MEDICAMENTOS

Sumário: 1- Introdução; 2- O Direito à Saúde; 3- A Questão Financeira e Orçamentária; 4- Conclusão.

INTRODUÇÃO

Já ultrapassou a fronteira dos tribunais, ganhando as ruas, a discussão acerca das ações movidas contra os entes públicos buscando compeli-los a fornecer determinada gama de medicamentos. Invariavelmente, a base legal do pleito apóia-se no dispositivo constitucional que assegura a todos o direito à saúde, ao mesmo tempo que impõe aos membros da federação, nos seus três níveis, a adoção de políticas públicas neste desiderato.

No âmbito da Procuradoria Geral do Estado de Santa Catarina, bem como na experiência de todos os seus integrantes que militam nas ações desta natureza, muita experiência se tem vivenciado acerca do assunto, razão pela qual busca-se, através deste pequeno trabalho realizado graças a contribuição de cada um dos membros daquele órgão, oferecer uma contribuição senão para a solução do conflito, ao menos para o entendimento da situação.

Se buscará, ainda, evitar dar um enfoque enviesado, penso, contaminado pela constante defesa do ente federado, mormente porque, na condição de Procurador do Estado, a função precípua deste profissional é de defesa dos interesses muito mais do que apenas da pessoa jurídica Estado de Santa Catarina, mas principalmente, da dimensão humana do Estado: o povo.[i]

O DIREITO À SAÚDE

O direito à saúde e o correlato dever do Poder Público estão contemplados no art. 196 da Constituição da República, que foi reproduzido pela Carta Estadual em seu art. 153.

"Art. 196. A saúde é um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."[ii]

"Art. 153. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". [iii]

A obrigação estatal consistente na prevenção de doenças e tratamento dos enfermos foi instrumentalizada quando da edição da Lei nº8.080/90, que criou o denominado Sistema Único de Saúde, compreendendo o atendimento integral, inclusive quanto à assistência terapêutica e farmacêutica.[iv]

Contudo, as disposições constitucionais tratam, elas próprias, de limitar a sua abrangência, na medida em que a forma pela qual o Estado deve garantir o direito à saúde está condicionada a políticas sociais e econômicas, o que faz crer que qualquer atuação nesse sentido deva ser de forma global e criteriosa, e atender aos planos orçamentários traçados na mesma Constituição.

Além disso, a própria Carta Magna impõe igualmente obediência aos princípios da universalidade do atendimento, da eficiência na administração pública (o que afasta, por exemplo, tratamentos experimentais ou de eficácia não comprovada ou inadequados para o quadro clínico do paciente), assim como da razoabilidade e proporcionalidade.[v]

Portanto, os mandamentos constitucionais relativos ao direito à saúde não servem para amparar a existência de direito subjetivo público de obter indiscriminadamente qualquer determinado medicamento, exame ou tratamento não disponível ou regulamentado pelo Sistema Único de Saúde. Somente poder-se-ia chegar a conclusão diversa se não houvesse essa política pública específica, pactuada de forma criteriosa e responsável pelos gestores do SUS, acerca dos medicamentos a serem disponibilizados à população.Ao mesmo tempo em que o medicamento é um importante insumo no processo de atenção à saúde, pode também se constituir em fator de risco quando utilizado de maneira inadequada. Não se trata, portanto, de promover o acesso a qualquer medicamento ou de qualquer forma, mas, sim, de promover o uso racional e seguro desses produtos.[vi]

Este também é o entendimento do Juiz Federal Eduardo Appio, esposado no artigo intitulado "Parte do todo - Falta de recursos não pode discriminar direitos coletivos", de 21/11/2006, publicado na Revista Consultor Jurídico, conforme se dessume do trecho abaixo transcrito:

"A título de proteger os direitos fundamentais, vários tribunais brasileiros — inclusive o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o qual tem-se destacado em nível nacional sobre este tema, a partir de diversos julgados recentes,..., têm adotado uma postura de ruptura com o princípio da isonomia entre os cidadãos brasileiros.[vii]

O que, em princípio, poderia parecer uma crítica gratuita, mostra-se, pela profundidade dos argumentos, extremamente razoável, senão veja-se na explicação do porque desta posição:

