DIREITO E FILOSOFIA: O MITO DA NEUTRALIDADE CIENTÍFICA.

                                                            Gabriela de Campos Sena[1]

                                                              Mirelle Fernades Soares[2]            

Resumo: o artigo objetiva analisar o mito da neutralidade e da imparcialidade nos ditames de um Estado Democrático de Direito. A cultura, a sociologia e a economia passam a ter papel de destaque quando o assunto é a formação humanística para os aplicadores do direito. A multidisciplinaridade e a transdisciplinariedade, provocam distanciamento crítico e uma atitude de prudente vigilância por parte do magistrado. Na pós-modernidade há a necessidade de uma reforma substancial na cultura jurídica, que deve ser crítica, dialógica, reflexiva e embasada em aspectos que atendam à finalidade social do Direito. Assim, o presente artigo almeja sedimentar a notável perspectiva integradora de todos os ramos do direito no universo normativo e interpretativo dos Direitos Humanos e sociais para que haja uma modificação cultural e conseqüentemente, maior eficácia das decisões judiciais e menor índice de decisões conflitivas e contraditórias.  A cultura arraigada no Poder Judiciário exerce influência direta na administração da justiça, pois são os magistrados, individual ou coletivamente, que definem o perfil da função judicial e das suas interações com o poder público e com a sociedade.

 

Palavras Chave: Imparcialidade – neutralidade – Formação humanística- reforma judiciária.

INTRODUÇÃO

Na passagem de regimes autoritários para regimes democráticos, os países semiperiféricos e/ou periféricos, dente eles o Brasil, passaram pela consagração no mesmo ato constitucional de direitos, sendo que nas sociedades centrais foram conquistados num longo processo histórico.

De fato, constitucionalizar uma grande extensão de direitos sem um aparato de políticas públicas e sociais torna difícil a preservação da efetividade, o que conseqüentemente, abre caminho para maior intervenção judicial.

Frente à “enxurrada” de ações na busca de garantir o longo catálogo de direitos[3] que se constitucionalizou, o Poder Judiciário não conseguiu, e ainda não consegue prestar a tutela àqueles “novos direitos” – em especial os relacionados ao trabalho e a educação –, o que ensejou aos cientistas políticos, e logo após os sociólogos, a pesquisarem a administração do Judiciário sob o enfoque da organização profissional, detidamente, sobre a mentalidade dos magistrados.

Estudos de cientistas políticos alemães, americanos, espanhóis italianos[4], conforme exposto por Boaventura de Sousa Santos (1986) viram nos tribunais um subsistema do sistema político global, que provocou duas consequências muito importantes quanto ao posicionamento que colocou os juízes no centro do campo de análise. Na primeira consequência, os comportamentos, as decisões proferidas e as respectivas motivações, passaram a ser uma variável dependente cuja aplicação se procurou nas correlações com variáveis independentes, fossem elas a origem de classe, a formação profissional, a idade ou, sobretudo a ideologia política e social dos juízes. A segunda consequência consistiu em desmentir por completo a ideia convencional da administração da justiça como uma função neutra protagonizada por um juiz apostado apenas em fazer justiça acima e equidistante dos interesses das partes.

Nos Estados Unidos, o início dos estudos por Schubert (SANTOS, op cit, 1986) se deu quanto à distinção entre juízes liberais e conservadores, em que este, correlacionou suas ideologias políticas com as suas posições nas sentenças. Em outros casos do estudo mostrou em que medida fatores sociais, políticos, familiares, econômicos e religiosos dos magistrados de primeira instância influenciaram nas decisões em matéria civil e penal.

No mesmo caminho Boaventura (1986) aduz que os estudos italianos sobre a ideologia da magistratura não assentam no comportamento decisional, mas nos documentos públicos (manifestos, discursos, estatutos) em que os magistrados, individual ou coletivamente, definem o perfil da função judicial e das suas interações com o poder político e com a sociedade.

 Frente aos estudos esboçados em países europeus e americanos, comprova-se que a carga de pré-compreensões dos magistrados influencia as decisões judiciais, sejam elas de viés liberal ou social.

