Direito e Literatura: existe defesa para o inverossímil ? -  análise do livro “A confissão de Lúcio”, do escritor português Mário de Sá-Carneiro

Márcia Belzareno dos Santos                                                                                               [email protected] 

                       A Literatura é rica para exemplificar casos em que a aplicação do direito tenha, necessária e indispensavelmente, que ser colocada em prática. Não fosse a lei buscar na vida real a razão de sua própria existência, bastaria, talvez, uma única obra literária, qualquer que fosse, para nos provar, com vastos argumentos, que necessitamos, sim, do Direito para disciplinar nossas pobres vidas mortais, já que tão somente nossas atitudes e vontades não são suficientes para sustentar um mundo civilizado. 

                      É necessária a mão vigorosa da lei para organizar a vida social, separar os bons dos maus e, inclusive, desvendar determinados mistérios do mundo e da sociedade. 

                      Conforme entendimento de Arnaldo de Sampaio de Moraes Godoy, ao citar, respectivamente, Ian Ward e Maria Aristodemou,  a aproximação do Direito com a Literatura é ambiciosa, pois a literatura permite que a discussão de problemas jurídicos tome os mais inesperados caminhos. 

                      Com efeito, assim como a literatura e a ficção, a vida está constantemente nos surpreendendo e, justamente por esse motivo, inadvertidamente desafiando o direito a buscar novas formas de conciliação de conflitos, muitas vezes surgidos de fatos nunca antes imaginados pelo legislador. É o que encontramos na narrativa “A confissão de Lúcio”, que passaremos a examinar. 

                       Na obra, escrita em primeira pessoa, o protagonista Lúcio, após dez anos de prisão pelo assassinato de seu melhor amigo, é solto, e começa a narrar a sua história, para demonstrar a sua inocência. 

                        Assim, Lúcio inicia seu relato, dizendo que, em determinada época de sua vida, tornou-se grande amigo do poeta Ricardo Loureiro, apaixonando-se, em seguida,  por Marta, uma mulher misteriosa que, por vezes, parecia nem ser real. Ocorria, entretanto, que Marta era a esposa de Ricardo, o seu melhor amigo. 

                        Lúcio conta que, a princípio, resistiu aos encantos e mistérios da esposa de Ricardo; mas, com a aproximação proporcionada pela convivência quase diária, acabou por se tornar amante de Marta.                       

                         Com o tempo transcorrido e observando as atitudes da amante e do amigo,  Lúcio começou a desconfiar de que Ricardo sabia do romance dele com sua mulher; e que, indo mais longe,  Ricardo permitia que Marta tivesse, inclusive, outros amantes.                         

                          Então, não suportanto o comportamento passivo e indigno do amigo, Lúcio rompeu a amizade e partiu daquela cidade onde viviam, sem deixar notícias, nem o novo endereço.                          

                           Só algum tempo depois, de volta a antiga cidade, Lúcio reencontrou-se com o amigo Ricardo. O amigo, buscando provar sua verdadeira amizade a Lúcio e, talvez, procurando a aprovação do amigo para seu comportamento, anteriormente covarde e submisso aos deslizes da esposa,  conduz Lúcio até a sua casa, entra nos aposentos de Marta e, na frente de Lúcio, assassina a própria esposa com um tiro. 

                            Acontece, então, exatamente nessa parte da história, o inverossímil: inacreditavelmente, no momento em que Ricardo assassina Marta, quem cai no chão não é a esposa infiel que, segundos antes, se encontrava diante de uma janela, folheando um livro; mas, sim, para estupefação de Lúcio, quem ele viu caído, sem vida, foi o próprio Ricardo, seu amigo querido. E, o pior, aos pés de Lúcio, inexplicavelmente, estava a arma utilizada no crime. Marta simplesmente havia evaporado da cena, como se nunca estivesse estado ali. 

                            Na narrativa, o escritor Mário de Sá-Carneiro deixa-nos, de forma implícita,  alguns questionamentos: Quem é o assassino ? Quem é a vítima ? Marta era real ? Marta teria conseguido fugir ? Quem era essa mulher a quem aparentemente todos conheciam, mas de quem ninguém tinha referências concretas? 

                             Sabe-se,  através da leitura, que Lúcio e Ricardo nutriam uma amizade muito profunda um pelo outro, chegando a beirar uma espécie de flerte amoroso. Marta, quem sabe, pudesse ser apenas uma projeção sexual que Lúcio e Ricardo sentiam um pelo outro ? Marta, nessa versão do fato, seria irreal ? 

                              Afinal, Lúcio matou Ricardo ? Ricardo suicidou-se? Lúcio se encontrava em seu juízo perfeito ? Marta realmente existia? Como poderia não existir, se várias pessoas a conheciam? Mas, se realemente existia, como pôde desaparecer tão rapidamente e sem deixar vestígios? Várias perguntas surgiram, então, acerca do crime. 

