234-A  -DIARIO DO ALÉM

de Romano Dazzi

 

Foi uma coisa estranha.

Não, não: foi uma coisa estúpida; nunca pensei que pudesse acontecer.

Estava na calçada da Avenida Faria Lima, voltando do almoço

Acabava de levantar os olhos para o grande relógio digital na esquina:

Quinta feira,  3 de julho de 2003, 14:35. 

Nesse dia eu completava 40 anos. Nenhum stress anormal, salvo os problemas comuns, que todos enfrentamos. Saúde boa, alimentação regular, tudo correndo bem.

Não era para acontecer. Não poderia acontecer. Foi uma traição. 

Faleci de repente, como o meu avô, sem nenhum aviso. Sem que se acendesse nenhuma daquelas luzinhas que nos fazem correr ao médico, em pânico. 

Uma dor forte no peito, a vista  escurecendo, uma fraqueza, as coisas se afastando.

 

Eu e Anita, minha esposa por 16 anos, continuávamos apaixonados.

Geraldo, de 14 anos e Marisol, de 12, completavam a família.

Éramos felizes, tudo corria bem – bem demais, agora que percebo.

Minha esposa dava aulas de desenho, as crianças cursavam o ginásio.

Eu tinha um bom emprego, acabávamos de mudar para uma casa novinha em folha.

Vou poupar-lhes os mórbidos detalhes da autopsia, do velório, do enterro. 

Em casa ficaram aturdidos, arrasados;. não havia palavras. Só lágrimas.

Naquelas primeiras intermináveis horas, eu estava presente, mais perto que nunca mas não podia fazer mais nada. Fora retirado do palco, riscado do mapa.

Tive que abandoná-los, assustado com o que poderia acontecer a eles:

Minha esposa, indefesa, despreparada; as crianças, imaturas, sem entender direito a gravidade do que estava acontecendo.

Por sorte o Luiz, meu padrinho de casamento, advogado, ajudaria.

Mas eu nunca poderia ter previsto esse desastre total. Não tinha deixado dinheiro, nem uma apólice de seguro, ou um pecúlio, para aquela hora de necessidade. 

O mundo cairia com todo o seu peso sobre a minha família.

E não me era permitido defendê-la, protegê-la.

E quem cuidaria do resto de minhas atividades ? Das importantes transações de que só eu cuidava?  Quem conseguiria puxar todos os fios, sem provocar grandes perdas?  

Além disso,  ainda não tinha assinado o contrato de compra da casa.

Outro grande problema. Que desastre! Que desastre! Que hora imprópria para morrer! 

Tive a impressão que eu era um ramo de uma grande árvore, arrancado por uma ventania e arrastado pelo chão.  Tinha perdido os sentidos: pior: tinha perdido a vida.

 

“Perder a vida” seria uma expressão ridícula, se não fosse trágica.

Como se pode “perder” a vida?

Podemos deixá-la cair do bolso ou da carteira,  esquecê-la no táxi, ou no balcão do bar? 

E depois, se podemos perdê-la, deveríamos ser capazes de reencontrá-la!

É só procurá-la; mas como ela é?  Como é feita, a vida?

É uma folha de papel? Uma bolinha de gude? Um estojo de celular?

O que tem numa vida não caberia de jeito nenhum, num estojo de celular.

Precisaria pelo menos  de  uma caixa de sapatos; e olha lá.

Não há tamanho mais inconveniente.

Imagine doze pessoas num elevador, cada uma carregando uma caixa de sapatos. Não caberiam todas. Pelo menos duas deveriam sair e esperar pelo elevador seguinte.

O mais provável é que ela seja um chip.... é isso mesmo: deve ser um chip descartável, que vai somando dados,  numa grande sala de brinquedos; um anjinho travesso, num momento qualquer, dá uma martelada – e você já era! .

Tão simples assim? Tão inútil assim?

Não: com certeza, não.

Não somos apenas máquinas, complicadas e sensíveis. Temos alma. Tive a prova logo a seguir.   Eu, pelo menos,  tenho alma; você,  não sei.....  

........................

Uma névoa intensa, escura,  impenetrável, me envolveu. Não havia luz, não havia sons. Tudo estava parado, estático. Até o ar parecia imóvel, suspenso.