Muito embora os tribunais reconheçam a chamada "insindicabilidade do mérito do ato administrativo" — especialmente ao revisar resultados de provas em concursos públicos — não se intimidam ao atuar em áreas afetas a critérios essencialmente técnicos do Poder Executivo e do Conselho Nacional de Saúde, quando se trata de determinar aquisição de medicamentos de alto custo e realização de cirurgias não previstas nas tabelas do SUS.[viii]

Com perspicácia apurada, levanta uma questão, deveras importante, qual seja, a da obrigatoriedade do Poder público de obediência à lei orçamentária sob pena, inclusive, de incorrer em transgressão na área penal, cível e administrativa. O faz nos seguintes termos:

Enfim, o Poder Judiciário brasileiro tem adotado, de uma maneira geral, uma postura ativista, sob o influxo de densificar princípios inscritos de forma abstrata na Constituição Federal de 1988. Deste modo, concretiza direitos sociais como o direito à saúde e o direito à educação, fazendo derivar do artigo 6º da Constituição obrigações concretas em desfavor do poder público, o qual está atrelado à Lei Orçamentária Anual aprovada pelo Congresso Nacional no ano anterior.[ix]

Mais uma vez a questão do respeito à lei orçamentária é abordada, mormente porque o princípio da legalidade tem assento constitucional:

O segundo problema, não menos importante que o do déficit democrático, consiste na própria legalidade da medida, vez que os valores que farão frente às novas despesas geradas pela decisão judicial não foram previstos na Lei Orçamentária Anual, de maneira que recursos da saúde, já previamente existentes, terão de ser realocados em favor desta nova despesa. Isto implica afirmar que se uma decisão judicial determina a aquisição de medicamento de alto custo para todo um estado da federação, atingindo um determinado número de pessoas doentes, outros tantos serão fatalmente prejudicados, com evidente quebra do princípio da isonomia entre os cidadãos.[x]

Agregue-se a estas preocupações, a questão dos medicamentos especiais de alto custo que, além da questão orçamentária, tem outro reflexo, qual seja, tem um espectro de atendimento muito limitado. Em outras palavras, considerando que se vive em um país terceiro-mundista, sem recursos suficientes para atender a todos na medida de todas as tecnologias existentes, ao optar (por decisão judicial) adquirir medicamento de alto custo (que atingirá um número pequeno de pessoas), outras atividades de saúde que atingiriam um grande número de pessoas, ficam prejudicas. Também este tipo de situação, foi vislumbrada pelo Juiz Federal Eduardo Appio, analisada nos seguintes termos:

Medicamentos especiais de alto custo são produzidos para atingir pequena parcela do mercado consumidor. Os laboratórios teriam prejuízo caso o Estado brasileiro não se dispusesse a adquiri-los, dados os custos de pesquisa envolvidos. Nesta medida, sua aquisição fica condicionada, pelos técnicos do SUS, à comprovação de sua eficácia em larga escala, bem como a disponibilidade financeira em relação a outras endemias. A escolha entre a aquisição de medicamentos para combate à tuberculose ao invés dos de combate à hipertensão arterial compete ao administrador público e não ao juiz da causa.[xi]

O escopo da ação estatal abrange medidas que assegurem oferta adequada de medicamentos em termos de quantidade, qualidade e eficácia. Assim, em plena conformidade com a Política Nacional de Medicamentos, a necessidade de gerenciar adequadamente o Programa de Medicamentos excepcionais e de promover o uso racional de medicamentos, é que o Ministério da Saúde lançou-se ao desafio de formular, para os medicamentos de alto custo, Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas.[xii]

Esses Protocolos – cuja criação envolveu uma equipe de trabalho de 35 (trinta e cinco) consultores, todos médicos e professores universitários com doutoramento emfarmacologia clínica e epidemiologia – têm o objetivo de estabelecer claramente os critérios de diagnóstico de cada doença, o tratamento preconizado com os medicamentos disponíveis nas respectivas doses corretas, os mecanismos de controle, o acompanhamento e a verificação de resultados, e a racionalização da prescrição e do fornecimento dos medicamentos.

Assim, o fornecimento de medicamentos excepcionais pelo SUS obedece, por óbvio, Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas.

A QUESTÃO FINANCEIRA E ORÇAMENTÁRIA

O atendimento eficiente e efetivo da saúde, necessariamente, passa pela existência de recursos disponíveis para esse fim.

