Diálogos Sobre Felicidade, Consumo e Mídia

Ednéia Angélica Gomes*

RESUMO

 

Neste artigo, defendo a necessidade de uma reflexão filosófica mais consistente em relação ao problema da felicidade, uma vez que, a meu ver, a falta dessa discussão permite que os setores econômicos e a publicidade imponham uma visão de mundo em que o consumo se transforma na principal, senão única, possibilidade de realização humana. Assim, começo por desnaturalizar a associação entre felicidade e progresso material, tecendo algumas considerações históricas sobre a evolução dos significados construídos, na sociedade ocidental, para o que seria uma vida feliz.  Em seguida, busco desvelar alguns mecanismos de manipulação da mídia, mostrando a ambivalência de seus discursos. Termino apontando algumas tentativas contemporâneas de tratamento filosófico para a questão da felicidade.

PALAVRAS CHAVE: Felicidade, mídia, consumo

Introdução

 

"A felicidade é o motivo de todas as ações de todos os homens, inclusive dos

 que vão se enforcar" ( Blaise Pascal, Filósofo Francês, no século XVII.)

 

 

Boa parte das pessoas consegue perceber o potencial destrutivo de uma estrutura social que se assenta na ideia de produção e consumo crescentes, tendo em vista os prejuízos ao meio ambiente e a impossibilidade de sua sustentação no tempo. Essa crítica, entretanto, é paralisada pela associação sistemática dessa estrutura (mais produção e mais consumo) aos ideais de felicidade. De fato, se há algo que o sistema capitalista consegue fazer bem é criar uma representação de felicidade em que seus produtos sejam vistos como indispensáveis, tendo na mídia de massa um dos seus principais aliados.

Geraldo Garcez Condé diz que as representações sociais sobre felicidade têm na mídia “uma das suas instâncias mais significativas de elaboração” (CONDÉ, 2004). Segundo esse autor, a comunicação de massa teria desenvolvido um caráter “conselheiro”, constituindo um repertório de orientações, conselhos, fórmulas que objetivariam superar situações de mal-estar, apresentadas como um “problema”.

Um bom exemplo desse processo é apresentado pelo autor ao analisar uma reportagem da revista Claudia (Claudia, pp. 106-110, julho 2001): “Cintura sexy”. Nessa reportagem, o corpo feminino livre de gorduras é apresentado como algo indispensável à felicidade e, portanto uma preocupação que deve fazer parte do cotidiano de todas as mulheres. Depois de apresentado o problema seguem-se as possíveis soluções: academias de ginástica, intervenção cirúrgica (lipoaspiração) ou a injeção de medicamentos e cosméticos que dissolvem as gorduras. Assim, após prescrever a presença de gorduras abdominais como um “mal” a ser combatido, a revista apresenta as possibilidades de “cura” disponíveis no mercado.

Esse discurso midiático produz a frustração e a angústia de quem se vê, de repente, obrigado a pensar a sua barriga como um problema, além disso, reduz a liberdade, ao restringir a ação das pessoas (diante da constatação de que estão barrigudas) a três alternativas: ginástica, lipoaspiração ou cosméticas. O processo, no entanto, é ilustrado com depoimentos de pessoas que fizeram uso dos “produtos” e que tiveram bons resultados (que estavam infelizes e agora se encontram felizes) e completado com fotos de “celebridades”, recriando, dessa forma, o percurso que vai da insatisfação à satisfação, fortalecendo a ideia de que a felicidade é uma necessidade imperiosa e que pode ser alcançada com esforços pessoais.

Assim, a mídia é responsável, não apenas por apresentar soluções para eventuais problemas que atingem as pessoas, mas, principalmente, por apontar os motivos que impedem as pessoas de se tornarem felizes e mostrar que a felicidade (imperativamente necessária) está disponível no mercado.

