Introdução

As tecnologias de comunicação e informação tem apresentado um grande desenvolvimento recentemente, em especial a internet e os meios digitais. O ambiente digital tem propiciado a reprodução da produção científica e cultural sem custo, enquanto a internet tem possibilitado a disseminação da produção para, potencialmente, todos os usuários, propiciando a descentralização de sua produção e distribuição. Tais avanços tem gerado modificações no modelo de produção e na forma de consumo desses bens. Transformações vão gerar grande debate acerca dos mecanismos de Propriedade Intelectual.

A Propriedade Intelectual protege as criações intelectuais, dando aos seus titulares os direitos econômicos e a definição da forma como será feita a comercialização, circulação, utilização e produção dos bens que incorporam tais criações. Ela ainda lida com a propriedade das coisas intangíveis e

“[...]engloba os Direitos Autorais ou Cultivares (obtenções vegetais ou variedades vegetais) e a Propriedade Industrial (patentes, desenhos e modelos industriais, marcas, nomes e designações empresarias, indicações geográficas, proteção contra a concorrência desleal.)” (BIBLIOTECA NACIONAL, 2010).

O presente trabalho visa apontar as mudanças que as novas tecnologias de informação e comunicação geraram na forma de produção capitalista, na atividade científica e suas implicações na Propriedade Intelectual. O segundo passo é mostrar a situação atual do Brasil em relação a lei de Direitos Autorais nesse contexto, evidenciando as propostas de adequação da referida lei no interior do Ministério da Cultura durante os governos do ex-presidente Lula e da presidenta Dilma Rousseff.

Tecnologia, modos de produção e conhecimento

O advento de novas tecnologias, em especial de informação e comunicação, aliadas aos impulsos dados pela nova ordem econômica mundial tem alterado as bases da produção científica. Efetivando a passagem para o Modo 2 de fazer ciência, em que a geração do conhecimento é pautada pelos problemas por resolver, precisa atender as demandas da sociedade e estar aberta para a participação e avaliação desta. Alteração que acaba por pressionar por mudanças na ordem econômica. O presente capítulo busca demonstrar uma síntese dessas influências.

Castells (2005) afirma que esta “revolução tecnológica concentrada nas tecnologias da informação começou a remodelar a base material da sociedade em ritmo acelerado”. Alteração que se estende ao capitalismo conferindo-lhe maior flexibilidade de gerenciamento e descentralização das empresas de forma com que a sua organização passou a ser feita em rede. As unidades produtivas das empresas passam a ser instaladas em países periféricos com baixo custo de mão-de-obra e que ofereçam subsídios para a implantação de novos parques industriais em seus territórios, propiciando maiores retornos econômicos.

Para entender as mudanças que as alterações tecnológicas estão propiciando, Alain Touraine e Daniel Bell fazem uma distinção entre modos de desenvolvimento e modos de produção, e como se interagem. Definem os modos de produção como sendo o capitalismo e o estatismo. No primeiro, há separação entre produtores e meios de produção; a propriedade dos meios de produção é privada, o trabalho é transformado em commodity e o controle do excedente é feito pelos capitalistas. No segundo, o controle do excedente fica nas mãos do poder estatal. Com relação aos modos de desenvolvimento, fazem uma separação entre o modelo industrial e o informacional. No industrial, a fonte de produtividade é a introdução de novas fontes de sua energia e sua descentralização pelos processos produtivos. Seu desempenho é medido pelo crescimento da economia e pela maximização da produção. Já no informacional a fonte de produtividade está na ação do conhecimento sobre os próprios conhecimentos, focalizando na melhoria tecnológica e no processamento da informação. Tendo seu desempenho medido na busca por maiores níveis de complexidade do processamento da informação. Nesse modelo “há uma intima ligação entre cultura e forças produtivas e entre espírito e matéria” (CASTELLS, 2005). Conforme apontado pelo autor, tanto o estatismo quanto o capitalismo coexistiam no modelo industrial, enquanto que apenas o capitalismo avançou para o informacionalismo, sendo assim, esse modelo apresenta-se como uma nova face do capitalismo.