                              No Tribunal, como era de se esperar, ninguém acreditou na versão contada por Lúcio, entretanto, pelas circunstâncias “glamurosas” do crime, eis que aconteceu com um triângulo amoroso que envolvia um poeta, uma “celebridade”,  várias foram as atenuantes concedidas a Lúcio pelos jurados. E ele, o único acusado do cometimento do crime, nem fez questão de convencer ninguém da sua inocência. Segundo o próprio Lúcio, sua história era verdadeira, mas inverossímil. 

                              Desta forma, os anos na cadeia foram uma espécie de repouso para sua alma atormentada. É a resignação alienada daqueles que são condenados por um crime que nem eles mesmos puderam entender o que, de fato, decorreu durante o ato criminoso; e, por esse motivo, se já não sofriam de alguma patologia psicológica antes do crime, depois dele muitas vezes “enlouquecem”, apresentando uma espécie de  loucura travestida de lucidez. É o que constatamos no depoimento de Lúcio, na primeira página da história: 

                              “ Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei e do qual, entanto, nunca me defendi, morto para a vida e para os sonhos: nada podendo já esperar e coisa alguma desejando – eu venho fazer enfim a minha confissão: isto é, demonstrar a minha inocência.

                                  Talvez não me acreditem. Decerto que não me acreditam. Mas pouco importa. O meu interesse hoje em gritar que não assassinei Ricardo Loureiro é nulo. Não tenho família; não preciso que me reabilitem. Mesmo quem esteve dez anos preso, nunca se reabilita. A verdade simples é esta.

                                  E àquelas que, lendo o que fica exposto, me perguntarem: 'Mas por que não fez a sua confissão quando era tempo? Por que não demonstrou sua inocência ao tribunal?', a esses responderei – A minha defesa era impossível. Ninguém me acreditaria. E fora inútil fazer-me passar por embusteiro ou por um doido... Demais, devo confessar, a pós os acontecimentos em que me vira envolvido nessa época, ficara tão despedaçado  que a prisão se me afigurava uma coisa sorridente. Era o esuqecimento, a tranquilidade, o sono. Era um fim como qualquer outro – um termo para minha vida devastada. Toda a minha ânsia foi pois de ver o processo terminado e começar cumprindo a minha sentença.

                                  De resto, o meu processo foi rápido. Oh! O caso parecia bem claro... Eu nem negava nem confessava. Mas quem cala consente... E todas as simpatias estavam do meu lado.

                                  O crime era, como devem ter dito os jornais do tempo, um 'crime passional'. Cherchez la femme (em francês, procurem a mulher.) Depois, a vítima um poeta – um artista. A mulher romantizara-se desaparecendo. Eu era um herói, no fim de contas. E um herói com seus laivos de mistério, o que mais me aureolava. Por tudo isso, independentemente do belo discurso de defesa, o júri concedeu-me circunstâncias atenuantes. E a minha pena foi curta.

                                   Ah! Foi bem curta – sobretudo para mim... Esses dez anos esvoaçaram-se-me como dez meses. É que, em realidade, as horas não podem mais ter ação sobre aqueles que viveram um instante que focou toda a sua vida. Atingido o sofrimento máximo, nada já nos faz sofrer. Vibradas as sensações máximas, nada já nos fará oscilar. Simplesmente, este momento culminante raras são as criaturas que o vivem. As que o viveram ou são, como eu, os mortos-vivos, ou – apenas – os desencantados que, muita vez, acabam no suicídio.

                                  Contudo, ignoro se é felicidade maior não se existir tamanho instante. Os que o não vivem têm a paz – pode ser. Entretanto, não sei. E a verdade é que todos esperam esse momento luminoso. Logo, todos são infelizes. Eis pelo que, apesar de tudo, eu me orgulho de o ter vivido.

                                   Mas ponhamos termo aos devaneios. Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara de fatos. E, para a clareza, vou-me lançando em mau caminho – parece-me. Aliás, por muito lúcido que queira ser, a minha confissão resultará – estou certo – a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida.

                                  Uma coisa garanto porém: durante ela não deixarei escapar um pormenor, por mínimo que seja, ou aparentemente incaracterístico. Em casos como o que tento explanar, a luz só pode nascer de uma grande soma de fatos. E são apenas fatos que eu relatarei. Desses fatos, quem quiser, tire as conclusões. Por mim, declaro que nunca o experimentei. Endoideceria, seguramente.

                                  Mas o que ainda uma vez, sob a minha palavra de honra, afirmo é que só digo a verdade. Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade – mesmo quando ela é inverossímil.

                                 A minha confissão é um mero documento.”

 

                                Sobre a Confissão, diz a lei brasileira, através do Código de Processo Penal:

 

CAPÍTULO IV

DA CONFISSÃO

 Art.197.O valor da confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância.

 Art.198.O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.

Art.199.A confissão, quando feita fora do interrogatório, será tomada por termo nos autos, observado o disposto no art. 195.

 Art.200.A confissão será divisível e retratável, sem prejuízo do livre convencimento do juiz, fundado no exame das provas em conjunto.

