DIREITO À MORADIA X DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE PROTEGIDO: ANÁLISE DE ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO A RESPEITO DA COLISÃO DESSES DIREITOS FUNDAMENTAIS. Luiza Sousa Barros Vieira Mateus Coelho Maia Lago SUMÁRIO: Introdução; 1. Direito a moradia no mundo; 1.1 No Brasil; 1.2. Politica Habitacional; 2. Direito fundamental ao Meio Ambiente ecologicamente equilibrado (princípios ambientais); 3. Análise das dimensões de direitos fundamentais; 4.Conflito entre o Direito à moradia e o Direito ao meio ambiente ecologicamente protegido;5. Analise dos acórdãos; Conclusão; Referências. Resumo Palavras-chave INTRODUÇÃO O Brasil é hoje um país mais urbano do que nunca. Segundo o censo 2010, realizado pelo IBGE, 84% da população brasileira vive nas cidades. Esse crescimento urbano intenso e muitas vezes mal planejado tem uma conseqüência lógica, que é o aumento do desmatamento dentro dos territórios dos municípios. Segundo o almanaque abril de 2012, uma das principais causas de desmatamento no Brasil, hoje, é o crescimento das cidades, sendo superado apenas pela agropecuária e pela exploração de madeira. O processo de êxodo rural ocorrido no país ao longo de todo o século XX, que se intensificou nas décadas 1950, 1960 e 1970, acabou gerando em grande parte das cidades brasileiras a formação de áreas de ocupação irregular, que são aquelas áreas que foram consideradas, pela legislação de zoneamento da cidade, inadequadas para a moradia. Essas áreas são, muitas vezes, ocupadas por famílias pobres, que lá constroem suas casas, quase sempre precárias, justamente por serem áreas inadequadas e por isso muito baratas ou de quase nenhum valor, já que não interessam à especulação imobiliária. Essas moradias, além de construídas em áreas irregulares são na maioria das vezes construídas em terrenos “invadidos”, isto é, que não são documentados, na verdade pertencem ao município, mas foram tomados por particulares. No entanto, é importante ressaltar, que nem sempre essas ocupações irregulares são feitas por pessoas de baixa renda, pois não é muito raro encontrar também, pessoas de alta renda, construindo imóveis de alto valor, e até mesmo empreendimentos imobiliários, em áreas irregulares. Diante deste breve panorama da realidade urbana brasileira, é importante acrescentar que, essas moradias irregulares, muitas vezes, além de não terem documentação e ocuparem áreas condenadas pelo zoneamento urbano, destroem, dentro dos municípios, áreas que são de preservação ambiental. Nesse caso, surge então um conflito, entre o direito à moradia e o direito a um meio ambiente ecologicamente protegido, ambos direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988. Ao falar de meio ambiente, nesse caso, faz-se referencia ao meio ambiente natural, protegido de forma bem clara pela CF nos incisos I, III e VII do §1° do Art. 225. É exatamente esse conflito que será analisado neste trabalho, tendo como pano de fundo dois acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo, que serão esmiuçados para a compreensão às soluções que foram dadas pelo poder judiciário nesses dois casos em que esse conflito entre esses dois direitos fundamentais se configurou. 1. Direito à moradia no mundo O direito à moradia é direito fundamental de segunda dimensão, o Estado deve efetiva-lo, sendo vedado o retrocesso social. ‘’ A situação econômica e social da maioria da população urbana pode ser vista através das condições inadequadas e degradantes nas favelas, bairros suburbanos, ou cortiços, habitações e coletivas de aluguel. ’’ (JUNIOR, 2003, p.63) A Revolução Industrial causou a grande oferta de trabalho nas cidades, grande parte das pessoas, que moravam na zona rural foram para a zona urbana. Em decorrência da falta de capital, construíam casas em morros, encostas, locais situados próximos aos locais de trabalho, já que ganhavam pouco, sendo insuficiente para sustentar sua família, não tinham como arcar com meios de transporte, bem como, para ter uma moradia melhor. Essas ocupações são perceptíveis na Revolução Industrial, como atualmente em diversos países. A questão da moradia vem gerando preocupação e discursão em escala global, entre governos e a sociedade civil. Diversos eventos e convenções foram acordados visando evitar consequências ao ser humano, à vida e ao meio ambiente, além de elaborarem estratégias na forma de agir dos governos. O direito a moradia encara o problema da eficácia, como outros direitos fundamentais, em diversos países em desenvolvimento, que asseguram esses direitos fundamentais em suas Constituições, no entanto no plano fático não concretizam, por exigirem recursos materiais e o Estado encontrar limitações orçamentárias para o cumprimento. Não é suficiente a simples presença formal, se não existir a realização. O direito a moradia além de está presente na Constituição de diversos países constitui um direito universal, sem fronteiras. ‘’ O cidadão do mundo sujeito de direitos universais reconhecido como um sujeito de direitos internacional.’’ (JUNIOR 2003,P. 65) A respeito da dificuldade de efetivação do direito a moradia, se posiciona Sardinha: A efetivação do Direito à Moradia está ligado diretamente a solução de dois problemas. De um lado, o problema do acesso à moradia, ou seja, do elevado déficit habitacional e de outro, a inadequação das moradias existentes, ou seja, do elevado número de moradias precárias, insalubres, ilegais e irregulares. (SARDINHA, p.866). 1.1. No Brasil O direito a moradia em decorrência da anuência a diversos documentos, acordos internacionais, sendo incluído por meio da Emenda Constitucional n 26, de 14 de fevereiro de 2000 à Constituição Federal como direito fundamental, encontra-se no art.6. ‘São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição’’. O direito a moradia não é o mesmo que direito a propriedade, presente no art.5,XXII, da Constituição Federal, dessa forma tem como objetivo efetuar o acesso a moradia, não o realização da aquisição a propriedade. A ausência de politicas públicas solidificadas relacionadas à reforma agraria no país, motivou o êxodo rural e o aumento repentino das cidades. Na década de 30 com a industrialização e o deslocamento do campo para as cidades iniciou a observância da falta de infraestrutura das cidades, que não estavam prontas para suportar a quantidade de pessoas que vieram do campo. As politicas públicas que existiram com o intuito de conter o aumento desenfreado não vingaram, continuando a existir marginalização de determinados grupos sociais, que por não ter condições moravam em barracos sem saneamento básico, iluminação, em péssimas condições. Esse processo desordenado de como ocorreu à ocupação do território brasileiro é fundamental para entender o direito a moradia atualmente no país. No primeiro Encontro Brasileiro de Direitos Humanos, sobre o direito à Moradia, posiciona-se a respeito da efetividade dos direitos sociais no Brasil, Fernando Abujamra Aith: ‘’ Os Direitos individuais possuem muito mais respaldo jurídico e garantis jurídicas efetivas do que os direitos sociais. Enquanto existem instrumentos como o Habeas Corpus, Mandado de Segurança, o principio da legalidade, entre outros, destinados à garantia do cidadão contra arbitrariedades estatais, verificamos a absoluta falta de instrumentos e garantias jurídicas que protejam, com mesma eficácia, os direitos sociais, culturais e econômicos. Enquanto os direitos civis e políticos exigem, basicamente, uma abstenção por parte do Estado, os direitos sociais exigem uma ação efetiva do estado. Sobre a não efetivação do direito fundamental garantido na constituição federal se posiciona HENKES: A não efetivação do acesso à moradia propricia graves e inúmeras violações à vida, a saúde e a dignidade das pessoas atingidas, além de violar outros direitos e valores, tais como: a identidade, a qualidade de vida, a segurança, as oportunidades de trabalho, a inclusão social e cidadania. (HENKES.p. 868) O direito a moradia é um direito fundamental social de segunda dimensão, que deve ser realizado pelo Estado, devido a sua dimensão positiva. O Estado Brasileiro deve propiciar aos cidadãos o direito a moradia, a quem não tem e que tem de maneira precária. Seguindo o que está presente no art.21, XX da Constituição Federal. 1.2. Politica Habitacional A Politica Habitacional brasileira foi estimulada em 1964 depois do inicio do Banco Nacional de Habitação (BNH) e do Sistema Federal de Habitação (Sefhan), não sendo motivada somente devido ao problema de moradia perceptível, mas em função do déficit habitacional, assim como modo de domínio politico e econômico, para diminuir conflitos existentes pelos territórios. A finalidade de acabar com o problema da moradia no Brasil para a população necessitada, por meio de Politica Habitacional primeiramente não deu totalmente certo, contribuiu para a expansão do capitalismo e segregação de áreas e valorização de algumas em relação a outras. A Constituição Federal adota o principio da descentralização