Antes de vários países entrarem no paradigma do Estado Providência, o Estado Liberal tinha o individualismo e a neutralidade como elementos fundantes, o que de certo  modo provocou imensos questionamentos em âmbito social.

José Afonso da Silva cita Lucas Verdú que acrescenta:

Mas o Estado de Direito, que já não poderia justificar-se como liberal, necessitou, para enfrentar a maré social, despojar-se de sua neutralidade, integrar, em seu seio, a sociedade, sem renunciar ao primado do Direito. O Estado de Direito, na atualidade deixou de ser formal, neutro e individualista, para transformar-se em Estado material de Direito, enquanto adota uma dogmática e pretende realizar a justiça social. (SILVA, 2009, p. 115)

Mas fato é que ainda hoje, na sociedade contemporânea brasileira esculpida pela Constituição de 1988 sob os ditames do Estado Democrático de Direito, a neutralidade ainda permanece como uma das características que o magistrado deve percorrer em suas decisões.

I- IMPARCIALIDADE VERSUS NEUTRALIDADE

Antes de adentrar no tema em questão, torna-se primordial estabelecer um paralelo contrastando a imparcialidade e a neutralidade dos magistrados.

Pelo dicionário, os vocábulos imparcialidade e neutralidade aparecem como sinônimos, e apresentam o seguinte significado: “caráter, qualidade daquele ou daquilo que é imparcial”. O objeto de questionamento no presente artigo é exatamente a afirmação de que a imparcialidade e neutralidade são termos sinônimos.

Ada Pellegrini Grinover aduz que o caráter de imparcialidade é inseparável do órgão da jurisdição. “A primeira condição para que o juiz possa exercer sua função dentro do processo é a de que ele coloque-se entre as partes e acima dela. A imparcialidade do juiz é pressuposto para que a relação processual seja válida”. (GRINOVER, 1993, p. 53)

Nesse aspecto, a imparcialidade refere-se à relação processual. Assim, falar em juiz imparcial cumpre dizer que não deve ter qualquer interesse de cunho pessoal em relação às partes do processo, pautando-se, sempre, em efetivar a justiça no caso concreto, ou seja, trata-se de uma garantia de “justiça” para as partes. O que comprova o entendimento com os artigos 134 e 135 do Código de Processo Civil, dispositivos que cuidam, respectivamente, do instituto do impedimento e da suspeição.

Mesmo a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1948 de cunho estritamente liberal, estabelece que “toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e obrigações ou para o exame de qualquer acusação contra ela em matéria penal”.

Por sua vez, para assegurar a imparcialidade do juiz, o artigo 95 da Constituição de 1988 estipula garantias, já o § único do mesmo artigo prescreve vedações aos magistrados. As vedações delimitadas nos incisos do § único do art. 95 da Constituição são um rol taxativo, exaustivo, por restringir direitos. Assim, aos juízes é vedado:- “Exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério”. - “receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo” - “dedicar-se à atividade político-partidária” - “receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei” - “exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração”.

 “As garantias atribuídas aos magistrados assumem importantíssimo papel na questão da imparcialidade, pois permitem que o Poder Judiciário decida livremente sobre os conflitos que lhe são apresentados, sem se abalar com pressões externas”. (GRINOVER, 1993, p. 53)

Cabe destacar que não se busca com a imparcialidade do juiz, privilegiar uma parte em detrimento à outra, por viés econômico ou pessoal, pelo contrário, a imparcialidade do magistrado prima por uma igualdade processual, garantindo a ambas as partes o contraditório e a ampla defesa e os meios e recursos a elas inerentes (inc. LV do art. 5º da CR/88), tendo como consequência direta do princípio do juiz natural. Nesse sentido, a imparcialidade não pugna pelo interesse de uma das partes, todavia não importa em indiferença ou insensibilidade às circunstâncias do caso concreto.