Neste artigo, defendo a necessidade de uma reflexão filosófica mais consistente em relação ao problema da felicidade, uma vez que, a meu ver, a falta dessa discussão permite que os setores econômicos e a publicidade imponham uma visão de mundo em que o consumo se transforma na principal, senão única, possibilidade de realização humana. Assim, começo por desnaturalizar a associação entre felicidade e progresso material, tecendo algumas considerações históricas sobre a evolução dos significados construídos, na sociedade ocidental, para o que seria uma vida feliz.  Em seguida, busco desvelar alguns mecanismos de manipulação da mídia, mostrando a ambivalência de seus discursos. Termino apontando algumas tentativas contemporâneas de tratamento filosófico para a questão da felicidade.  

A felicidade através dos tempos

Nos tempos atuais, a obrigação de ser feliz e a associação da felicidade ao consumo estão de tal forma impregnadas no cotidiano das pessoas que a vida parece impossível fora dessas determinações. Contudo, nem sempre foi assim. Segundo o historiador Darrin McMahon, houve um tempo em que a felicidade era vista como uma concessão dos deuses e o homem nada podia fazer para alcançá-la.

A maioria era obrigada a aceitar o que vinha, dificilmente ousando pensar que poderia alterar suas circunstâncias ou influenciar significativamente os muitos acontecimentos de uma vida. Era mais fácil e muito mais prudente assumir o pior e esperar pelo melhor, deixando a felicidade para os deuses. (McMahon, 2006)

A total subordinação da vida humana aos deuses é bastante ilustrada nas tragédias gregas. Em Édipo Rei, de Sófocles, o personagem humano luta contra a realização de um destino inexorável, mas todas as suas ações acabam convergindo para a realização da determinação dos deuses. Nessa tragédia, o coro exclama: “Ah, gerações de homens, como eu vejo que a sua vida é tão próxima ao nada! Que homem, que homem ganha mais felicidade e a desfruta, e depois ela desaparece? Com a sua sorte, infeliz Édipo, eu não chamaria nenhum mortal de abençoado.” Homero, o grande poeta épico da Grécia antiga, também descreve o mundo do seu tempo como um lugar perigoso e imprevisível porque governado por deuses caprichosos, segundo uma lógica incompreensível para os humanos.

Apesar disso, a cultura grega arcaica admitia uma parcela de responsabilidade humana no tocante à felicidade, uma vez que a reação do homem diante da fortuna concedida pelos deuses poderia ser punida, quando inadequada. Se a prosperidade fazia com que os homens se tornassem avaros e insolentes, levando-os ao desprezo da moral, a consequência era a ruína. A história de Tântalo é um exemplo disso: esse mortal foi admitido no banquete dos deuses com o direito de comer da ambrosia e beber o néctar, mas Tântalo abusou dessa hospitalidade e roubou a comida do Olimpo para dá-la aos mortais. Essa ousadia foi punida com um desejo insaciável e eterno. Tântalo foi condenado a sentir, eternamente, fome e sede, tendo alimento e água à vista, mas sem poder se servir.

Assim, um certo grau de responsabilidade humana na manutenção da felicidade já estava presente no pensamento grego, desde os tempos mais remotos. Ao receber os presentes dos deuses, os homens deveriam se mostrar contentes e satisfeitos, pois a moderação e o autocontrole seriam indispensáveis para a manutenção das dádivas. Moderação e autocontrole seriam, então, demonstrações de sabedoria e virtude.

Grécia Clássica

A ideia de virtude como um componente indispensável à felicidade é amplamente desenvolvida a partir da filosofia socrática. Para Sócrates e seu seguidor Platão, felicidade abarcava muito mais do que a experiência do simples contentamento: “incluía a ideia de satisfação racional. [...] Isso significava uma vida de ação ética, manifesta em um caráter virtuoso e bem formado”. (KINGWELL, 2006) Para alguns comentadores, Sócrates teria estabelecido uma relação de identidade entre felicidade e virtude. Dessa forma, as condições materiais da existência não interfeririam na felicidade, se o homem fosse realmente virtuoso. Essa virtude seria alcançada através da prática filosófica que teria como objetivo livrar o homem das falsas opiniões e guiar acertadamente os seus passos. 

