecimento da união homoafetiva pelo STF.

Ora, não cabe a utilização dos pensamentos da Jurisprudência dos Conceitos e da Escola da Exegese, já que essas escolas que defendem o racionalismo puro, não fornecem mecanismos alternativos para solução de conflitos em casos de “lacunas na lei” ou omissão legislativa. Traspassando esse raciocínio ao caso, não seria permitida nenhuma interpretação que não fosse de acordo com aquilo que está previsto os artigos da Constituição e do Código Civil.

            Por sua vez, o pensamento que define o Movimento do Direito Livre serve perfeitamente como meio de utilização, para que o juiz resolva o caso.

Ao reconhecer as lacunas do Direito, o movimento do Direito Livre reconhece também a competência do juiz para preenchê-las. Ao contrário do que seus opositores costumam afirmar, não autoriza o juiz a sobrepor-se à lei; exige a conformidade da sentença à lei, negando apenas que a decisão seja mera dedução da lei. Não pretende criar novo Direito para o juiz, mas apenas conscientizá-lo da necessidade de algo que ele sempre fez inconfessadamente, talvez sem dar-se conta: colocar suas forças a serviço da complementação da lei[23].

Segundo os adeptos do Direito Livre, o juiz é como que legislador num pequenino domínio, o domínio do caso concreto. Assim como o legislador traça a norma genérica, que deverá abranger todos os casos futuros, concernentes a matéria, caberia ao juiz legislar, não apenas por equidade, mas, toda a vez que lhe parecer, por motivo de ordem científica, inexistente a lei apropriada ao caso específico: estamos, pois, no pleno domínio do arbítrio do intérprete[24].

            O reconhecimento da união homoafetiva, seria a representação do sentimento da coletividade, conforme a consideração da moral e dos costumes vigentes. Seria, ademais, o reconhecimento de direito dos grupos minoritários. Não há como negar a existência de vários movimentos que buscam o a igualdade de direitos e que são homossexuais.

            Portanto, o reconhecimento da união homoafetiva, à luz do Movimento do Direito Livre, resolveria o problema provocado pelo distanciamento entre o direito estanque e a sociedade em movimento, representada neste caso pela classe dos homossexuais. A lei não pode se tornar retrógrada, pelo fato de não acompanhar as transformações sociais vividas pela comunidade. Isso acabaria por ocasionar instabilidade e insegurança para a população[25].

 

 

5. Conclusão

               

                Diante dos argumentos expostos anteriormente, me posiciono a favor da sentença que julgou procedente o pedido formulado para conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 1.723 do Código Civil, veiculado pela Lei nº. 10.406/2002 com o fim do reconhecimento da união homoafetiva, por meio da utilização dos preceitos hermenêuticos e da analogia ao Movimento do Direito Livre.

            Prevalecendo o entendimento de que em casos de obscuridade da lei, e de dificuldade de resolução de conflitos em face da omissão legislativa, deve sempre prevalecer a interpretação que leve em consideração os pensamentos da sociedade de acordo com lugar e o tempo em que vivemos, estando o juiz responsável por não deixar sua subjetividade exclusiva interferir na decisão, devendo o mesmo tomar cuidado para não deixar sua função se tornar aleatória. Não cabendo, por sua vez, interpretações fechadas e sistemáticas que não permitem meios de resolução de casos extralegais e que deixam a atuação do julgador meramente mecânica devido ao apego formal. .



[1]  Trabalho apresentado ao Prof. Thiago Matias Vieira Mestre da disciplina de Hermenêutica Jurídica do 4º período do curso de Direito da UNDB.

[2] Aluno do 4º período noturno do Curso de Direito, email: [email protected].

[3] STF. ADI 4277, Disponível em:< http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277MA.pdf> Acesso em 12 de Mar 2011, p. 3.

[4] Bibliografia específica cedida pelo prof. Thiago Vieira Mathias de Oliveira. Texto 2, p. 66.

[5] Idem, p. 66-67.

[6] Bibliografia específica cedida pelo prof. Thiago Vieira Mathias de Oliveira. Paper, p. 64.

[7] Bibliografia específica cedida pelo prof. Thiago Vieira Mathias de Oliveira. Texto 2, p. 69.

[8] Idem, p. 68.

[9] Idem, p. 69-70.

[10] Bibliografia específica cedida pelo prof. Thiago Vieira Mathias de Oliveira. Texto 2, p. 97.

[11] SILVA, Gustavo Felipe Melo da Silva. Teoria Crítica do Direito. 2010, p. 16.

[12] Martins, Marianne Rios. Filosofia do Direito. Faculdade Batista, p. 1. Disponível em:< files.marianneriosmartins.webnode.com.br/...90a6091010/...>. Acesso em 19 de Mai 2012

[13] ALBUQUERQUE, Mario Pimentel. O Órgão Jurisdicional e sua Função: Estudos sobre a ideologia, aspectos críticos e o controle do poder judiciário. 1ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores,1997, p. 61.

[14] Bibliografia específica cedida pelo prof. Thiago Vieira Mathias de Oliveira. Texto 2, p. 98.

[15] JUNIOR, Vicente de Paula Ataíde. Eugen Ehrlich e Hans Kelsen: uma reconciliação possível? 2010, p.2.

[16] Bibliografia específica cedida pelo prof. Thiago Vieira Mathias de Oliveira. Texto 2, p. 99.

[17] ALBUQUERQUE, Mario Pimentel. O Órgão Jurisdicional e sua Função: Estudos sobre a ideologia, aspectos críticos e o controle do poder judiciário. 1ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores.1997, p. 62.

[18] Idem, p. 62.

[19] Idem, p. 62.

[20] STF, ADI 4277, Disponível em:< http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI4277MA.pdf> Acesso em 18 de Mai 2011, p. 2.

[21] Idem, p. 2.

[22] Idem, p. 16.

[23] RADBRUCH, Gustav. Introdução à Filosofia do Direito. p. 69.

[24] SILVA, Gustavo Felipe Melo da Silva. Teoria Crítica do Direito. 2010, p. 17.

[25] Bibliografia específica cedida pelo prof. Thiago Vieira Mathias de Oliveira. Texto 2, p. 100.