politica, dessa forma os entes federativos: União, Estados e Municípios são dotados de autonomia, o que torna difícil a regularização da atuação e deveres que cada um possui. A respeito da obrigação dos entes federativos sobre politica habitacional, dispõe Junior: A obrigação dos entes federativos de promover uma politica habitacional está prevista em especial no campo das competências comuns, esta competência confere as entidades federativas a missão de promover politicas e ações sobre uma matéria de forma integrada, sem que o exercício por parte de uma dessas entidades venha a excluir a responsabilidade de outra. O grau de responsabilidade deve ser compreendido em razão das demais competências constitucionais das entidades federativas. (JUNIOR, p.100). O que ocorre preponderantemente quanto à repartição de competências é que União encontra-se responsável quando se trata de interesse nacional e internacional, ao Estado matérias de interesse regional, cabendo ao Município os de interesse local, suplementar a federal e estadual. Para desenvolver Politica Habitacional o Município deve instituir o Plano Diretor, que está presente no art. 182 § 1º da Constituição Federal e também por meio da Lei 10.257/ 01, o Estatuto da Cidade; segundo Villaça: Seria um plano que, a partir de um diagnostico cientifico da realidade física, social, econômica, politica e administrativa da cidade, do município e de sua região, apresentaria um conjunto de propostas para o futuro desenvolvimento socioeconômico e futura organização espacial dos usos do solo urbano, das redes de infraestrutura e de elementos fundamentais de estrutura urbana, para a cidade e para o município, propostas estas definidas para curto, médio e longo prazos, aprovadas por lei municipal ( VILLAÇA,1999,P.238) O planejamento, através do plano diretor, e a realização de politica habitacional, são fundamentais para propiciar igualdade entre os cidadãos, todos tem o direito de morar com dignidade, para tanto o Estado deve cumprir seu papel e desenvolver politicas habitacionais que garantam o que é direito de todos. 2. Direito fundamental ao Meio Ambiente ecologicamente equilibrado (princípios ambientais) O meio ambiente é o âmbito que envolve o ser humano, a natureza, o meio urbano, bem como contempla o cultural, todos os elementos que estão na terra, em constante interação. Os impactos causados ao Meio Ambiente ocasionaram nos últimos anos maior preocupação, levando tanto por parte do Estado como da sociedade civil a buscar maneiras de evitar e minimiza-los. Para regulamentar e equilibrar o progresso econômico com o meio ambiente, o direito passou a tutelar, por meio de politicas de preservação do meio ambiente, limitando e coordenando as atividades que provocam alterações ao meio ambiente, para assegurar o pretendido foram elencados alguns princípios ambientais. Princípios orientam o ordenamento jurídico, representam valores da sociedade em um determinado tempo. Segundo Fiorillo: Aludidos princípios constituem pedras basilares dos sistemas politico- jurídicos dos Estados civilizados, sendo adotados internacionalmente como fruto da necessidade de uma ecologia equilibrada e indicativos de caminho adequado para a proteção ambiental, em conformidade com a realidade social e os valores cultuais de cada Estado. ( FIORILLO,P.28) Os princípios referentes ao direito ambiental são relativamente novos, em 1972 somente com a realização da Conferência de Estocolmo dilatados em 1992 na ECO-92 Conferência das Nações unidas que foi realizada no Rio de Janeiro como tema de meio ambiente e desenvolvimento. O artigo 225 da Constituição Federal trata a respeito da proteção do meio ambiente, onde estão os princípios ambientais que servem de orientação. CF. Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. O princípio do Ambiente Ecologicamente Equilibrado, é para uma boa qualidade de vida. ‘’O reconhecimento do direito e um meio ambiente sadio configura-se na verdade como extensão do direito a vida, quer sob o enfoque da própria existência física e saúde dos seres humanos, quer quanto ao aspecto da dignidade dessa existência- qualidade de vida’’ (MILARÉ 2007,p.762). Não é suficiente apenas a previsão constitucional de proteção a meio ambiente ecologicamente equilibrado a todos, é necessária a educação ambiental, tratamento de áreas, da fauna, da flor, das aguas, espações urbanos devendo ser restaurados conservados e melhorados. O meio ambiente deve ser assegurado para as gerações futuras, a ideia de solidariedade