Aristóteles “herda” a ideia de virtude como atributo indispensável para a conquista da felicidade, de seus antecessores, entretanto, não considera a virtude como felicidade em si, mas como meio de obtê-la. O filósofo de Estagira não exclui a satisfação das necessidades e das aspirações mundanas do seu conceito de felicidade, apenas afirma que essas satisfações não bastariam para que as pessoas fossem felizes. Para que a felicidade fosse possível, Aristóteles acreditava ser necessário o cultivo da sabedoria, definida como a capacidade de encontrar a justa medida entre as qualidades do caráter. Dessa forma, ele condena os extremos e defende o meio-termo entre vícios e virtudes, para o alcance do equilíbrio imprescindível à felicidade.

A filosofia clássica apresenta ainda duas importantes concepções de felicidade: o estoicismo e o hedonismo. Para os estoicos, a natureza do universo é racional e o homem, para estar em equilíbrio, precisa agir de acordo com essa racionalidade, evitando paixões, angústias e euforia. A alma não deveria ser perturbada com as glórias e perdas da vida e para isso fazia-se necessário um estado de serenidade constante. Essa imperturbabilidade da alma, alcançada pela virtude, seria, para os estoicos, a felicidade.

Os hedonistas, adversários dos estoicos, defendiam o prazer como único objetivo da vida. Aristipo de Cirene, principal representante do hedonismo, acreditava que somente o prazer é bem, porque só ele é desejado por si mesmo, sendo, portanto fim em si. Essa ideia foi parcialmente alterada por Epicuro de Samos, que afirmava que nem todos os prazeres conduziriam à felicidade. Os prazeres “calmos” seriam preferíveis aos intensos e violentos porque os últimos seriam passageiros enquanto os primeiros seriam mais duradouros.

Dessa forma, a discussão sobre a felicidade estava bastante presente na filosofia clássica, assim como a reflexão sobre sabedoria e virtude.  A pergunta básica que Platão aprendeu com Sócrates e deixou a Aristóteles: “O que é uma vida digna de ser vivida?”, ocupava praticamente todos os pensadores do período. Ao contrário do que acontece nos nossos dias, quando a grande maioria dos filósofos acredita não ter nada a dizer sobre a questão da felicidade.

Cristianismo

Com o advento do cristianismo, a ideia de felicidade é deslocada para o outro mundo. Segundo Agostinho de Hipona, importante filósofo cristão dos séculos IV e V, o homem é impotente diante do tempo, uma vez que a sua vida é uma caminhada em direção à morte. Nessa perspectiva, o presente não oferece qualquer segurança e a felicidade torna-se impossível. A única possibilidade de ser feliz, livre do medo e da impotência diante da efemeridade, seria a eternidade. Assim, o homem, que não consegue realizar-se no presente, nem no passado (que é irretornável), aguarda no futuro, depois da morte, a realização das suas expectativas de felicidade.

Tomaz de Aquino, outro filósofo cristão (século XIII), vale-se das ideias de Aristóteles para a construção da sua filosofia. Segundo esse pensador, Deus seria a causa primeira e o fim último de todas as criaturas humanas, dessa forma, o homem sempre buscaria se assemelhar a Ele. Como Aristóteles, Tomaz de Aquino acredita que o objetivo da vida humana seja a felicidade, entretanto, a felicidade não pode se realizar nas aspirações mundanas, uma vez que nelas se encontra apenas uma parte do bem. O bem completo está em Deus e não nas coisas criadas por Ele. Assim, a felicidade completa está na visão beatífica de Deus, que não pode ser alcançada senão numa “outra vida”, após a morte.

Dessa forma, a filosofia cristã tenta harmonizar fé e razão, utilizando-se do pensamento racional para elucidar a fé. Todavia, diferentemente do que acontecia no pensamento grego clássico, percebe-se uma subordinação da razão aos imperativos da fé. A felicidade humana é deslocada da sua realização terrena, para uma vida depois da morte. Nessa outra vida, o homem não estaria sujeito à efemeridade mundana e, além disso, poderia encontrar-se com Deus, criador e finalidade última de todo homem.