De outra sorte, a neutralidade remete-se àquele magistrado que se fecha a qualquer influência ideológica e subjetiva, posto que ao julgar, se mostra indiferente, insensível. Não podendo ser uma característica de um juiz, que presta serviço público, agente efetivo que prima cumprir os direitos fundamentais, basilares no Estado Democrático de Direito.

Nesse diapasão, o juiz não pode ser neutro, uma vez que a ‘não neutralidade’ conduz o magistrado ao comportamento descomprometido. Rodolfo Pampolha Filho[5] cita José Eduardo de Faria quanto à questão da neutralidade do juiz:

Analisando as transformações por que passa o judiciário, comenta que "se há um mérito no movimento dos magistrados gaúchos em favor do ´Direito Alternativo´, em que pese o fato de não efetuarem com clareza essa distinção entre direitos civis e políticos, por um lado, e direitos sociais e econômicos, por outro, é o de terem questionado as concepções exegéticas comuns ao Estado liberal clássico; concepções que, em nome da certeza jurídica, valorizam a igualdade formal sem permitir aos intérpretes que levem em conta a desigualdade real de sujeitos de direito localizados em espaços sociais fragmentários; espaços comunitários, associativos e corporativos diferenciados, que delimitam e mediatizam materialmente o tradicional princípio da igualdade formal. Ao enfatizarem a importância das funções políticas do direito, valorizando tanto as leis e os códigos em vigor quanto as teorias jurídicas em circulação como instrumentos de ação coletiva, esses magistrados chamaram a atenção para um fato em si óbvio (mas cujo reconhecimento público, pelo Judiciário, implicaria a ruptura de seu discurso institucional tradicional): se a solução judicial de um conflito é em sua essência um atributo de poder, na medida em que pressupõe não apenas critérios fundantes e opções entre alternativas, implicando também a imposição da escolha feita, toda interpretação, toda aplicação e todo julgamento de casos concretos sempre têm uma dimensão política; por conseguinte, a Justiça, por mais que seu discurso institucional muitas vezes enfatize o contrário, não pode ser, na prática, um poder exclusivamente técnico, profissional e neutro. (FARIA, 1994, p. 55-56)

 Ana Paula Lucena Silva CANDEAS [6] Cita Vianna no artigo “Valores e Judiciários: Valores recomendados pelo Banco Mundial para os judiciários nacionais” acrescenta que:

O poder Judiciário não é neutro em suas decisões, o magistrado deve interpretar a lei no sentido de aproximá-la dos processos substantivos e, assim, influir na mudança social. A não-neutralidade do Judiciário ameaça as liberdades e a mudança social não deve ser abjeto de apreciação por parte desse Poder (VIANNA, apud CANDEAS, 2003, p. 35)

De acordo com Vianna, a não-neutralidade das decisões não significa desrespeito ao Estado Democrático de Direito e à Constituição por parte dos juízes. “O juiz brasileiro é influenciado por um contexto de transição e mudanças. Ele não se desprende inteiramente das grandes referências da sua formação doutrinária”. (VIANNA, 1997, p. 259)

Em analogia a impossibilidade de neutralidade dos magistrados, Pedro Demo assegura que no âmbito das ciências os cientistas não podem ser providos de neutralidade, tendo em vista que o homem é um ser histórico por natureza e dotado de subjetividade, logo, são responsáveis pelas consequências que produzem.

Não existe objetividade ou neutralidade em ciência, não cabendo, pois forjar isenções suspeitas. Quer porque a ciência trabalhar com objetos construídos, ou porque os objetos históricos já são ideológicos intrinsecamente, ou porque os cientistas são responsáveis pela consequências do que constroem, a pregação da objetividade  ou da neutralidade coincide com ideologias sub-reptícias que perseguem acatamentos acríticos. Este é, na verdade, o argumento cabal contrário: se a ciência fosse objetiva e neutra não seria questionável. A pretensão de indiscutibilidade é apenas um golpe. (DEMO, 2009, p.25)

