O PAPEL GARANTIDOR DO PODER JUDICIÁRIO FRENTE A JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE: Da obtenção de medicamentos pela via judicial[1] 

Bárbara Ruscelli Revil Torres Ferreira[2]

Camila Frazão Arôso Mendes[3]

 

Sumário: Introdução;1 A Saúde como Direito garantido pela Constituição; 2 O acesso à saúde por via judicial; 3 Critérios e meios para aquisição de medicamentos pela via judicial; 3.1 Da efetivação do pedido;  Considerações finais.

 

RESUMO

O presente trabalho visa primordialmente citar a legislação correspondente a saúde como uma garantia constitucional, depois disso passear pela condição da saúde no Brasil, e substancialmente expor o trabalho na obtenção de atendimento e medicamento pela via judicial, bem como a efetivação de tal solicitação.

PALAVRAS-CHAVE: Direito à saúde; Medicamentos; Via judicial; Judicialização;

           

           

INTRODUÇÃO

Em meios às garantias constitucionais, a saúde pública se insere como um dever fundamental a ser protegido e oferecido pelo Estado. De início, é válido lembrar que a saúde, bem como a assistência farmacêutica devem ser abonadas de forma adequada, pois o seu não oferecimento fere a tese do “mínimo existencial”, que remete ao cerne material do princípio da dignidade da pessoa humana.

Sob esta esfera, é imperioso afirmar que, em tese, no Brasil a regulamentação que abrange a saúde é satisfatória, a exemplo do Sistema Único de Saúde (SUS) – abrangido pela Lei n° 8.689/93-, que como descreve o Portal da Saúde “foi criado para oferecer atendimento igualitário e cuidar e promover a saúde de toda a população” [4]. No entanto, é sabido que na prática esse serviço não atende de forma integral e satisfatória a população necessitada, seja pelo atendimento médico precário (devido, entre outras razões, a própria estrutura oferecida aos mesmos) ou pela  distribuição insuficiente de remédios, sendo isto resultado, mormente, do escasso investimento nesse setor, entre outros.       

Diante de tal inércia estatal a população encontra seu refúgio no poder Judiciário, que é invocado cada vez mais em razão dessa situação, desembocando, paulatinamente, em uma verdadeira judicialização do direito à saúde.

1 A SAÚDE COMO DIREITO GARANTIDO PELA CONSTITUIÇÃO

A saúde é um direito fundamental e social previsto fundamentalmente na Constituição Federal do artigo 196 – 200, na Lei Orgânica da Saúde nº 8.080/90, no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Estatuto do Idoso, Lei n. 11.741, em sendo  pois direito de todos e de garantia do Estado, possuindo aplicabilidade direta e imediata. Nesse lócus, deve ser proporcionada através de políticas sociais que possuam como escopo o próprio acesso à saúde, excluindo qualquer distinção aos sujeitos portadores desse direito.

 Por conseguinte, é preciso que haja cautela quanto a tal distinção, isso porque cada região deve ser ministrada tendo em vista suas particularidades. Nesse meio, bem coloca Gandini e Barione que:

Para cumprimento desse dever que a Constituição lhe impõe, o Estado             instituiu entidades públicas, ora pertencentes à Administração direta, ora à                                                 Administração indireta, bem como criou mecanismos de cooperação entre essas entidades e entre entidades do setor privado, de modo que a execução

das políticas públicas de saúde se efetive de modo universal e igualitário observando as peculiaridades regionais e sociais da população que atende.[5] (grifo nosso)

Assim, a única diferença querida não reside no tratamento na assistência à população, mas sim na adequação da necessidade que oscila de acordo com o local. Isso se deve diretamente a carência econômica de um local onde a demanda pelo atendimento sanitário e de saúde é maior (como nos interiores) ou até mesmo em lugares que apresentam deficiência de profissionais, médicos obstetras, por exemplo, em outros de pediatras e assim sucessivamente.