Diante disso, temos que a revolução tecnológica desencadeou alterações no modo de produção em sistemas capitalistas saindo de um modelo de base industrial para um que pauta no trabalho da informação. Nesse contexto, em que o capitalismo começa a atuar sobre o modo de produção científica alterando suas bases e seu modus operandi, “A ciência tradicional, situada fundamentalmente nas universidades, era criada no interior de um contexto disciplinar, com a função dominante de buscar o conhecimento ‘por si mesmo’, e caracterizada pela separação entre descoberta e aplicação” (CASTELFRANCHI, 2008). Ainda segundo o autor, essa ciência, denominada Modo 1 de produção científica, é impulsionada e guiada pelos interesses de comunidades acadêmicas, raramente é indisciplinar, sua produção é institucionalizada, o conhecimento é tido como neutro e tem sua qualidade validada pelos seus pares.

Já o Modo 2 de produção científica é organizada considerando um contexto de aplicação, ou seja, um princípio de utilidade; é um trabalho tipicamente transdisciplinar já que se interessa em necessidades por satisfazer. Sua produção é descentralizada e ocorre em diversos contextos organizativos; é reflexiva, preocupa-se com o valor e o impacto sobre questões éticas. Sua avaliação vai além da revisão pelos pares, os princípios de sua qualidade têm relação com a relevância social e que sua produção seja vista pela sociedade como transparente e participativa.

Tais aspectos propiciaram um novo tipo de pesquisador que Castelfranchi (2008) chama de Bad Boys da Ciência. Um modo de fazer ciência que se vê como produtora de um conhecimento mercadoria, não necessariamente de domínio público, podendo ser ou não aplicado pela indústria, em que o pesquisador pode ganhar dinheiro junto com o prestígio. Essa figura ganhou relevância com a disputa pelo sequenciamento do genoma humano, em que o pesquisador Vender rompeu com a equipe governamental que realizava o projeto Genoma e, por meio de parcerias privadas, constitui uma equipe, Celera, e realizou o sequenciamento antes do tempo previsto. Assim, os EUA buscaram alternativas para tornar esse modo de produção científica dominante e instituíram o Bayh-DaleAct, que abriu novas fronteiras para a comercialização da pesquisa, promovendo a interação entre empresas e organizações sem fins lucrativos, além de permitir que universidades e laboratórios públicos patenteassem e comercializassem até mesmo as descobertas financiadas com recursos públicos.

Modificação que levou os cientistas a passaram a ter que justificar suas pesquisas e os respectivos impactos para que consigam patrocínio das instituições financiadoras. Como exposto por (CASTELFRANCHI, 2008):

“Se no interior do fordismo a tecnociência garantia à pesquisa de base uma relativa autonomia, hoje a tecnociência comparte muitas das regras do jogo empresarial e é parte integrante do regime de acumulação atual: é preciso gerir o sistema ciência como uma grande empresa de capital misto, com flexibilidade, mobilidade, capitais de risco, alta competitividade e performance”.

Essa transformação do conhecimento científico em propriedade intelectual não foi uma passagem automática e a questão ainda estava em aberto. Porém os Estados Unidos e empresas multinacionais high-tech conseguiram uma grande vitória com o acordo TRIP ao fazer com que a Organização Mundial do Comércio passasse a aceitar apenas os países que se adequavam a interpretação estadunidense de propriedade intelectual, levando com que diversos países adaptassem suas leis e criassem incentivos para alterar as bases de sua produção científica.

A gestão da ciência nesses termos tem gerado implicações no interior das Universidades, pois passa a requerer delas a promoção dos objetivos acadêmicos aliado aos interesses da indústria privada. A França, já em 1982, criou por meio de legislação uma nova categoria de laboratório misto entre setor público e a iniciativa privada e colocou a critérios de desempenho a obtenção de patentes e o envolvimento da iniciativa privada. Já na América Latina o discurso também vem ganhando força, apesar de mais tardio, e está em processo atos de privatização de instituições de pesquisa e ensino. Além de ser notória a participação da iniciativa privada no sistema universitário da região.