Não há afastamento possível para se decidir um caso jurídico acepticamente sob ares da neutralidade. E mais: “o juiz é formado em uma tradição comum da qual não consegue se desprender, se desvincular, para se tornar um personagem togado imune à pré-compreensões, a convicções incrustadas em seu espírito”. Ele é, antes de tudo, conforme frisa Heidegger, um Dasein, quer dizer, um “ser aí”, lançado no mundo no qual só existe pela linguagem. Não há método que possa conduzir sua percepção de mundo, sua percepção do Direito. (BROCHADO, 2012, p. 111)

O Poder Judiciário é uma instituição política e profissional e nesse sentido a Sociologia Jurídica a aborda a partir da desmistificação da ideia de neutralidade, como se os juízes, por exemplo, pudessem fazer justiça acima e equidistantes dos interesses das partes. (REPOLÊS, 2012, p. 236)

Gadamer, em frase esplêndida argumenta que: “aquele que se julga livre de pré-conceitos é o que mais está impregnado deles”. (GADAMER, apud STRECK, 2009, p. 234)

Urge ressaltar que o magistrado, agente central do Poder Judiciário deve perquirir, no novo paradigma do Estado Democrático de Direito, cumprir sua função social. De fato, buscando avaliar o caso concreto sob suas peculiaridades em prol de uma justiça social, que tente minimizar as discrepâncias da lide com decisão que tenha em sua essência conteúdo de política social.

Nesse sentido, “a superação do mito da neutralidade do juiz e do seu apoliticismo, institucionalizando-se uma magistratura socialmente comprometida e socialmente controlada”. (GRINOVER, DINAMARCO, WATANABE, 1988, p. 95)

De forma minoritária e sob um olhar individualista, próprio do paradigma liberal, Armando Castelar Pinheiro[7] aduz quanto à neutralidade do Juiz, que para ele trata-se de um fenômeno da politização das decisões judiciais. Em que a politização resulta na tentativa de alguns magistrados protegerem certos grupos sociais vistos como partes mais fraca nas disputas levadas aos tribunais. Agindo assim, os juízes seriam parciais, distorcendo o sentido de justiça de forma intencional e determinista. (PINHEIRO, 2000, p. 29)

De certo, conforme acentua Boaventura Santos (2007), vive-se a transição paradigmática do direito, onde se busca a solidariedade pautada no discurso permanente e, sobretudo, fortalecido pela empatia social para o combate das liberdades negativas, presentes no Estado liberal, onde o indivíduo vivia sob a égide de um processo alienatório e distante de atribuições participativas.

Destarte, ainda encontra-se enraizada em muitos operadores do direito, inclusive em juristas, as características latentes do liberalismo, que traz em seu âmago o individualismo e o descomprometimento com as questões sociais. Na verdade o que o constituinte ordinário pretendeu ao promulgar a Constituição da República de 1988 foi de “garantir um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos”. (CAPELLETTI; GARTH, 2002, p.19)

Para tanto, torna-se necessária uma mudança da figura do magistrado, em especial no caso brasileiro, onde se deve substituir o magistrado legalista-positivista (arraigado nas características da ciência tradicional) para um perfil de magistrado detentor de conhecimentos multidisciplinares, com formação humanística, o qual fará jus aos ditames do Estado Democrático de Direito.

II- FORMAÇÃO HUMANÍSTICA DO JUDICIÁRIO

Nesse tópico adentraremos numa questão de cultura institucional, no tange a valores e costumes do Poder Judiciário. Cabe ressaltar que, não se trata apenas dos magistrados, mas de todos os agentes públicos que integram o sistema de justiça, inclusive os servidores públicos.

Antes de adentrar no assunto propriamente dito, cumpre destacar que a consolidação da cultura jurídica brasileira nas Faculdades foi marcada por um bacharelismo de supervalorização das profissões jurídicas, detentora de uma cultura institucional ligada a esta que inclui linguagem hermética, fetichismo dos ritos processuais, trajes diferenciados e etc.