Só o silêncio das estrelas se compara a isto. Imagino, porque nunca estive lá. 

Subitamente uma luz difusa acendeu-se ao meu redor.

Comecei de novo a ouvir ruídos, conversas; a neblina foi se desfazendo.

Reencontrei-me naquela mesma calçada em que acabava de “perder” a vida.

Devo ter ficado assim por uns cinco minutos - pensei....

Pessoas apressadas passavam por mim.

“Passavam por mim” não é mera expressão; passavam literalmente, sem me ver.

Vinham e atravessavam o meu corpo....corpo? Que corpo? 

Como estamos amarrados à força de expressão!

Eu não tinha mais corpo. Devia ser minha alma, que estava aí, parada, percebendo tudo, mas sem entender o que estava ocorrendo.

Olhei o grande relógio digital da esquina: Quinta feira, 3 de julho de 2008, 14:35

Eu tinha ficado ausente exatamente por cinco anos. Cinco longos anos! 

O pânico me assaltou.  Era uma situação surreal, absurda; não conseguia raciocinar.

Morto por cinco anos. E agora, novamente consciente, mas continuando ausente.

O que poderia, o que deveria fazer? 

Tentei me encolher, me conformar, aceitar o que estava acontecendo.

Cheguei a pensar que fosse  um sonho – seria um pesadelo, no caso; mas logo entendi que na verdade eu estava mesmo morto. Para sempre.

Assim como as pessoas me atravessavam sem me perceber, eu também podia passar por uma porta sem abri-la, ou uma parede, sem derrubá-la.

Percebi que não pisava no chão. Levitava, apenas.  

As minhas preocupações de cinco minutos antes (eram cinco anos, mas eu não queria, não podia acreditar) voltaram com força total.

Primeiro, minha esposa e meus filhos: revê-los, encontrar um meio de me comunicar com eles, estabelecer um contato, um elo.

O tempo de pensar (“com que cérebro?”)  e  estava à porta de minha nova casa. 

Notei que a porta já precisava de uma pintura; e o portãozinho também.

Como não vi isso, quando a comprei, na semana passada? Ah, mas vão me ouvir!

Quero uma pintura nova, antes de assinar o contrato!

Mas eu ia de surpresa em surpresa; e ainda estava por vir muita coisa.

Saiu de casa, com passo elástico, apressado,  um garotão de uns vinte anos, que ..... mas espera aí! É o Geraldo! Não, não pode ser! Mas... se parece tanto com ele! Sim, sim, é ele mesmo, é o Geraldo!

Gritei, mas nenhum som se ouviu; corri para ele, estendi os braços, as mãos abertas, o tronco inclinado para frente, levando lhe todo o amor, a saudade, o desejo de tê-lo em meus braços, como quando era menino..... ele passou por mim e seguiu em frente, sem me ver, sem perceber que eu estava ai, junto dele, louco para lhe dar e receber dele um carinho, um beijo, um afago.  Nada.

Entrou num carro – pois é, agora já tinha idade para dirigir – e se foi.

Fiquei  acabrunhado, abandonado, totalmente sozinho.

Entrei em casa pela parede da cozinha. Tudo é possível, a uma alma.

Uma nova experiência igual me esperava, agora com a Marisol.

Uma moça bonita, não mais aquela tampinha, sardenta e cheinha, que corria de maneira tão desajeitada, que chegava em último lugar, em todas as provas. 

Meus braços estendidos passaram através dela e se encontraram abraçando o vazio, enquanto ela deslizava pela sala, cantarolando. Que linda garota, eu tinha!

Fui encontrar Anita no meu escritório, uma sala diferente, redecorada. 

Minhas fotos, meus diplomas, as taças dos torneios de voleibol, haviam sumido.  Eu era, definitivamente, o passado.

Pousei meu olhar sobre Anita: um pouquinho mais velha, mais madura; não tinha mais no olhar  aquela graça jovem que me fazia vibrar.

Mas os olhos não eram tristes, como eu imaginava.

Era ainda uma bonita senhora – afinal, cinco anos não são uma vida : ou serão? 