Neste aspecto o juiz federal Giovani Bigolin reportando-se à opinião dos constitucionalistas americanos, expõe o seguinte raciocínio:

"Em termos bem contundentes Holmes e Sunstein afirmam que os Direitos costumam ser descritos como invioláveis, peremptórios e decisivos. Isto, contudo, é mero floreio retórico. Nada que custe dinheiro pode ser absoluto. Nenhum direito cuja efetividade pressupõe um gasto seletivo dos valores arrecadados pelo contribuinte pode, enfim, ser protegido de maneira unilateral pelo Judiciário sem considerações às conseqüências orçamentárias, pelas quais, em última instância, os outros dois poderes são também responsáveis."[xiii]

Destarte, há que se compatibilizar o princípio da previsão orçamentária com o princípio de atendimento à saúde, haja vista que ambos os princípios estão contidos na Constituição Federal (arts.6º, 196, 198, II – saúde –, e nos arts.167, inciso II e VI – previsão orçamentária).

Exsurge, principalmente na área do SUS, o dever de o Estado estruturar programas e práticas responsáveis, eficientes e racionais, que aumentem a cobertura do sistema e atendam às necessidades da população, mantendo a impessoalidade no acesso aos tratamentos ou medicamentos.[xiv]

Portanto, deve-se compatibilizar o direito à saúde com as normas de ordem orçamentária, não se mostrando razoável que qualquer indivíduo tenha o direito de escolher unilateralmente a forma ou a condição do tratamento a ser fornecido pelo Estado.

A ausência de recursos para um determinado tratamento, é certo, tem como base aspectos orçamentários que não podem ser olvidados, e que não serão resolvidos – ao contrário, serão agravados – com decisões judiciais que simplesmente desdenhem tal realidade.

Situações como esta ensejaram a criação de uma nova disciplina, chamada Farmacoeconomia, objeto de preocupação da Administração Pública, dos profissionais da saúde e de grandes laboratórios.

Neste sentido, por que sintetiza bem a atual situação, transcreve-se:

Imaginar ser possível alcançar um sistema de saúde ideal, contando com todos os recursos mais efetivos em quantidades infinitas, é utopia. Em qualquer condição e em qualquer país, mesmo os mais abastados, nunca haverá uma condição desse nível, porque os avanços da tecnologia médica, o crescimento demográfico, o envelhecimento da população e a permanente insatisfação humana exigirão recursos cada vez maiores, em termos quantitativos e qualitativos."[xv]

CONCLUSÃO

Mais do que apenas aspectos processuais, deve-se considerar para bem compreender a situação em exame, que a solução reclamada encontra-se dentro do contexto de um país terceiro-mundista, vale dizer, sem recursos para atender a todos os reclamos da sua população, nem mesmo aqueles mais básicos que interferem diretamente na sobrevivência de cada um.

Assim, medidas que a par de parecerem corajosas, pois desafiam o todo poderoso Estado (seja na condição de ente federado ou mesmo da própria União), são na realidade ações camufladas de falsa coragem pois muito antes de ser "bondoso" que o recurso alheio a decisão judicial deve ser justa e justa com todos os cidadãos e não apenas aquele único envolvido em uma demanda.

Neste diapasão é apropriado transcrever-se as pertinentes considerações de José Reinaldo de Lima Lopes, para quem "... a prestação do serviço depende da real existência dos meios: não existindo escolas, hospitais e servidores capazes e em número suficiente para prestar o serviço o que fazer? Prestá-lo a quem tiver tido a oportunidade e a sorte de obter uma decisão judicial e abandonar a imensa maioria à fila de espera? Seria isto viável de fato e de direito, se o serviço público deve pautar-se pela sua universalidade, impessoalidade e pelo atendimento a quem dele mais precisar e cronologicamente anteceder os outros? Começam, pois, a surgir dificuldades enormes quando se trata de defender com instrumentos individuais um direito social."[xvi]

As reflexões expendidas buscam, ainda que perfunctoriamente, auxiliar, não só os operadores do Direito, mas todos os cidadãos, a refletirem sobre a concessão desenfreada de liminares e tutelas antecipadas para fornecimento de medicamentos, já que o Estado (União, Estados e Municípios) não é uma fonte inesgotável de recursos, e deve garantir ao maior número de pessoas possível o acesso à saúde.

MANOEL CORDEIRO JR.