De certo, o fato do direito a saúde ser assumido na esfera “fundamental” deve ser visto como um relevante fato social e jurídico, não prosseguindo como simples questão “retórica” como bem alude Luis Roberto Barroso:

qualificar um dado direito como fundamental não significa apenas atribuir-lhe uma importância meramente retórica, destituída de qualquer conseqüência jurídica. Pelo contrário, (...) a constitucionalização do direito à saúde acarretou um aumento formal e material de sua força normativa, com inúmeras conseqüências práticas daí advindas, sobretudo no que se refere à sua efetividade, aqui considerada como a materialização da norma no mundo dos fatos, a realização do direito, o desempenho concreto de sua função social, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social [6]. (grifo nosso)

Nesse caminho é lúcido observar que a procedência dessa garantia constitucional habita no princípio da dignidade da pessoa humana, pois além de se colocar na base da carta magna, certifica o bem-estar de toda a sociedade. Assim, nesse âmbito, o mantimento da saúde é tomado por direito fundamental social, assim como aqueles relacionados ao trabalho, ao seguro social e à velhice.[7]

2 O ACESSO A SAÚDE PELA VIA JUDICIAL

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado em 1988, através da Constituição Federal. Sobre o Sistema informa o Ministério da Saúde:

Além de oferecer consultas, exames e internações, o Sistema também promove campanhas de vacinação e ações de prevenção e de vigilância sanitária – como fiscalização de alimentos e registro de medicamentos –, atingindo, assim, a vida de cada um dos brasileiros. (...) O SUS foi criado para oferecer atendimento igualitário e cuidar e promover a saúde de toda a população. O Sistema constitui um projeto social único que se materializa por meio de ações de promoção, prevenção e assistência à saúde dos brasileiros.[8]

Forma de promoção do SUS, a “Carta de Direito dos Usuários de Saúde” [9], (documento criado para revelar aos cidadãos seus direitos ao ingressarem no sistema de saúde, público ou privado), é regido por uma gama de Princípios, dentre os quais o de que “Todo cidadão tem direito a tratamento adequado e efetivo para seu problema”.

Como afirma Barroso, “a denegação dos serviços essenciais de saúde acaba por se equiparar à aplicação de uma pena de morte”. [10] Partilhando a mesma linha de raciocínio, Ana Cristina Kramer afirma que doutrinas e jurisprudências de diversos países, acreditam que,

por força do princípio da dignidade humana, todo ser humano possui um direito ao mínimo existencial, o que significa um direito aos meios que possibilitem a satisfação das necessidades básicas, entre as quais a necessidade de ter saúde.[11]

Todavia, diverge ao atendimento do “mínimo existencial” a insuficiência dos recursos financeiros do Estado para sua realização. Essa insuficiência vem sendo aferida pela doutrina e pela jurisprudência na esfera daquilo que se nomeou “reserva do possível”. Sobre o assunto, Fernando Mânica[12] discorre:

A reserva do possível traduzida como insuficiência de recursos, também denominada reserva do financeiramente possível, portanto, tem a aptidão de afastar a intervenção do Poder Judiciário na efetivação de direitos fundamentais apenas na hipótese de comprovação de ausência de recursos orçamentários suficientes para tanto. Tal viés da teoria da reserva do possível é importante e deve ser entendido com o objetivo de vincular o direito à economia, no sentido de que as necessidades (...) são limitadas e os recursos são escassos. Esse postulado, fundamento da ciência econômica, deve ser levado em conta tanto na definição das políticas publicas quanto na decisão judicial do caso concreto.[13]

Exceto pelos casos em que é evidente a impossibilidade de cumprimento da ordem, por barreiras de ordem natural, não é fácil analisar se a decisão está ou não de acordo com o postulado da reserva do possível, especialmente quando se está diante da reserva do financeiramente possível, como comentado no excerto supracitado. Nesse caso, faz-se necessário, não só alegar a impossibilidade financeira de se cumprir a ordem judicial, mas também demonstrá-la, de forma concreta.