 

                          Em poucas palavras, podemos conceituar a confissão como a admissão, por parte do acusado, da veracidade da imputação que lhe foi feita pelo acusador, total ou parcialmente.

 

                           A confissão, que há tempos atrás chegou a ser  considerada como a  “regina probationum”, ou seja, a rainha das provas, atualmente tem  seu valor probatório relativizado, dependendo de outros  meios de prova também admitidos, para ser  avaliada e aceita, em conformidade com o sistema do livre convencimento do juiz.

 

                          Esse instituto jurídico já foi tão importante,  a ponto de serem considerados legítimos, para a obtenção da confissão,  métodos verdadeiramente desumanos, como a tortura. Assim, como uma espécie de rebate a esse tipo de procedimento, até certo ponto considerado “jurídico” na época,  muitos teóricos ou executores da lei passaram a pregar uma posição  oposta: a desvalorização quase absoluta  da confissão, negando-lhe legitimidade como meio de prova,  sob o

argumento de que feria a própria natureza humana o admitir-se a própria culpa.

 

                         Atualmente, a confissão tem valor relativo. Esta tendência doutrinária é confirmada, na lei brasileira,  no art.  197 do Código de Processo Penal. Ou seja, pelo sistema do livre convencimento, o juiz “deverá confrontá-la com as demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade ou concordância”.

 

                       Esta relatividade emprestada à confissão se deve ao fato de que várias circunstâncias pessoais podem levar alguém a confessar uma infração penal sem que tenha sido seu verdadeiro autor, como talvez tivesse acontecido a Lúcio que, entretanto, não confessou expressamente a autoria da morte do amigo, mas o seu silêncio acabou pairando como uma espécie de confissão do crime.            

 

                       Grande parte da doutrina jurídica  admite a chamada confissão implícita ou tácita, quando, por exemplo, o acusado repara o dano causado pela infração penal ou pratica qualquer outro ato que enseje concluir pela veracidade da imputação. O comportamento do réu em relação à vítima e ao dano causado pelo delito indicaria que ele teria sido o autor da infração penal, ainda que assim não o declarasse expressamente.

 

                       Por outro lado, hoje o silêncio do acusado não mais pode trazer qualquer  consequência prejudicial para ele, sendo incorreto continuar-se afirmando  que o silêncio “poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa” , tendo em vista o art. 5º inciso LXIII, da Constituição Federal que prevê, entre os direitos individuais, o de permanecer calado.

 

                      Sendo assim, como diz o jurista Rômulo Moreira, se o silêncio é direito individual constitucionalmente garantido, como imaginar que a sua utilização, em Juízo ou fora dele, acarretará para o cidadão algum efeito a ele prejudicial? Ou é direito individual e pode ser usado sem restrição e sem consequência, ou não o é. 

                       No caso de nossa narrativa literária examinada, o silêncio de Lúcio, na época da investigação e do julgamento acabou por acarretar o convencimento do júri de que ele era culpado pelo assassinato do poeta Ricardo Loureiro. O convencimento dos jurados provavelmente se tenha  dado em virtude da adoção, por parte deles, do veredito da sabedoria popular que diz que “ quem cala, consente”. 

                       Enfim, podemos dizer que o direito sendo, na essência, uma ciência absolutamente humana e social, muitas vezes foge do esperado, do verossímil, do razoável, como foi o caso de Lúcio. 

                       Por mais que o legislador preveja regras, por mais que a doutribna as explique e interprete, a vida, em si, sempre leva a vantagem da possibilidade da surpresa, do inédito, do improvável, como aconteceu com o caso de Lúcio e com tantos casos que acontecem todos os dias, sobretudo em nossa época de transição de valores, de modificações inesperadas, inclusive da própria natureza. E são essas possibilidades, absolutamente inesperadas, que alimentam e renovam a ciência jurídica, tornando-a encantadora para aqueles que a estudam e a vivem. 

                        Lúcio termina sua narrativa pontuando a importância da figura do advogado que, conforme ele, foi o único que não o abandonou em um momento crucial de sua existência e, logo após, fazendo uma reflexão sobre a complexidade das possíveis provas ou dos fatos que podem envolver um crime:

                       “Antes, não quis porém deixar de escrever sinceramente, com a maior simplicidade, a minha estranha aventura. Ela prova como fatos que se nos afiguram bem claros são muitas vezes os mais emaranhados; ela prova como um inocente, muitas vezes, se não pode justificar, porque a sua justificação é inverossímil – embora verdadeira.

                          Assim eu, para que lograsse ser acreditado, tive primeiro que expiar, em silêncio, durante dez anos, um crime que não cometi...

                          A vida.”                         

Bibliografia:              

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito&Literatura – Ensaio de Síntese Teórica. Porto Alegre: Livraria do advogado Editora, 2008.

SÁ-CARNEIRO, Mário de. A Confissão de Lúcio. São Paulo: Editora Moderna, 1996

MOREIRA, Rômulo de Andrade. Da confissão no Processo Penal.  www.juspodivm.com.br

Código de Processo Penal. www.planalto.gov.br