A transformação do conhecimento em mercadoria e sua gestão no âmbito da iniciativa privada não são feitas sem contestação. Cocco, Silva e Galvão (2003) defendem a hipótese do capitalismo cognitivo e dão outra interpretação às possibilidades do modelo de sociedade informacional. Novas formas produtivas emergem no fim do século e são baseadas no trabalho imaterial. Processo tido como a passagem do modelo fordista de produção para o pós-fordista, é superar um regime de repetição e da lógica da reputação para um regime da invenção e uma lógica da inovação.

“O trabalho imaterial, e mais em geral tudo aquilo que está relacionado por um lado à circulação e por outro à inovação, encontra-se no cerne de um padrão de acumulação no qual os processos reprodutivos se tornam imediatamente produtivos, emancipando-se da ordem (fabril) do trabalho assalariado” (COCCO, SILVA e GALVÃO, 2003).

Seria a emergência de uma economia do conhecimento tornando o saber força produtiva e fator de produção fundamental em que a inovação é vista como o processo de produção de conhecimentos por conhecimentos. Nesse ínterim, as Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC) constituem uma ruptura no processo produtivo, pois dissociam a máquina e seu programa. O que quer dizer, as máquinas não passam a ter um uso em si mesmas, elas não funcionam de forma independente, dependem dos usos que se fazem delas, dos conteúdos e do conjunto complexo de saberes que veiculam. Como posto por Weissberg, é a interação entre a memória situada na máquina e a memória não situada no homem que ditam a multiplicidade de usos, a potência e o destino do desenvolvimento.

Mudanças também ocorrem na relação entre produtores e utilizadores, pois deixa de ter um sujeito ativo, produtor, e um passivo, utilizador, e emerge uma relação de coprodução. Ludvall coloca que essa coprodução não é concebida na produção de conhecimentos, mas na troca de informações. O software passa a funcionar como um “elo estratégico entre essa base operacional e as formas de cooperação social que se estabelecem entre os usuários, principalmente entre os produtores de informação e conhecimento” (COCCO, SILVA e GALVÃO, 2003).

Assim, a natureza do conhecimento é vista de forma diferente das demais mercadorias, pois “desincorporados que qualquer suporte material, os conhecimentos desequilibram as teorias de valor, eles podem ser reproduzidos, trocados, utilizados separadamente do capital e do trabalho” (RULLANI, 2000). A sua utilização é uma atividade criadora, já que evolui com o uso subjetivo que se faz dele. Aliado ao custo de reprodução ser muito baixo ou até mesmo nulo, seu valor utilidade está na troca, no processo de difusão/ socialização. Em razão disso, ele perde valor rapidamente para o detentor inicial, não sendo um problema em si devido ao custo marginal ser decrescente em razão da cumulatividade de conhecimentos.

Diante dessa construção, Cocco, Silva e Galvão (2003) fazem a distinção de dois mundos possíveis. O primeiro, da produção de mercadoria por mercadoria, no qual o conhecimento é incorporado em alguma coisa e os direitos de propriedade intelectual constituem um fator importante para a difusão e socialização dos conhecimentos. No segundo, de produção de conhecimento por conhecimento, o conhecimento não tem mais valor fora da troca, sendo os direitos de propriedade intelectual um empecilho no processo de socialização e na dinâmica de crescimento de riquezas, tornando o conhecimento uma mercadoria como as outras.

Esses dois mundos estão em disputa e diferentes interesses buscam defender cada uma das posições. Essas controvérsias perpassam toda a cadeia de produção fabril e de produção cultural, sendo a participação do governo fundamental para direcionar a ação dos atores em uma ou outra direção. A política brasileira sobre direitos autorais será explorada na sequência.

Formas de abordar os Direitos Autorais

A emergência de novas tecnologias de informação e comunicação possibilitou uma rápida mudança na forma de acesso a mercadorias que são objeto de direitos autorais, levando a emergência de um debate imediato acerca das relações mercantis que envolvem.

Nos primórdios, um autor de uma obra (artista ou escritor) cedia os direitos de distribuição e exploração comercial a um intermediário (uma grande gravadora ou editora) e esta, mediante contrato, cuidava das vendas e remuneração dos autores proporcionalmente à sua vendagem e outros fatores. As mercadorias produzidas (músicas, livros e etc) eram praticamente bens rivais e exclusivos, pois dependiam do suporte físico das mídias que carregavam cada cópia criada. A exceção de grandes redes de pirataria que pudessem investir uma quantia razoável de dinheiro para operar e correr os riscos da ilegalidade, o controle do mercado estava razoavelmente assegurado.