Um pouco mais austera, agora; carregava sozinha um peso que caberia a nós dois.

Estava despachando como uma verdadeira executiva.

Entendi logo. Estava me substituindo. Havia tomado meu lugar e pelo visto se desempenhava muito bem.

Acompanhei, no monitor, as contas do balanço doméstico.

Nunca tinham andado tão sadias e equilibradas. Bravos, Anita!

Deu-me vontade de dar-lhe um beijo, em lembrança dos velhos tempos, mas sabia que não seria possível.

Minha mão não conseguia sentir suas faces e ela não me percebia.

Foi aí que apareceu o Luis; o danado tinha uma chave da porta de casa.

Chegou, abraçou Anita, beijou-a.... ah, o que é isso, que comportamento de sem-vergonha é esse? Tira as mãos da minha mulher, seu safado, malandrão!.....

Mas não havia percebido o pior.

Ela estava dando corda, estava aceitando a carícia dele no rosto, o afago no pescoço, enfim, estava namorando escandalosamente, às escâncaras com ele.

Vergonha! Sua filha está andando pela casa! A qualquer momento ela pode entrar e pega-los aos abraços, em flagrante!....

E eu ali, sem poder falar nada, sem poder fazer nada!...

Se pudesse, tomaria coragem com um uísque e agrediria os dois, soltando os cachorros, de tanta raiva que sentia.

Mas eu era apenas uma alma – um espírito, dizem alguns – e estava cometendo um erro gravíssimo: não estava conseguindo abandonar os interesses, as vontades e o  envolvimento de quando...estava vivo.

Mas aquela era a minha família, minha casa, minha esposa, meus filhos!

Não. Nada mais era meu.

Desde o momento em que meu coração parara, lá na Faria Lima, cinco anos antes – agora estava começando a acreditar -  eu tinha perdido tudo, tinha sido obrigado a abandonar e deixar para trás o que era meu,  o que era EU! 

Dá para encarar uma situação destas?

Um estalar de dedos, e você não existe  mais, não é mais nada.

Todas as coisas que você fez, que construiu, que realizou, todo o seu esforço, sua luta, seu empenho, e seus planos, seus projetos, suas esperanças, ficam para trás.

Não se trata – ainda – de um julgamento. É apenas uma perda; uma página virada.

 

Mas existe uma parte boa, em tudo o que nos acontece:  depois do choque da nossa partida, as coisas se ajustam, se acertam; os outros, as pessoas queridas, continuam vivas,  continuam respirando, refazem os seus caminhos.

Alguém sempre acaba ocupando o nosso lugar.

Fiquei com pena de ter pensado mal do Luis e da Anita.

Entendi que haviam recolhido os cacos que eu deixara para trás e estavam seguindo em frente, com carinho, com determinação, com vontade; e porque não? com amor.

Nada mais me apressava.

Fiquei lá, numa grande paz, finalmente, depois de passar por tanto stress, que, se não estivesse morto, teria morrido....

Fiquei olhando o jardinzinho bem cuidado, no fundo da sala; as orquídeas brotando, as azaléias em pencas, os espinhos da aloé, os brotos do jasmim manga, a roseira mirrada, que nunca conseguiu dar flores bonitas....

Tudo começou a se encaixar, a fazer sentido.

Tudo faz parte de um plano. E eu sou simplesmente uma parte do todo.

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De repente, um despertador insistente me tirou da meditação.

Anita, alegre, esfuziante, oferecendo-me uma xícara de café quentinho, gritava pela casa:

- “Levantem-se, seus preguiçosos! Hoje é dia de trabalho, de aula, de ginástica, de assinar o contrato da casa! E dêem os parabéns ao papai, que faz quarenta anos hoje!

Olhei o relógio-calendário: quinta feira, 3 de julho de 2003, 07:35

 

Tudo recomeça, tudo está igual, nada mudou sob o sol.  Graças ao bom  Deus!

 

Mas para mim, juro, nada será igual; tive o privilégio de dar uma espiada no futuro e tenho um monte de coisas para mudar no presente. Vou ficar ocupadíssimo, o dia inteiro, o mês inteiro. Bom dia, bom dia a todos! Feliz vida nova!