3 CRITÉRIOS E MEIOS PARA AQUISIÇÃO MEDICAMENTOS PELA VIA JUDICIAL

Como bem dito acima, a saúde no Brasil enfrenta diversas limitações. Nesse sentido, quando tais situações incidem, o cidadão lesado em seu tratamento ou colocado no posto de possível alvo de uma lesão irreparável à sua saúde vem a constranger o Estado a exercer o dever que a carta magna lhe conferiu. Nesse caminho, ações judiciais são cada vez mais reincidentes para contornar o reparo a tais condições, fato este que caracteriza a ascensão da judicialização do acesso a medicamentos.  

Cumpre registrar então que os elementos requeridos para a concessão de remédios por via judicial se mostram expostos fundamentadamente na Portaria do Ministério da Saúde nº 3.916/98 que subscreve conteúdo tangível a distribuição, aquisição e entrega de medicamentos essenciais. Diante disse explicita a razão a qual foi implantada

Para assegurar o acesso da população a medicamentos seguros, eficazes e de qualidade, ao menor custo possível, os gestores do SUS, nas três esferas de Governo, atuando em estreita parceria, deverão concentrar esforços no sentido de que o conjunto das ações direcionadas para o alcance deste propósito estejam balizadas pelas diretrizes a seguir explicitadas.[14]

Correspondente a isso é imperioso alocar regra unânime a tal informação, como aponta o juiz federal substituto Rodrigo Gaspar de Mello “constando da relação municipal de medicamentos essenciais (a que medicamentos as pessoas têm direito), o medicamento deve ser fornecido pelo município (quem deve fornecer o medicamento) a qualquer pessoa que do medicamento necessitar”.[15]

Nesse meio, em sendo um benefício devido a qualquer munícipe, os remédios alocados na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) tem de estar disponíveis para todos eles que o precisem. Assim, alude Rodrigo Gaspar Mello que “a entrega é dever do município, caso o medicamento conste na relação municipal de medicamentos essenciais; caso não conste na relação municipal, mas esteja inserido na Rename é dever da União fazer a entrega do medicamento.” Já quanto ao dever dos Estados, a eles custam definir o elenco de medicamentos que serão adquiridos diretamente pelo estado, inclusive os de dispensação em caráter excepcional, tendo por base critérios técnicos e administrativos referidos no Capítulo 3, ‘Diretrizes’, tópico 3.3 desse documento e destinando orçamento adequado à sua aquisição”, vide Portaria nº 3.916/98 cláusula 5.3 - m).

Dentre os mecanismos processuais disponíveis aos pacientes cujo pleito é a assistência à saúde perante o Poder Judiciário, temos: a ação civil pública, disciplinada pela Lei n. 7347/85; o mandado de segurança; e as ações condenatórias de obrigação de fazer ou de obrigação de dar. O mandado de segurança, além de estar previsto especificamente na lei de n. 12.016/2009, é contemplado no inc. LXIX do art. 5º da Constituição Federal, que dispõe:

Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.

Sobre tutela antecipada, Alexandre Câmara comenta:

(...) Numa hipótese em que a antecipação da tutela se faça necessária para que se realize uma transfusão de sangue, ou uma amputação de membro. Ambos os casos revelam provimentos jurisdicionais capazes de produzir efeitos irreversíveis. (...) Nestas hipóteses estar-se-á diante de verdadeira “irreversibilidade de recíproca”, caso em que se faz possível a antecipação da tutela jurisdicional. Diante de dois interesses na iminência de sofrerem dano irreparável e sendo possível a tutela de apenas um deles, caberá ao juiz proteger o interesse mais relevante, aplicando-se o principio da proporcionalidade. [16]

 

Importa-nos saber que, em qualquer dos procedimentos adotados, é possível a concessão de tutela de urgência, compreendendo as liminares, cautelares e, como visto anteriormente, antecipações de tutela (cujos requisitos legais estão presentes nos artigos 273, 461 e 461-A do CPC).

 

 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito à saúde deve ser encarado como direito fundamental social, passível de ser tutelado judicialmente em casos em que o Estado não promova as prestações materiais necessárias à efetiva aplicação. Ao atribuir-se a determinados direitos a característica de fundamentais não pode se restringir à objetivos meramente acadêmicos, independentemente de qualquer consequência prática.