Com a criação e difusão de novas tecnologias informacionais como a internet, cada pessoa é potencialmente um agente de violação e deturpação das leis e do mercado, conforme sua configuração atual. Nesse novo cenário as produtoras perderam de forma ampla o controle da distribuição destes conteúdos, que é o eixo principal da exploração comercial e objeto de disputas.

Em relação às alternativas ao imbróglio causado no cenário contemporâneo do mercado algumas alternativas ou arranjos para tentar resolver ou minimizar as diferenças entre detentores de propriedade intelectual e seus consumidores vem sendo articuladas, é interessante notar que está em curso uma mudança de paradigma sobre o formato da mercadoria alvo de proteção de propriedade intelectual. Cada vez mais, produtores de conteúdos e consumidores, mas em especial os produtores, tem reconhecido em maior ou menor grau a natureza de bem não rival e não exclusivo destas obras, e em alguns casos até se beneficiando disso.

Na prática observam-se essencialmente duas formas de abordagem do problema, sendo a primeira no sentido de proteger e fazer valer o arcabouço legal dos direitos autorais de arquivos trocados pela rede e a segunda no sentido de criar serviços incentivadores do consumo legal, em geral no modelo de serviço por assinatura.

Abordagem 1 - Proteção de conteúdo via uso estrito do arcabouço legal

Nessa abordagem encontram-se propostas que se valem das bases legais para circulação do conteúdo pela rede, destacam-se as novas formas de licenciamento (softwares livres, creative commons e similares) que permitem maior flexibilidade e definição direta pelo autor da obra de como a obra pode ser distribuída e mecanismos técnicos de proteção, que criam um perfil único do hardware do comprador do arquivo, evitando reprodução em qualquer máquina, conhecidos como DRM (Digital Right Management), que atualmente possuem uso bem pontual em relação ao início dessas tecnologias, onde as indústrias fonográficas e cinematográficas tentaram utilizá-la como bala de prata, para resolver de forma definitiva a difusão de conteúdo ilegal, porém grandes movimentos de repúdio a utilização destas tecnologias emergiram, uma vez que ela travava a difusão ilegal, porém restringiam muito a liberdade de utilização de quem adquiria o conteúdo legalmente, e desta forma, progressivamente sua utilização diminuiu, se restringindo hoje a alguns cenários específicos (Ex: Alguns tipos de DVDs e Blu-Rays, que normalmente não são alvo de cópia dos usuários, pois se ele já tem uma mídia à cópia para backup não é pratica corriqueira).

Abordagem 2 - Modelos de consumo baseados em assinatura

Neste eixo destacam-se as propostas baseadas em conteúdo acessado de forma legal através de um portal que realiza mediação entre produtor e consumidor (assume o papel das gravadoras e editoras antigamente), estes portais normalmente remuneram a base de autores segundo algumas métricas (quantidades de reproduções únicas de um determinado arquivo, valor único de aquisição e direito de reprodução e/ou distribuição irrestrita pelo portal).

Alguns exemplos de portais desta natureza, por tipo de conteúdo, são: para vídeos, Netflix; para música, iTunes, Spotify, Deezer e Grooveshark; para e-books, Scribd; para softwares, lojas de aplicativos como Android, iOS e Windows Phone. Estes serviços têm crescido em adoção por parte dos usuários que identificam algumas vantagens, tais como: (1) sensibilidade de que os produtores devem ser remunerados de alguma forma; (2) facilidade de acesso a grande acervo organizado e armazenado em nuvem computacional; (3) qualidade e tratamento do conteúdo (Vídeos Full HD, Dolby 5.1, Legendas em diversas línguas) e; (4) preço acessível de assinatura, uma vez que o conteúdo é compartilhado entre os usuários do portal e o custo total por obra rateado, pois o preço do produto original normalmente é principal motivo apontado por usuários para downloads ilegais.