Neste viés, Maria Fernanda Salcedo Repolês preceitua:

Curiosamente a cultura bacharelista atinge seu auge no momento de consolidação do Estado moderno-racional-legal (Weber) em que há presença em massa dos bacharéis em cargos políticos. Esses irão formar uma elite política-social, com visão conservadora e voltada para a perpetuação dos interesses oligárquicos e fundiários, destituídos de orientação nacional. A partir do desenvolvimento dessa tradição, a cultura jurídica brasileira foi marcada pelo corporativismo e por um estilo de vida que separa radicalmente o trabalho manual e o trabalho intelectual. (REPOLÊS, 2012, p. 237)

De fato, as Faculdades de Direito (2012) foram lugares de junção entre o patrimonialismo e o bacharelismo, consagrando os bacharéis como elite cultural e econômica, que foram influenciados pelos modelos europeus e pela necessidade de criação da burocracia administrativa e da elite intelectual dirigente. Além é claro da influência das relações entre o Império e a Igreja Católica. Após a separação entre igreja e Estado acaba-se o ensino eclesiástico e o Estado introduz o controle e centralização do ensino como forma de administrar focos de resistências políticas.

A perspectiva humanista dos cursos prevaleceu, assim como o foco na formação dos quadros políticos da elite. Esse foco só foi questionado na década de 1960 quando se propõe uma reforma mais profunda e abrangente do ensino em geral, inclusive do ensino jurídico. Principalmente entre 1967 e 1972 sob influência do ensino norte-americano, apontam para um foco de ensino tecnicista, comprometido com as necessidades do mercado e da área empresarial. A reforma universitária preocupa-se em criar condições para que o ensino jurídico atenda a esses interesses por meio de um reforço de estudo dogmático, a flexibilização dos cursos, a introdução de método de ensino voltados para o estudo de casos, pela departamentalização, do sistema de créditos, e estímulo ao ensino privado.

Assim consolidaram-se dois modelos de ensino que caminham juntos e se mostram em tensão: um mais humanista e um mais tecnicista. Nenhum deles, no entanto, bate de frente com o conservadorismo político, com a massificação do ensino jurídico e com a falta de interdisciplinaridade. (REPOLÊS, 2012, p. 238)

Feita essa contextualização do assunto, observa-se a existência em sua historicidade de momentos de crises e de tensão, que não travaram entraves frente ao conservadorismo e a falta de interdisciplinaridade existente. Após a redemocratização do Brasil com a o advento da Constituição da República Federativa de 1988 houve grande preocupação com a educação voltada para a cidadania, visando concretizar uma sociedade democrática na qual conciliaria o ensino humanista e o técnico-dogmático.

Uma educação cidadã (emancipatória) é capaz de tornar o cidadão perceptivo à realidade social, econômica, política que o cerca. Nesse aporte, os operadores do direito detém um papel importante, pois uma educação humanista que busque efetivar os direitos fundamentais, faz com que eles se desprendam do tecnicismo positivista de traço liberal que ainda permanece enraizado entre uma parcela dos operadores, inclusive no Judiciário, e passe a atuar sob a ótica do Estado Democrático de Direito.

Boaventura de Sousa Santos (1986, p. 25) identifica três linhas de análise de cultura institucional presente no Judiciário: A primeira seria a funcionalista- estrutural, que enfatiza decisões na lei e ordem, no equilíbrio e segurança social e na certeza do direito. Essa linha adere a soluções mais tradicionais. A segunda por sua vez, trata-se do conflitivismo pluralista, que defende a mudança social e o reformismo, suas decisões visam a profundar a democracia dentro do marco jurídico constitucional do Estado de Direito. A terceira consistiria no conflitivismo dicotômico de tipo marxista, que defende o uso alternativo do direito, tendo como foco principal a consolidação de uma sociedade igualitária.

Esse diagnóstico da cultura institucional colide com a busca de seguimentos dentro do Judiciário que almejam essa mudança cultural, tendo por foco a concretização da Constituição de 1988 e seus fundamentos de uma educação para a democracia. Dentre esses seguimentos, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) se inserem, e mais, o Conselho Nacional de Justiça por meio da Resolução de nº 75 de 9 de junho de 2009 revogou a Resolução n. 11/2006 e alterou os critérios de avaliação para os concursos de magistratura de todo o país, que por sua vez introduziu a formação humanística para todos os concursos de ingresso de magistratura, cujas matérias são Psicologia Judiciária, Sociologia do Direito, Teoria Geral do Estado e Política, Ética e Estatuto Jurídico da Magistratura Nacional e Filosofia do Direito.