Procurador do Estado de Santa Catarina

(ex-Procurador Geral do Estado)

Mestrando em Ciência Jurídica pela UNIVALI-SC

Referências Bibliográficas

APPIO, Eduardo. Parte do Todo – Falta de recursos não pode discrinar direitos coletivos. Disponível em http://conjur.estadao.com.br\\static/text /50337,2.

BIGOLIN, Giovani, A reserva do Possível como Limite à Eficácia e Efetividade dos Direitos Sociais. Disponível em http://www.revistadoutrinatrf4.gov.br

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível em http://www.planalto.gov.br.

CANOTILHO, Gomes. Tribunal Constitucional, jurisprudências e políticas públicas. Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/discurso gomescanotilho.htm.

DALLARI, Dalmo. Elementos de teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1994.

FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo.3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

LOPES, José Reinaldo de Lima. "DireitoSubjetivo e Direitos Sociais: O Dilema do Judiciário no Estado Social de Direito", in Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, org. José Eduardo Faria. São Paulo: Malheiros, 1998.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1998.

SANTA CATARINA, Constituição do Estado de Santa Catarina (1989). Disponível em http://www.alesc.sc.gov.br.


NOTAS

[i]  DALLARI, Dalmo. Elementos de teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1994. Este autor apresenta o conceito de povo do ponto de vista jurídico, como sendo o conjunto dos indivíduos que, através de um momento jurídico, se unem para constituir o Estado, estabelecendo com este um vínculo jurídico de caráter permanente, participando da formação da vontade do Estado e do exercício do poder soberano".

[ii] Constituição da Republica Federativa do Brasil, disponível em http://www.planalto.gov.br.

[iii] Constituição do Estado de Santa Catarina, disponível em http://www.alesc.sc.gov.br.

[iv] Na esfera infraconstitucional, no Brasil, o SUS (Sistema único de Saúde) foi regulado pela Lei Federal 8.080 de setembro de 1990. O art. 2º "caput" desta lei, prevê que: "A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício". A universalidade de acesso às ações políticas do SUS está prevista no art. 7º, I, da mesma lei.

[v] Agregue-se a estes princípios o da eficiência que, Segundo Hely Lopes Meirelles é "o que se impõe a todo agente público de realizar suas atribuições com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros."( MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1998.)

[vi] Sobre a origem histórica do debate acerca da eficácia e natureza jurídica das normas "programáticas" importante manifestação é oferecida por Gomes Canotilho ("Tribunal Constitucional, jurisprudências e políticas públicas". In "XX Aniversário do Tribunal Constitucional de Portugal, realizado no pequeno auditório do edifício da Caixa Geral de Depósitos em Lisboa. Disponível em: htt:\\www.tribunalconstitucional.pt/discurso gomescanotilho.htm, quando assevera que as normas programa serviam, originalmente, como mera orientação ao Executivo e nunca tiveram a ambição que se lhes empresta pela doutrina na atualidade.

[vii] APPIO, Eduardo. Parte do Todo – Falta de recursos não pode discriminar direitos coletivos. Disponível em http://conjur.estadao.com.br//static/text/50337,2

[viii] Ib idem.

[ix] Ib idem.

[x] APPIO, Eduardo. Op. Cit.

[xi] APPIO, Eduardo. Op. Cit.

[xii] No Ano de 2006, "ad exemplum", foram destinados cerca de R$ 40.000.000.000,00 (quarenta bilhões de reais) na lei orçamentária federal para o setor de saúde brasileiro, cujo serviço é prestado à população através de instituições públicas e de forma complementar por hospitais, clínicas e profissionais privados.

[xiii] BIGOLIN, Giovani, A reserva do Possível como Limite à Eficácia e Efetividade dos Direitos Sociais, disponível em www.revistadoutrinatrf4.gov.br

[xiv]  "A impessoalidade pode levar à igualdade, mas com ela não se confunde. É possível haver tratamento igual a determinado grupo (que estaria satisfazendo o princípio da igualdade); porém, se ditado por conveniências pessoais do grupo e/ou do administrador, estará infringindo a impessoalidade." -  FIGUEIREDO, Lucia Valle. Curso de Direito Administrativo. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

[xv] Pfizer. Disponível em http://www.pfizer.com.br/farmacocinetica.asp?pag=conclusão.

[xvi] LOPES, José Reinaldo de Lima. "Direito Subjetivo e Direitos Sociais: O Dilema do Judiciário no Estado Social de Direito", in Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, org. José Eduardo Faria. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 131.