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 Direito e Literatura: o instituto jurídico da boa fé,  em “O Idiota”, obra literária de                    

                                                                                                                           Dostoiévski

                                  Márcia Belzareno dos Santos

 

                                  Muito embora nossa tradição positivista resista em vincular Direito e Literatura, cada dia que passa  nos é mais presente e clara essa relação natural e necessária, eis que cada uma das áreas, respectivamente, desvendam aspectos da vida em sociedade, procurando moldá-los para a boa convivência, ou pela denúncia e pela crítica, como é o caso da Literatura, ou pelo disciplinamento, com o faz o Direito.

                                 Desta forma, é que constatamos em “O Idiota”, obra do célebre escritor  Fiódor Dostoiévski, uma tentativa de materializar o ideal de homem, uma espécie de utopia de comportamento humano, uma mistura de Jesus Cristo com Dom Quixote, como queria o autor, ao criar a narrativa.

                                Com a história, Dostoiévski ao mesmo tempo que denuncia e critica a sociedade da época, cristaliza no protagonista a figura do mediador de boa fé, que busca a conciliação pacífica para todos os conflitos, que almeja, antes de tudo, o atingimento do Bem Comum, como deveria acontecer na administração do Direito e da Justiça, em qualquer época e em qualquer parte do mundo.

                                Após permanecer vários anos em um sanatório, na Suíça, para tratar da epilepsia, Michkin, com então 27 anos,  retorna a Petesburgo, para se encontrar com uma antiga parente. A narrativa, que tem seu  tem início no interior de um trem, é densa e apresenta, como pano de fundo, a presença constante da doença de Michkin, que vem a lhe trazer, durante toda a história,  não só os incômodos físicos e clínicos naturais de uma moléstia crônica, mas, com mais ênfase ainda, um significativo isolamento provocado por  parte das outras pessoas, que o evitam,  por     considerarem a sintomatologia da epilepsia apresentada por Michkin, uma espécie de  “idiotia”.

                                Assim, temos como tema central a problemática de solidão existencial de um  indivíduo que, apesar ou além de ser doente, é uma pessoa pura de coração, preocupada com o bem estar do próximo; e que, em uma sociedade absolutamente desregrada e corrompida, acaba sendo considerado pelos demais,  um simples idiota, um inadaptado, passando a viver excluído, do ponto de vista da aceitação social. Ou seja, ele convive no meio, mas não pertence ao grupo.

                               Aqui cabe um parênteses, para lembrar que a epilepsia sempre assustou, de alguma forma, a humanidade. Tanto o é assim, que os romanos tinham medo dos epilépticos e cancelavam ou suspendiam qualquer evento público, ainda que já estivesse em andamento, se algum dos presentes fosse acometido por um ataque de epilepsia. Diziam os romanos que a epilepsia era uma espécie de mal santo, “pego por fora, por algo” que eles não compreendiam o que era nem o motivo do “ataque”, curiosamente no duplo sentido da palavra, ou seja, o ataque no sentido de apresentar sintomas e no sentido de ser ”atacado” por algo desconhecido .

                                Nesse contexto, vale salientar que a doença, seja epilepsia, tuberculose, etc, é um componente constante na obra de Dostoiévski, sendo, via de regra, responsável pela tensão instaurada na trama. E isso acontece também em “O Idiota”.

                                Na perspectiva social, podemos dizer que há, por parte de Dostoiéviski, o cuidado em construir um  personagem perfeito, uma mistura de Dom Quixote com Jesus Cristo. Humanista e epilético,  Míchkin, cuja compaixão pelo próximo não tem limites, acaba esbarrando sua personalidade pacífica e pura com o desregramento mundano de Rogójin e com a beleza enlouquecedoura de Nastácia Filíppovna.

                              A  bondade e a ingenuidade de Michkin, características que contrastam com um mundo ávido por dinheiro, dominado pela cobiça;  acabam por despertar no leitor aquilo que Aristóteles e, mais tarde, outros teóricos da literatura, chamaram de estranhamento: afinal, quem é essa pessoa que ainda ocupa seu tempo se preocupando com o próximo?  

                             E esse estranhamento nos traz também para as indagações de nossa realidade jurídica do século XXI. Que tipo de paradigma jurídico e social temos de uma pessoa considerada bem sucedida ? Quem são os indivíduos respeitáveis em nosso país? Na aplicação prática da lei, existem personalidades “acima de qualquer suspeita”? O protagonista Michkin, apesar de ser belo e descendente de uma linhagem principesca, atributos muito bem recebidos em qualquer sociedade, tinha os “defeitos” imperdoáveis de ser epiléptico e, mais imperdoável ainda, de ser bom, de acreditar no próximo. Será que o princípio da boa fé, tão cultivado pelo personagem, é realmente um princípio jurídico protegido e apreciado ?