O pensamento cristão parece ter sido também o responsável pelo fortalecimento da associação entre felicidade e esperança. Esperança seria a única “alegria” possível ao crente, pois este coloca todas as suas expectativas de felicidade no paraíso, depois da morte. Essa ideia (vinculação entre felicidade e esperança) ainda está bastante presente na nossa cultura. Segundo André Comte-Sponville (2001), a esperança é tão valorizada que sempre a preferimos ao gozo dos prazeres presentes e reais, mas é também a causa da nossa infelicidade: “Estamos constantemente separados da felicidade pela própria esperança que a busca”. (Comte-Sponville, 2001)

Iluminismo

A filosofia Iluminista caracteriza-se por uma crença muito forte no poder da razão humana como instrumento de libertação em relação aos dogmas religiosos, aos preconceitos morais e à tirania política. Essa confiança na razão é herdada de filósofos como Descartes e Spinoza, entretanto, para os iluministas, a razão deve analisar as ideias a partir da experiência. Assim, a razão iluminista, ao contrário do racionalismo idealista, não se pergunta pela essência das coisas, mas submetendo-as à experiência, procura as leis do seu funcionamento.

Segundo seus principais expoentes, o desenvolvimento da razão iluminista levaria a humanidade a melhores condições materiais, morais, sociais e políticas. Tal confiança no progresso humano contribuiu para uma renovação social que instaurou a economia de mercado, um pacto democrático-constitucional, uma cultura racional e um homem livre de preconceitos morais e religiosos. (GIANNETTI, 2002) Assim, a “idade das trevas”, que reduzia a vida humana à obediência às prescrições da igreja, foi substituída por um novo tempo em que o direito ao bem-estar e ao prazer voltaram a ser considerados naturais.

Os conhecimentos científicos e técnicos obtidos a partir do uso da razão esclarecida seriam utilizados como ferramentas para a superação das necessidades naturais, através da subjugação da natureza aos interesses humanos. Dominando a natureza, os homens poderiam tornar as condições da vida humana mais tranquilas e confortáveis, poderiam ampliar o tempo de duração da sua existência e dessa forma, tornar-se-iam mais satisfeitos e felizes. Mas a confiança no progresso não se restringia apenas às conquistas materiais, havia também uma fé inabalável no aprimoramento da bondade do homem, além da crença num vínculo natural e indissolúvel entre a verdade, a virtude e a felicidade. (GIANNETTI, 2002)

A partir dessa mudança na visão de mundo, a felicidade - antes privilégio ou concessão dos deuses, depois construção da virtude ou possibilidade pós-morte – passa a ser encarada como um direito de todos. Assim, “ser feliz” passa a ser aspiração possível a qualquer pessoa aqui e agora, não é mais preciso esperar por um outro mundo, uma outra vida. Em tese, qualquer um pode ser feliz e o objetivo da sociedade deve ser assegurar a felicidade de todos os cidadãos.

Entretanto, se o pensamento iluminista rompe com a ideia cristã de vida pós-morte, não rompe com a ideia de paraíso. A única diferença é que o paraíso iluminista não está localizado em outro mundo, mas neste. Essa perspectiva mantém a esperança como um componente indispensável à felicidade. E a esperança iluminista de que o progresso da técnica supere todos os males humanos é uma ideia que, a meu ver, se presta às promessas da mídia dos nossos dias.

A felicidade contemporânea

Se pensarmos que a causa da dor e do sofrimento humanos é o descompasso entre os desejos dos homens e os acontecimentos da vida, encontraremos duas formas possíveis de acabar com eles: a primeira seria modificar os desejos, adaptando-os ao curso das coisas no mundo; a segunda seria modificar o mundo para adaptá-lo aos desejos humanos. Parece que os estoicos escolheram a primeira alternativa e os iluministas ficaram com a segunda.