Assim, existem iniciativas que ocorrem tanto por vias legislativas quanto de forma prática e real para distribuição de conteúdos, que tentam equalizar a produção e consumos destas informações. A revolução das tecnologias de informação e comunicação levaram todos os atores deste processo a repensar as bases de um mercado tido como mais ou menos em conformação e seus respectivos papeis nesta cadeia de produção e consumo, bem como propor novas alternativas.

O problema ainda se encontra longe de se resolver de forma feliz e satisfatória para todos; vale lembrar que mesmo antes da difusão da internet e pirataria em massa, os artistas, do meio musical em especial, se queixavam que os valores repassados pelas gravadoras por unidade vendida era muito baixo, e os clientes que os CDs eram muito caros. Neste cenário pode ser que havia menos problemas jurídicos, mas certamente era indício de problema de outra natureza. A internet e o poder de cada usuário consumir, de forma legal ou não, conteúdos e obras até então inacessíveis possibilitam novas experiências e possibilidades, além de ampla discussão e proposição de alternativas que atendam um mundo mais dinâmico e com poder descentralizado entre os diversos atores.

Este trabalho se ocupará prioritariamente da primeira abordagem; nesse sentido, o próximo tópico fará um relato da discussão sobre a atualização da legislação dos Direitos Autorais por parte do governo brasileiro, especialmente, nas gestões do ex-presidente Lula e da presidenta Dilma Rousseff.

Direitos Autorais no Brasil

A Lei 9610/98 trata dos direitos autorais no Brasil. Época em que o acesso à internet no Brasil iniciava sua expansão, tendo sido iniciado em 1995 operado pela Embratel. Segundo Paschoal (2013) o ano de 1996 foi o “boom” da internet no país com a expansão do número de usuários e provedores, além do lançamento de uma música do cantor Gilberto Gil pela internet, seguida de conversa com os internautas. No ano de 1998, o país contava com 1,8 milhões de usuários na rede. Apesar do número já expressivo de usuários no ano de publicação da lei, a questão dos direitos autorais não entrava para a discussão por se tratar de uma rede ainda rudimentar.

No ano 2000 é que o debate sobre pirataria na rede começou a ganhar evidência com a origem do Napster – programa de compartilhamento de arquivos em rede P2P. Industrias fonográficas iniciaram um processo contra o programa alegando a violação da lei de Copyright por meio da disseminação de arquivos protegidos. O serviço foi fechado em 2001, contudo lutou na justiça pela sua legalidade e passou a atuar no mercado como serviço de streaming via assinatura de seus usuários, chegando ao Brasil nesse novo formato em 2013. Ano em que o país registrou 105,1 milhões de pessoas com a acesso a internet (IBOPE MEDIA, 2013).

A referida lei de direito autorais nasce em um contexto de emergência da internet, o que torna o seu impacto na legislação imprevisível. Com a evolução da rede e o crescimento de acessos no país é que o debate sobre os direitos autorais ganha força no país. Em 2003, assume o Ministério da Cultura o cantor Gilberto Gil que, em 2004, durante uma aula magna na Universidade de São Paulo declarou-se como sendo ministro, músico, mas, sobretudo, um hacker em espírito e vontade. Sobre o advento das novas tecnologias e sua relação com a cultura disse:

“O que está implicado aqui é que o uso de tecnologia digital muda os comportamentos. O uso pleno da Internet e do software livre cria fantásticas possibilidades de democratizar acessos à informação e ao conhecimento, maximizar os potenciais dos bens e serviços culturais, amplificar os repertórios que formam o nosso repertório comum e, portanto, a nossa cultura, e potencializar também a produção cultural, criando inclusive novas formas de arte” (GIL, 2004).

O ministério então tem como gestor um artista e entusiasta da tecnologia digital, propiciando um debate sobre a atualização dos direitos autorais sob uma perspectiva de um ator que está nas duas pontas do embate da legislação. Sobre a questão dos direitos autorais, Gilberto Gil se manifestou durante a abertura do Fórum Nacional de Direito Autoral, em 2008, expressando o seguinte:

“Não podemos nos esquecer, afinal, que os direitos autorais não lidam exclusivamente com a proteção do autor, mas também com o interesse público, particularmente no que diz respeito ao direito de acesso à cultura [...] de nossa parte, queremos reforçar os direitos autorais – e não subtraí-los ou extingui-los. Não há qualquer possibilidade, por menor que seja, de retrocesso nos patamares de direitos exclusivos dos autores e criadores” (GIL, 2008).