                            Por outro lado, é interessante observar que a despeito da indiferença da sociedade em relação a determinadas virtudes, como a bondade, a serenidade, a solidariedade, Michkin as usa para enfrentar determinadas questões jurídicas, como, por exemplo,  a reivindicação, por parte de outra pessoa, da fortuna que a ele pertence. E, nesse enfrentamento, Michkin procura manter a isenção, vendo o lado do outro, o direito da outra parte. Ao contrário do que, culturalmente, somos habituados. No Direito Positivo não “aprendemos” a ver primeiro o outro, não cultivamos a responsabilidade para com o outro; em uma pendenga jurídica, lutamos para que as nossas vantagens e benefícios venham primeiro; é para isso que, via de regra, demandamos a máquina judiciária, para buscar os nossos direitos, independentemente do eventual prejuízo que possamos causar à outra parte.

                           Michkin, por sua vez, mesmo tendo perdido a família muito cedo, sofrido com os desconfortos de uma doença crônica,  nunca perdeu a pureza de acreditar no Bem e no Belo.  Quando retorna para a Rússia, depois de anos internado em um sanatório, Michkin, de boa fé, continua envolvendo-se emocionalmente em muitas histórias daquele lugar e, de uma forma pura, interage com as pessoas, tornando-se uma espécie de mediador de conflitos.

                          Na personalidade de Michkin, encontramos a virtude,   a boa fé e a constante procura pelo Bem Comum, personificando, de alguma forma, o ideal de Justiça que procuramos. Temos o dever social e jurídico de buscar o Bem Comum, ansiamos por isso,  mas na maioria das vezes, apenas  solicitamos  as benesses, sem nos  preocuparmos em construí-las.

                          Examinando a obra literária sob a ótica da Literatura e do Direito, não podemos deixar de considerar  o fato de que a Literatura é campo livre, especulativo; enquanto o Direito, apesar de todo o conteúdo social nele presente, é científico, é técnico, é definidor.

                          Com efeito, como cidadãos do mundo, podemos nos questionar sobre até que ponto o Direito e a Literatura apelam, efetivamente, para o bom senso. O olhar da sociedade russa da época colocava  Michkin como um “idiota”, apesar de todas as virtudes de pureza e de solidariedade que demonstrava. E hoje, qual é o paradigma de comportamento ideal buscado pela hermenêutica jurídica ? Será que o Direito Positivo  continua a olhar um Michkin contemporâneo sem  o compreender ?

                           O problema do bom senso e de educar para esse bom senso passa a ser, por consequência,  também um problema do direito. Assim, educar também para os deveres e não apenas para os direitos poderia ser uma saída para uma sociedade mais justa e inclusiva, que acolhesse cidadãos como Michkin, ao invés de explorá-los.

                          A riqueza da obra “O Idiota” se amplia à medida em que denuncia a possibilidade que a sociedade tem de fazer o Bem, mas que se torna, por ela própria, uma impossibilidade prática, já que os Michkin do mundo sabem que seus ideais de justiça são incompreendidos e acabam sucumbindo à força devoradora da cobiça humana.

                         Dostoiéviski leva o leitor a questionar a forma trágica de viver de uma sociedade,  com valores tão desvirtuados e invertidos, a ponto de levar os cidadãos de bom senso e de boa fé à reclusão em um sanatório, como acontece com o protagonista que, no final,  volta para a Suíça, para o seu isolamento.

                          Fica para o leitor, de forma bem clara e inequívoca, que esse sujeito bom e honesto, puro de sentimentos, não tem  lugar em uma sociedade que só solicita favores, mas não se preocupa em construir valores.

                         E é justamente nesse ponto que entram novamente o Direito e a Literatura: devemos nos conscientizar e denunciar situações muitas vezes conhecidas e alertadas através da Literatura, buscando modificá-las e equacioná-las pelos novos ordenamentos oferecidos  pelo Direito.

 

Referências:

COSTA, Lígia Militz. A poética de Aristóteles – Mímese e verossimilhança. São Paulo: Ática, 1996.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O Idiota. Lisboa: Presença, 2001

GODOY, Arnaldo de Sampaio de Moraes. Direito & Literatura. Ensaios de Síntese Teórica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008.

STRECK, Lênio. Direito e Literatura - do fato à ficção. TVE-RS