Todo direito fundamental apresenta antes de tudo um caráter principiológico, embebido de força normativa, e cuja aplicação não se limita a casos específicos, devendo ser utilizado para promover a máxima eficácia dos valores garantidos pela Constituição Federal. O direito de recorrer ao Poder Judiciário para proteger tal direito é tão legal quanto o dever do Estado à prestação de atendimento médico e assistência farmacêutica, assegurado pela própria Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XXXV.  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

ANVISA - Portaria nº 3.916/MS/GM, de 30 de outubro de 1998. Disponível em: < http://www.anvisa.gov.br/legis/portarias/3916_98.htm> Acesso em: 20.Out.2011

 

BARIONE, Samantha Ferreira. GANDINI, João Agnaldo Donizete. A Judicialização do Direito à Saúde: a obtenção de atendimento médico, medicamentos e insumos terapêuticos por via judicial. São Paulo. p.2. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/16694. Acesso em: 10. out.11

 

 

BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: limites e

possibilidades da Constituição Brasileira. 3ª ed. São Paulo: Renovar, 1996, p. 83.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.470/471.

KRAMER, Ana Cristina. O Poder Judiciário e as ações na área de saúde. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br/artigos/edicao015/Ana_Kramer.htm.> Acesso em: 20/10/2011.

MÂNICA, Fernando Borges. Teoria da reserva do possível: Direitos Fundamentais a Prestações e a Intervenção do Poder Judiciário  na Implementação de Políticas Públicas. Revista brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n.18, 2007, p. 182.

MELLO, Rodrigo Gaspar de. O fornecimento de medicamentos pelo poder público e a competência da justiça federal. Disponível em: < http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/127/129> Acesso em: 17.out.2011

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 31.

Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1395 , acesso em 23. mai.2011.

O que é o SUS: apresentação. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/visualizar_texto.cfm?idtxt=29178&janela=1> Acesso em: <18.out.2011>

 



[1] Trabalho apresentado para a obtenção de nota de Processo de Conhecimento II, disciplina ministrada pelo Professor Hugo Passos

[2] Acadêmica do quinto período noturno do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

[3] Acadêmica do quinto período noturno do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

[4] O que é o SUS: apresentação. Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/visualizar_texto.cfm?idtxt=29178&janela=1> Acesso em: <18.out.2011>

[5] BARIONE, Samantha Ferreira. GANDINI, João Agnaldo Donizete. A Judicialização do Direito à Saúde: a obtenção de atendimento médico, medicamentos e insumos terapêuticos por via judicial. São Paulo. p.2. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/handle/2011/16694. Acesso em: 10. out.11

[6] BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: limites e

possibilidades da Constituição Brasileira. 3ª ed. São Paulo: Renovar, 1996, p. 83.

[7] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24 ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 31.

[8]  Disponível em : <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/area.cfm?id_area=1395> Acesso em 23. mai.2011.

[9]  Disponível em : <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/cartilha_integra_direitos_2006.pdf> acesso em 23.mai.2011.

[10] BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 3ª ed. São Paulo: Renovar, 1996, p. 83.

[11] KRAMER, Ana Cristina. O Poder Judiciário e as ações na área de saúde. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.gov.br/artigos/edicao015/Ana_Kramer.htm.> Acesso em: 20/10/2011.

[12] Doutorando em Direito do Estado na USP.

[13] MÂNICA, Fernando Borges. Teoria da reserva do possível: Direitos Fundamentais a Prestações e a Intervenção do Poder Judiciário na Implementação de Políticas Públicas. Revista brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, ano 5, n.18, 2007, p. 182.

[14] ANVISA - Portaria nº 3.916/MS/GM, de 30 de outubro de 1998. Disponível em: < http://www.anvisa.gov.br/legis/portarias/3916_98.htm> Acesso em: 20.Out.2011

[15] MELLO, Rodrigo Gaspar de. O fornecimento de medicamentos pelo poder público e a competência da justiça federal. Disponível em: < http://www4.jfrj.jus.br/seer/index.php/revista_sjrj/article/viewFile/127/129> Acesso em: 17.out.2011

[16]  CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p.470/471.