Com a posse de Juca Ferreira, em agosto de 2008, a linha de atuação do Ministério não se alterou. O posicionamento do novo ministro pode ser visto durante seu discurso no Fórum da Cultura Digital Brasileira realizado em 2009.

“Inevitavelmente o direito autoral terá que se relacionar com o direito e a possibilidade que essa tecnologia gerou. São direitos que se relacionam, e nenhum é capaz de se impor se não considerar que a realização de todos esses direitos se modificou muito com a existência dessa tecnologia. Essa tecnologia obrigou a uma reflexão completamente nova a respeito desses direitos” (FERREIRA, 2009).

A intenção da declaração do ministro Gilberto Gil em se declarar hacker pode ser entendida em Castells (2011), que apresenta a ética hacker como aquela que envolve a tradição acadêmica do exercício da ciência e sua reputação pela excelência, o exame dos pares e a abertura dos achados das pesquisas. Para eles, o compartilhamento da informação é tão importante quanto a informação em si. Enquanto a posição desse mesmo ministro e de seu sucessor, Juca Ferreira, quanto as relações das novas tecnologias e a relação com a sociedade se alinha com a construção de (CASTELLS, 2005): “Na verdade, o dilema do determinismo tecnológico é, provavelmente, um problema infundado, dado que a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas”. Por isso, buscaram um equilíbrio entre as possibilidades que as tecnologias abriam e os usos que se faziam delas por parte da população.

Os posicionamentos dos ministros não ficavam apenas na retórica, foram marcados nas ações dentro do ministério. O programa que demostra a relação deles com os ativistas da inclusão digital foi o programa Cultura Viva. Um programa para a promoção e proteção da diversidade cultural, de acesso à cultura e inclusão digital que era gerido por meio de Pontos de Cultura espalhados por todo o país. Não havia no ministério uma diretoria que determinava as ações dos pontos de cultura. Estes se autorregulavam e se comunicavam por meio de redes ponto-a-ponto, refletindo a orientação dos ministros em explorar as possibilidades proporcionadas pelas novas tecnologias.

Essa aposta feita durante esse período é pertinente ao que foi exposto por (CASTELLS, 2005):

 “A Internet é uma arquitetura de rede que, como queriam seus inventores, não pode ser controlada a partir de nenhum centro e é composta por milhares de redes de computadores autônomos com inúmeras maneiras de conexão, contornando barreiras eletrônicas”.

Interpretação que o grupo do Compartilhamento Legal reforça, pois,

“hoje, muitos recursos são gastos no combate à chamada ‘pirataria digital’ [...] estruturas governamentais estão todos voltados para impedir ou dificultar aquilo que dezenas de milhões de brasileiros fazem todos as semanas. Isso gera a desmoralização da lei, que está em flagrante desacordo com a prática social e tentativas de culpabilizar os usuários por meio de campanhas publicitárias antipirataria” (COMPARTILHAMENTO LEGAL, 2010).

Para aumentar a troca de informações com a população e construir uma nova proposta conjunta para o setor, foi lançado o Fórum Nacional de Direito Autoral que realizou os seminários “Os direitos autorais no século XXI”, em 2007, e “A defesa do direito autoral: gestão coletiva e papel do Estado”, em 2008. Além disso “ao longo do fórum ocorreram mais de 80 reuniões setoriais, além de seminários em três regiões, sete nacionais e um internacional” (KLANG, 2011). No final de 2009, o ministério lançou o programa “Cultura Digital, um novo jeito de fazer política pública” que seguiu a premissa do Fórum. Após realizar séries de debates em diferentes contextos, o MinC elaborou um anteprojeto de lei e, por meio deste, realizou uma consulta pública para modernizar a lei de direitos autorais no Brasil.