intergeracional, para que as gerações futuras também possam usufruir e aproveitar do meio ambiente. Quem deve atuar, portanto é o Estado, o poder público deve promover o bem- estar ecológico, assim como é essencial a colaboração da coletividade. Para a realização do ambiente ecologicamente equilibrado e solidariedade com as gerações futuras, percebe-se a relação com o principio da prevenção e precaução. A prevenção é quando os danos que decorrem de determinada atividade são conhecidos, riscos concretos, já a precaução conexa aos riscos abstratos; necessários, pois adotam medidas anteriores aos danos ao meio ambiente. O principio que trata a respeito da responsabilidade do poluidor é o Poluidor-pagador que prevê responsabilidade administrativa, civil e penal. ‘’ não se trata exclusivamente, de um principio de compensação dos danos causados pela deterioração, ou seja, não se resume na formula poluiu pagou’’. (CANOTILHO E LEITE 2008, P. 182). No caso é muito além, é uma proteção ao meio ambiente. O principio do desenvolvimento sustentável visa o equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a preservação ambiental. É notório a preocupação das empresas em respeitar as normas ambientais e fortalecer seu empreendimento de forma menos impactante ao meio ambiente. A respeito do desenvolvimento sustentável ressalta Fiorillo: O principio possui grande importância, porquanto numa sociedade desregrada, à deriva de parâmetro de livre concorrência e inciativa, o caminho inexorável para o caos ambiental é uma certeza. Não há duvidas de que o desenvolvimento econômico também é um valor precioso da sociedade. Todavia, a preservação ambiental e o desenvolvimento econômico devem coexistir, de modo que aquela não acarrete a anulação desta. (FIORILLO, p.30) Quanto à função social da propriedade, como condição para a sua existência, deve, portanto trazer benefícios para a sociedade, proporcionar o bem-estar social, o plano diretor como já foi abordado irá disciplinar, ajustar o espaço urbano. Os princípios abordados solidificam a importância e impulsionam a efetivação de medidas protetivas ao meio ambiente tanto por parte do Estado como da sociedade. 3. Análise das dimensões de direitos fundamentais Uma clássica divisão dos direitos fundamentais os divide em direitos de três gerações. A primeira geração é a dos chamados direitos individuais que remonta às revoluções Francesa e Americana, do fim do século XVIII. Nesse período buscava-se limitar a atuação do poder público sobre a vida privada dos indivíduos, evitando arbitrariedades por parte do Estado e garantindo a liberdade dos indivíduos. Esses direitos de primeira geração são, portanto, uma “proteção” do indivíduo com relação ao Estado, são direitos fundamentais que buscam garantir uma inércia do poder público, em prol da liberdade individual, e podem ser identificados na nossa Constituição Federal no Art. 5º. Já a segunda geração de direitos fundamentais é a dos direitos sociais, que são os direitos relacionados a prestações positivas que o Estado tem obrigação de dar e os indivíduos direito de exigir do Estado. Estão relacionados ao bem-estar social, que deve ser garantido aos cidadãos pelo Estado, devendo este oferecer saúde, educação, segurança, dentre outros. Esses direitos sociais podem ser identificados na nossa Carta Magna no Art. 6º. Por fim, há ainda os direitos de terceira geração, que são chamados de direitos “difusos ou coletivos”, “uma vez que são concebidos para a proteção não do homem isoladamente, mas da coletividade, de grupos” (MENDES, p. 156, 2012). É nessa terceira geração que se enquadra o direito a um meio ambiente saudável, como afirma o Ministro Gilmar Mendes: “Tem-se aqui (na terceira geração) o direito à paz, ao desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural” (MENDES, p.156, 2012). Existe ainda, além da divisão clássica das três gerações, uma divisão mais moderna e bem interessante de direitos fundamentais, que é a “Teoria dos Status”, do filósofo alemão Georg Jellinek. Essa teoria, em resumo, afirma que os direitos fundamentais sempre vão ter dimensão ou positiva, ou negativa. Os de dimensão negativa são aqueles que obrigam o Estado a se abster de intervir na vida do indivíduo, já os de dimensão positiva são aqueles que criam para o Estado a responsabilidade de dar prestações positivas aos indivíduos, e dão a estes últimos o direito de exigir essas prestações perante o Estado. À luz dessa teoria percebemos que na nossa Constituição Federal o Art. 5º traz direitos fundamentais