Vale ressaltar que a introdução de reformas de recrutamento e formação dos magistrados foi realizada com a consagração da Emenda Constitucional de nº 45 de 2004 que alterou o modo de ingresso na carreira da magistratura, em que passou a exigir no mínimo três anos de atividade jurídica. Além de constituir como obrigatória a etapa para o processo de vitaliciamento a participação em curso oficial ou reconhecido pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM).  Já para aferição de merecimento e progressão na carreira, estabeleceu a frequência e aproveitamento em cursos oficiais ou reconhecidos de aperfeiçoamento.

Percebe-se com a resolução do CNJ a necessidade de comunicação entre as ciências, uma vez que todo conhecimento depende de condições culturais, intelectuais, históricas e sociais inerentes ao espírito-cérebro humano. “A interdisciplinaridade é importante para que o juiz possa decidir adequadamente as novas questões complexas, que exigem mais conhecimentos de outras áreas do que jurídica”. (SANTOS, 2011, p. 96)

Nesse sentido, o Judiciário (incluindo magistrados e servidores) que presta serviço público em prol da sociedade e é agente de transformação social, nada mais coerente que tenha uma prática/atuação voltada para a efetivação dos direitos fundamentais (sociais) do Estado Democrático de Direito.

Destarte, o magistrado deve possuir um conhecimento multidisciplinar[8], estando próximo da sociedade e sentir seus clamores para que sua decisão seja coberta por “justiça”, com intuito de promover uma melhor prestação jurisdicional, logo, justiça social. Ressalte-se que: “As novas gerações de juízes e magistrados deverão ser equipados com conhecimentos vastos e diversificados (econômicos, sociológicos, políticos) sobre a sociedade em geral e sobre a administração da justiça em particular”. (FARIA, 1997, p. 59)

De sorte o sociólogo Edgar Morin enfatiza a comunicação entre as ciências, Tidas como transdisciplinares.

À partir daí, cria-se a possibilidade de comunicação entre as ciências, e a ciência transdisciplinar é a que poderá desenvolver-se a partir dessas comunicações, dado que o antropossocial remete ao biológico, que remete ao físico que ao antropossocial.  (MORIN, 2010, p. 139)

O intuito da interdisciplinaridade é convidar o cidadão, e no foco do presente trabalho, o magistrado, a (re) pensar na complexidade do real, e entender que não há fórmulas pré-estabelecidas para solucionar conflitos, posto que a subsunção da norma ao fato é insuficiente para dar respostas amparadas em justiça social, pressuposto do Estado Democrático de Direito.

A missão desse método não é fornecer as fórmulas programáticas de um pensamento. É convidar a pensar-se na complexidade. Não é dar a receita que fecharia o real numa caixa, é fortalecer-nos na luta contra a doença do intelecto – o idealismo –, que crê que o real se pode deixar fechar na ideia e que acaba por considerar o mapa como território, e contra a doença degenerativa da racionalidade, que é a racionalização, a qual crê que o real se pode esgotar num sistema coerente de ideias. (MORIN, 2010, p.140)

A reforma cultural jurídica é elementar para efetividade dos direitos fundamentais e que se obtenha uma justiça social. Como salienta Boaventura de Sousa Santos, sem reforma jurídica e judiciária não se tem reforma, e “seria essa uma das principais razões que levou a que muitas reformas tenham efeitos perversos”. (SANTOS, 2011, p. 123)

Em sua obra Para uma Revolução Democrática da Justiça, Boaventura cita um exemplo em Portugal de que sem reforma cultural não é possível fazer reforma judiciária:

Em Portugal, fez-se uma grande reforma no sentido de criar penas substitutivas de prisão por trabalho a favor da comunidade para evitar que delinquentes primários fossem para um ambiente criminogênico. Fizemos uma avaliação, e pudemos verificar que eram muito poucos os processos em que tinha sido aplicada a sanção de trabalho a favor da comunidade. Por que é que os juízes não aplicavam a medida? Porque não está na sua cultura não punir, não mandar para prisão, porque aplicar uma medida alternativa é muito mais complicado, dá muito mais trabalho e, provavelmente, não contará na avaliação do seu desempenho. É que o juiz para aplicar a sanção de trabalho a favor da comunidade tem que telefonar, tem que se articular com outras organizações da comunidade. O sistema judiciário não está habituado a falar com outras instituições. Este é uma outra faceta do seu isolamento. (SANTOS, 2011, p. 124)

Assim sendo, a formação humanística por meio da resolução de nº 75 do CNJ visa oferecer ao Poder Judiciário (magistrados e servidores) arcabouço para prestação de serviço empenhado com sua função social, garantindo que o aplicador do direito não apresente indiferença ou insensibilidade às circunstancias do caso concreto, pelo contrário, que atue com ética e com parcimônia, mas sem deixar que esta seja excessiva o bastante para que se torne inacessível a sociedade e aos cidadãos. Logo, que liberte-se do individualismo e haja na busca comprometida com a efetividade dos direitos fundamentais (sociais) trazidos e assegurados pela Constituição de 1988.

 

III. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por todo exposto, conclui-se que, a sociedade contemporânea brasileira, ainda permanece arraigada nas características disjuntivas e reducionistas da ciência  tradicional, o que ocasiona a permanência da neutralidade como uma das características primordiais do Poder Judiciário e dos sistemas de justiça.

Nesse aspecto, a neutralidade remete-se àquele magistrado que se fecha a qualquer influência ideológica e subjetiva, posto que ao julgar, se mostra indiferente, insensível.

Os agentes públicos comprometidos com a transformação da realidade social, dentre eles os juízes, devem se primar pela garantia dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição da República Federativa de 1988, que estatuí um Estado Democrático de Direito.

A ausência de neutralidade está diretamente relacionada às pré-compreensões advindas de elementos: históricos, políticos, culturais, religiosos e, desconsiderar essas características seria o mesmo que desconsiderar a essência humana.

Para tanto, na tentativa de se garantir os ditames do Estado Democrático de Direito, se faz mister lançar por terra a figura do magistrado sob o enfoque liberal, além de  mudar a práxis e as crenças de neutralidade ainda existentes no cenário mundial.

Nesse sentido, os agentes públicos devem se transformar em agentes de transformação da realidade social, voltando-se para a efetivação dos direitos fundamentais (sociais) de Estado Democrático de Direito. Para isso é essencial a formação humanística e a aquisição de conhecimentos multidisciplinares que ganhem destaque na contemporaneidade complexa.

REFERÊNCIAS

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[1] Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em Direito pela PUC MINAS.

[2] Mestranda em Direito e graduada em Direito pela Faculdade Kenedy.

[3] Boaventura de Sousa Santos traz o termo em sua obra Para uma Revolução Democrática da Justiça. 2011, p. 27.

[4] Boaventura de Sousa Santos em seu artigo Introdução à Sociologia à Administração da Justiça, cita os autores Nagel (1969), Schubert (1965), Ulmer (1962 e 1979), Grossman e outros nos EUA, de Richter (1960) e Dahrendorf (1961), na Alemanha, de Pagani (1969), Di Federico  (1968) e Moriondo (1967), na Itália  e de Toharia (1975), na Espanha.

[5] PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O mito da neutralidade do juiz como elemento de seu papel social. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/2052>. Acesso em: 20 dez. 2012.

[6] CADEAS, 2003, p. 35.

[7] Conferencia “o judiciário e a Economia na Visão dos Magistrados” proferida no seminário “Reforma do Judiciário: Problemas, Desafios e Perspectivas”, promovido pelo IDESP (PINHEIRO, 2001).

[8] MORIN, Edgar Em sua obra Ciência com Consciência revela a grandiosidade do conhecimento multidisciplinar para o entendimento e construção do real.