Essas ações condizem com o que está expresso no Plano Nacional de Cultura, que determina ser responsabilidade do Estado adequar a legislação dos direitos autorais em parceria com os segmentos interessados, através de processos participativos e equilibrando o respeito a esses direitos com a ampliação do acesso à cultura. Conforme análise feita por Klang (2011)

“a proposta de reformulação da LDA e a redação final do APL sob a ótica da cultura digital pode-se perceber que poucas foram as mudanças para adaptar o ordenamento jurídico às novas tecnologias. Não há avanços em prol do compartilhamento cultural, pois a lei continua a coibir a troca de arquivos em redes P2P e a prática do REMIX”

A ausência de avanços nas propostas foi fruto da composição de forças que atuaram dentro da política, e não resultado da postura autoritária por parte do Ministério da Cultura em conduzir as mudanças. Tanto que a proposta levada e aprovada na consulta pública feita pelo MinC apresentava avanços na legislação no aspecto de compartilhamento cultural, porém, ao ser submetida ao Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (GIPI), – composto pelos Ministérios do Desenvolvimento, Industria e Comércio Exterior, das Relações Exteriores, da Fazenda, da Justiça, da Ciência e Tecnologia, da Cultura, da Saúde, do Meio Ambiente, da Agricultura, pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e pela Casa Civil – é que as propostas foram revertidas e se manteve a interpretação pré-internet. Resultado esse que não tira o mérito do MinC em atuar na forma que Foucault (1993) definiu como reino da governamentalidade, na qual o Estado passa a gerir fluxos e respeitar a diversidade dos atores envolvidos na condução de suas ações e formulações de suas políticas.

Ao contrário do que aconteceu durante a gestão da ministra Ana de Hollanda. Savazoni (2011) afirmou que a retirada do selo de Creative Commons do site do ministério “resultou no estremecimento da relação do Ministério da Cultura com as forças defensoras do compartilhamento do conhecimento e da colaboração cultural”. Ao que o MinC (2011) respondeu alegando que não há necessidade do ministério dar destaque a uma iniciativa específica. Klang cita em sua obra a visão de Lemos que acredita que “o Minc acabou acolhendo as demandas do ECAD, inclusive incorporando a sua linguagem”. Outra alteração foi a mudança na participação na consulta, sendo feita por meio de formulário em formato Word e tendo a necessidade de justificar juridicamente a contribuição, limitando a participação a grupos de especialistas.

Artista ou funcionário?

Vianna (2011) critica declaração da ministra feita à revista Carta Capital, na qual, defende o direito do autor de receber pela sua criação por ser quase uma questão trabalhista. Para ele,

“direito autoral nada tem em comum com o direito trabalhista e afirma que se assemelhando-se muito mais ao direito tributário, já que o que se pretende garantir não é uma remuneração por trabalho (como um espetáculo, por exemplo), mas sim, uma renda pela ‘propriedade’ de uma obra”.

Usa-se o argumento de que sem o estímulo dos direitos autorais os artistas não mais produziriam novas obras, porém Vianna aponta a falácia desse discurso ao apontar que no caso dos músicos apenas 3% da receita da venda são revertidos a eles, ficando 97% para cobrir os custos de produção e distribuição e para os lucros das gravadoras. Aponta que um cantor em carreira solo precisaria vender cerca de 540 discos mensais ao preço de R$33,00 para receber um salário mínimo. Uma realidade bem distante para músicos em início de carreira e que se apresenta como um entrave à verdadeira fonte de renda dos músicos, os shows, isso porque tornar-se conhecido é fator essencial para realizar mais apresentações e aumentar o valor do cachê da apresentação. Nesse sentido, a disponibilização da obra é economicamente mais vantajosa do que a venda de discos.

Os direitos autorais vão ainda além; têm a cobrança pela execução de canções em ambientes públicos nas mais variadas situações. Função esta exercida por uma sociedade civil de direito privado, o ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição). Vianna aponta que a distribuição dos recursos que este escritório arrecada favorece músicos consagrados e, em especial, servindo como aposentadoria para músicos que pararam de fazer apresentações.