que são primordialmente negativos e o Art. 6º traz direitos que são primordialmente positivos. Mas e o direito ao maior ambiente? Ora esse direito, positivado na CF nos Art. 5º, XXIII, 170 e 225, seria um direito tanto de dimensão positiva, quanto de dimensão negativa. Isto porque o estado, ao mesmo tempo em que está obrigado a se abster de degradar o meio ambiente, está obrigado também a agir de maneira a garantir a preservação desse meio ambiente. E é exatamente isso que prevê um dos princípios mais importante do direito ambiental, que é o “princípio da intervenção estatal compulsória”. Segundo Nicolau Dino de Castro Costa Neto: “No que concerne à proteção ambiental, o Estado tem o dever de adotar uma postura positiva – no sentido de assegurar e proporcionar a higidez do bem em tela – e, também, uma postura negativa – impondo-se-lhe o dever de não agir de forma prejudicial ao meio ambiente”.(COSTA NETO, p. 38, 2003). 4. Conflito entre o Direito à moradia e o Direito ao meio ambiente ecologicamente protegido No Brasil, o direito à moradia tem entrado em conflito, principalmente nas cidades, com o direito ao meio ambiente ecologicamente protegido. Esse conflito é produto imediatamente do processo de urbanização intenso e desordenado pelo qual passou o nosso país nos últimos 50 anos. Renata Camargo, em sua monografia sobre Direito à moradia e direito ao meio ambiente protegido afirma: “Esse crescimento (urbanização) não se dá de maneira gradual, mas de forma “explosiva”, que resulta em concentração urbana. A urbanização gera problemas como a deterioração do ambiente urbano, a desorganização social, a carência de habitações, problemas de saneamento básico e outros.” (CAMARGO, p. 28, 2007). Os municípios têm, de acordo com o Estatuto da Cidade, o dever de elaborar um “plano diretor”, que é um instrumento legislativo municipal que tem como objetivos estruturar a realização das atividades dentro da cidade, definir os modos de organização do trânsito, zonear a cidade em áreas para a construção de prédio, casas, fábricas, estabelecimentos comerciais, e inclusive definir algumas áreas como de preservação. Portanto, algumas áreas de preservação, áreas em que não se pode erguer nenhum tipo de construção, nem mesmo moradias, ou em que se pode fazer isso, mas mediante autorização especial, podem ser determinadas pelo município no plano diretor. A preocupação do Estatuto da Cidade com a proteção do meio ambiente fica clara já no parágrafo único do seu primeiro artigo, que diz: “Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. Além disso, dentro das cidades, encontram-se também as chamadas “unidades de conservação”, que são áreas protegidas legalmente, em que ou não se pode construir de forma alguma (as unidades de conservação integrais), ou que têm ocupação e exploração controladas, como é o caso das “áreas de proteção ambiental”. Essas unidades de conservação podem ser federais, estaduais ou municipais, são protegidas, portanto, respectivamente pela União, pelos Estados e pelos Municípios. Segundo o Almanaque Abril 2012 o Brasil tem hoje 884 unidades federais de conservação, 616 estaduais e 88 municipais. Diante disso, percebe-se que o conflito entre direito á moradia e direito ao meio ambiente ecologicamente protegido se configura justamente quando esse plano diretor, elaborado pelo município, é desrespeitado, ou quando a proteção das unidades de conservação, delimitadas dentro da cidade pela União, pelo Estado ou pelo Município, também é ignorada. Esse desrespeito ocorre e geral sem o consentimento do poder público, que é o que ocorre nas invasões, nas ocupações irregulares, etc. No entanto, esse desrespeito por vezes ocorre com a conivência do poder público, que, ou se abstém de fiscalizar, ou autoriza edificações em locais em que não deveriam ser autorizadas. Nesses casos, o direito á moradia se sobrepõe ao direito ao meio ambiente protegido, de maneira desproporcional, como se fosse o primeiro mais importante que o segundo, devendo o segundo ser preterido em qualquer caso, o que não é verdade. Não é verdade porque direitos fundamentais são princípios e não existe hierarquia abstrata de princípios, todos eles estão no mesmo patamar, todos têm a mesma importância, a prevalência de um em detrimento de outro só pode ser medida no caso concreto. O constitucionalista Luís Roberto Barroso afirma: “não existe hierarquia em abstrato entre princípios, devendo a precedência relativa de um sobre o outro ser determinada à luz do caso concreto”. (BARROSO, P. 329, 2009). Por fim, entendemos também que esse conflito de direitos fundamentais é gerado, de maneira mediata, por uma mentalidade contemporânea de separar “humano” de “natural”. Nesse sentido Renata Camargo aduz: “Por muito tempo, os conceitos de humanidade e natureza foram tratados em separado, não sendo considerada a inter-relação entre eles. As cidades modernas são exemplos dessa dicotomia entre homem e natureza. Como observa Hough, nas cidades há duas regiões distintas: uma onde habitam as pessoas e outra, exterior à cidade, onde vive a natureza”.