Nesse sentido é que uma proposta chamada Compartilhamento Legal surge para efetivar o discurso de estimular a produção cultural. Consiste em uma licença pública compulsória para o compartilhamento de arquivos digitais de obras protegidas, exclusivamente para o uso pessoal, sem qualquer benefício econômico. O valor será cobrado não de quem baixa, mas dos provedores de acesso sobre todas as conexões de banda larga, considerando o número de conexões e a velocidade delas. Propõe que 50% desses recursos sejam destinados aos autores, pessoas físicas, e o restante caberia aos investidores, podendo criar regras adicionais para melhor se adequar à realidade de cada indústria.

Esse modelo propiciaria a arrecadação por meio de números absolutos de acesso e não o modelo de amostragem feita pelo ECAD. Favorecendo a forma da cauda longa, ou seja, captaria em seu cálculo obras pouco baixadas aumentando o número de artistas beneficiados. O grupo acrescenta a possibilidade de destinação de 20% da arrecadação para um fundo de fomento à diversidade cultural. Estimulando o surgimento de novos artistas e criadores, aumentando o número de obras oferecidas ao público.

O retrocesso da proposta de lei dentro do GIPI e a postura da gestão de Ana de Hollanda na frente do MinC podem ser resultado não de uma preocupação de fazer frente às regulamentações da Organização Mundial do Comércio no que se refere à propriedade intelectual e aos direitos autorais, mas de favorecer grupos econômicos nacionais na indústria cultural. Pois as medidas propostas tanto pela proposta formulada durante as gestões de Gil e Ferreira quanto do grupo Compartilhamento Legal, não vão contra a Lei de Direitos Autorais e a propriedade da obra, são mais de conciliação da lei com a realidade aberta pelas novas tecnologias e a formação de um mecanismo para propiciar a formação de novos artistas e a difusão da cultura.

Nesse sentido, Castelfranchi (2008) coloca que “apropriar, monopolizar, vender algo que pode ser reproduzido e transferido por meio da simples comunicação implica sutilezas legais, malabarismos discursivos e engenhocas materiais complicadas”. Opção claramente adotada pelo governo da presidenta Dilma e da ministra Ana de Hollanda devido à argumentada falha para manter a posição conservadora que rege a lei de Direitos Autorais do país.

Conclusão

Com o surgimento da Internet, as relações entre os indivíduos sofreram algumas alterações de forte importância para o andamento da história da humanidade. Ações inimagináveis até então, como fazer amizade com alguém de outra cidade sem precisar vê-la, conversar gratuitamente com um parente que mora em outro país, ou pesquisar a vida de um ex-presidente sem precisar visitar meia dúzia de bibliotecas, foram se tornando cada vez mais usuais. Entretanto, uma rede com tamanha infinidade de informações possui certas dificuldades em ser regulada.

Assim como o caso do domínio Megaupload, que foi tirado do ar em 2012 por violação de direitos autorais, inspirou uma polêmica mundial sobre o direito de acesso à cultura gratuitamente por todos os usuários da Internet; é sabido que, de um lado da discussão, existem as grandes gravadoras, editoras, empresários de indústrias fonográficas e cinematográficas etc, e, de outro lado, os usuários da Internet, ávidos por livre acesso a conhecimento cultural e artístico (filmes, músicas, literatura, etc).

Claramente, o lucro é o objetivo principal das grandes empresas voltadas à arte/cultura, e é claro, também, que a pirataria é um desafio cada vez mais difícil de ser enfrentado por essas empresas. Podemos ver que, muitas vezes, nem mesmo o artista possui autonomia sobre sua própria produção artística. Boa parte das produções artísticas em foco no mercado cultural são produções megalomaníacas, superfaturadas e com raras características de “arte”, mas fortemente caracterizadas como produtos de mercado (artistas pop afogados em autotunes, literatura infanto-juvenil sobrecarregada de sexualidade e filmes com roteiro mal-escrito, mas efeitos especiais caríssimos).

O importante a se refletir é: Será que uma mudança no foco capitalista da produção artística poderia trazer à tona grandes gênios da música, da literatura e do cinema, esquecidos ou ignorados pelo mercado? Será que a arte produzida por um artista é de sua propriedade pura e exclusiva ou, assim como o conhecimento científico, deve ser amplamente publicizada e disponibilizada a todo e qualquer indivíduo?

 

Referências Bibliográficas

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