(CAMARGO, p. 26, 2007). 5. Análise dos acórdãos Serão analisados dois acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que são relacionados ao conflito debatido no presente trabalho. O primeiro acórdão é do julgamento pelo TJ-SP de um agravo de instrumento proposto pelo Ministério Público, em que o agravado é a prefeitura de São Sebastião. Em decisão interlocutória o juiz da comarca de São Sebastião determinou a emenda da petição inicial da ação civil pública movida pelo MP, para ver incluídos, no polo passivo, todos aqueles que residem irregularmente em Área de Preservação Permanente (APP). Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL - OCUPAÇÃO IRREGULAR EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO DOS OCUPANTES INADMISSIBILIDADE - NÃOPREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO ART. 47 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL - OBJETO DA AÇÃO QUE SE CINGE À RESPONSABILIZAÇÃO DO MUNICÍPIO - AGRAVO PROVIDO Vistos A análise da ação civil será realizada de um modo geral, e não apenas do julgamento do agravo. Trata-se de uma Ação Civil Pública, ajuizada pelo Ministério Público, em que se pretende a regularização urbanística e ambiental do Morro do Cantagalo, em Ilhabela. Para tanto, se pretende remover todas as pessoas ocupantes de habitações localizadas em áreas de risco e à margem de curso d’água e entorno da nascente (APP). O Novo Código Florestal, promulgado em 2012, traz no seu Art. 3º, inciso II, que a Área de Preservação Permanente é: “área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”. O Código postula ainda que: as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d'água perenes, qualquer que seja sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros. O mesmo código traz ainda, no Art. 4º, inciso I, que as margens dos rios devem ser preservadas, e a extensão dessa preservação deve ser proporcional à largura do curso d’água. Diante disso, percebemos que nesse caso concreto há um conflito entre o direito ao meio ambiente ecologicamente protegido, positivado constitucionalmente e infra constitucionalmente através do Código Florestal e o direito à moradia, também consagrado constitucionalmente, já que o pedido do MP, na ação civil, é peça remoção das pessoas de suas moradias, que se encontram em local irregular. O segundo é um acórdão, também do TJ-SP, relativo a uma lide surgida na capital do estado. O ministério público moveu uma Ação Civil Pública Ambiental contra a prefeitura de São Paulo e alguns moradores que seriam corresponsáveis, juntamente com a prefeitura, por um loteamento irregular na capital. No acórdão, o relator discorre sobre o caso, afirmando: o autor (Ministério Público) entende que a municipalidade é responsável pelo parcelamento clandestino denominado Jardim Zilda I, formulando pedido certo de reparação de danos ambientais e urbanísticos, havendo interesse e possibilidade jurídica, reconhecendo também a responsabilidade do co-réus Marcília de Araújo Guilger e outros por serem proprietários da área e porque admitiram expressamente terem contribuído para o loteamento irregular, tendo se beneficiado da venda dos lotes. Ementa: AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL - PARCELAMENTO IRREGULAR DO SOLO E LOTEAMENTO CLANDESTINO - DANOS URBANÍSTICOS E AMBIENTAIS LEGITIMIDADE PASSIVA "AD CAUSAM" DA MUNICIPALIDADE. O Município pode ser responsabilizado objetivamente, na seara ambiental, tanto se for causador direto do dano, quanto na hipótese em que a Administração Pública tem o dever de fiscalizar as atividades desenvolvidas pelos particulares, não somente quanto às atividades existentes, mas como no caso dos autos, previamente à instalação e implantação de unidades e atividades cujo funcionamento e local em que situadas causarão degradação ambiental. "In casu", a omissão das autoridades públicas municipais contribuiu para o estabelecimento de fato do loteamento irregular, permitindo os danos ambientais, urbanísticos e ao consumidor, cujas proporções são objeto da vertente ação civil pública. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL - PARCELAMENTO IRREGULAR DO SOLO E LOTEAMENTO CLANDESTINO - DANOS URBANÍSTICOS E AMBIENTAIS COMPROVADOS. A implantação de parcelamento irregular, sem os aparelhamentos públicos necessários previamente à venda dos lotes (falta de pavimentação de ruas, inexistência de rede coletora de esgoto, lançamento de dejetos "in natura" diretamente em curso d'água) causa inquestionável dano ambiental e urbanístico, que deve ser reparado na forma possível, concretamente ou mediante indenização. Nesse segundo caso, pode-se perceber que o município é responsável pelos loteamentos clandestinos, pois além de não fiscalizar, causou diretamente o dano, pois loteou irregularmente uma área, sem observância dos procedimentos necessário para realizar o loteamento (como a pavimentação de ruas, implantação de redes de esgoto, etc.), causando inquestionável dano ambiental. Constata-se aqui, no caso concreto, um exemplo do que foi mencionado no capítulo anterior, que é o desrespeito ao plano diretor da cidade, que ocorre nesse caso inclusive com a conivência e além disso a participação do poder público. CONCLUSÃO Nesse trabalho foi abordado a respeito do conflito existente entre o direito a moradia e direito ao meio ambiente ecologicamente protegido. Primeiramente Foi abordado sobre o direito a moradia no mundo, analisando como ganhou relevância e o que motivou, partindo da expansão as cidades que ocorreu na época da Revolução Industrial; com a saída das pessoas da zona rural para a urbana, cidades não estavam preparadas para recepcionar tamanha quantidade de pessoas, ocasionando moradias irregulares, em morros, barracos, lugares impróprios para a moradia. Assim como a preocupação atual, discutida em convenções internacionais, para planejar a atuação dos Estados quanto a efetivação do direito a moradia. Logo em seguida foi trabalhado a respeito do direito a moradia no Brasil, o direito a moradia é um direito fundamental de segunda dimensão, presente no art.6 da Constituição Federal. Discutido o problema do direito a moradia quanto a sua efetivação, já que não é suficiente a previsão legal, mas é necessária a realização no plano fático, através de politicas habitacionais. Posteriormente será abordado a respeito do meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como de alguns princípios que regem o direito ambiental, como o da prevenção e precaução, poluidor-pagador, desenvolvimento sustentável e função social da propriedade. Enfatizando o conflito existente entre o direito a moradia e o direito ao meio ambiente ecologicamente protegido, focando em casos concretos Tribunal de Justiça de São Paulo; Ação Civil Pública Ambiental, que facilitam o entendimento e percepção do conflito existente entre esses dois direitos fundamentais em questão, bem como a utilização da proporcionalidade para reclusão do conflito no caso concreto. REFERÊNCIAS: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental brasileiro. 2.ed. São Paulo: Saraiva,2008. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 13. ed. rev. atual . ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. JUNIOR, Neolson Saule. Direito à Cidade - Trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. Editora Max Limonad,2003. HENKES, Silviana L. Colisão de Direitos Fundamentais: meio ambiente ecologicamente equilibrado e acesso à moradia em áreas protegidas. In: BENJAMIN, Antônio Herman (Orgs.). Direitos humanos e meio ambiente. São Paulo: O Direito por um Planeta Verde, 2003. v. 1. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 15. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Malheiros, 2007. MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 5. ed. ref. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais,2007. SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Ação Civil Pública Ambiental. Apelação Cível nº 729.626.5/0-00. Marcília de Araújo Guilger e outros. Ministério Público do Estado de São Paulo. Relatora: Regina Zaquia Capistrano da Silva. São Paulo10 de abril de 2008. SÃO SEBASTIÃO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Ação Civil Pública Ambiental. Agravo de Instrumento nº 990.10.552069-3. Prefeitura Municipal de Estância. Ministério Público de Estado de São Paulo. Relator: Renato Nalini. São Paulo, 28 de abril de 2011. SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 9. ed. atual .São Paulo: Malheiros, 2011.