A ideia contemporânea de felicidade é herdeira da tradição iluminista e como tal, associa felicidade ao prazer e relaciona prazer a conquistas materiais. Entretanto, se pouca gente duvida que as descobertas científicas, o avanço tecnológico e o acúmulo da produtividade tenham trazido mais conforto e saúde para as pessoas, todo esse progresso parece não ter atendido aos anseios de felicidade dos homens. O que teria dado errado? (GIANNETTI, 2002)

Diversas pesquisas, realizadas nas últimas décadas, parecem apontar para a existência de dois componentes básicos do bem-estar humano: o primeiro deles, que poderia ser chamado “dimensão objetiva” é passível de ser mensurado como nutrição, saúde, moradia, uso do tempo, renda per capita, criminalidade, etc; o segundo seria uma “dimensão subjetiva”: a experiência interna do sujeito com a vida, as sensações que desfruta, etc. Esse segundo componente é bem mais difícil de ser medido e existem muitas controvérsias em relação às metodologias utilizadas.

Polêmicas à parte, os resultados dessas pesquisas revelam a inexistência de uma correlação significativa entre bem-estar global das pessoas e as condições materiais de vida. Não obstante, eles também destacam a necessidade de níveis básicos de satisfação da “dimensão objetiva” para que a felicidade seja possível. Dessa forma, as satisfação das necessidades materiais parece funcionar como preliminares, ou seja, sem condições básicas de sobrevivência e conforto, a felicidade se torna impossível, entretanto, após superado esse estágio, as conquistas materiais influenciam pouco (ou nada) nos índices de bem-estar.

Apesar disso, a economia age com uma força motivadora impressionante que se choca com “valores sonhados” (GIANNETTI, 2002) das pessoas, isto significa que, embora seja bastante aceita no senso comum a afirmação de que “dinheiro não traz felicidade” e que a boa convivência e a valorização das “coisas simples da vida” sejam imprescindíveis para a construção de uma vida feliz, a maioria das pessoas orienta a sua ação no mundo pela busca de mais poder de consumo.

Esse conflito entre os valores apregoados pelas pessoas e a motivação das suas ações, a meu ver, cria um desconforto moral que, em meio a outros aspectos da vida contemporânea, é responsável pelo aumento do número de doenças emocionais. Todavia, a resposta contemporânea a esse problema é o crescimento da indústria farmacêutica de drogas (lícitas e ilícitas). Novas pílulas são lançadas no mercado, a cada ano, prometendo a redução do estresse, da ansiedade e a sensação de serenidade e felicidade, reforçando, assim, a perspectiva iluminista segundo a qual o caminho para a felicidade é a crescente dominação da natureza pelo homem.

Contudo, talvez a ideia principal, na base da construção iluminista, fosse que, liberados da luta pela sobrevivência, os homens tivessem mais tempo para as coisas que realmente importam na vida, como o convívio social, as artes, a filosofia, a espiritualidade, etc. “O ideal da economia deveria ser a eliminação do econômico do rol das preocupações humanas” (GIANNETTI, 2002) Entretanto, nos nossos dias, a economia parece ter dominado de tal forma a vida das pessoas que, se ela não se transformou numa nova religião, consegue, pelo menos, contaminar grande parte delas.

Qual é o preço da felicidade?

O grande avanço tecnológico e a necessidade de ampliação do mercado consumidor, bem como o crescimento das comunicações de massa são responsáveis pela forte crença contemporânea de que a felicidade pode ser comprada. Contudo, junto a esses fatores, talvez pudéssemos incluir o esvaziamento da noção clássica de felicidade (dissociação entre felicidade e virtude) que começa já no século XVII, com alguns pensadores que acreditavam “compreender a felicidade em termos psicofísicos inflexíveis: a experiência do prazer corpóreo e a ausência de dor física”. (KINGWELL, 2006)

A associação entre felicidade e poder de consumo, no entanto, não se dá sem um certo conflito moral, posto ser essa uma ideia que incomoda até quem vive nos países mais ricos do mundo. Segundo Eduardo Giannetti, uma pesquisa, realizada, nos anos 90, “revelou que 89% dos americanos consideram a sociedade em que vivem demasiadamente preocupada com dinheiro e 74% julgam que o materialismo exagerado constitui um grave problema social.”(GIANNETTI, 2002)

A indústria cultural, no entanto, desenvolveu mecanismos engenhosos para lidar com os possíveis entraves morais ao consumismo. Enquanto o consumidor tem a impressão de que é soberano absoluto das suas decisões, o cinema, a televisão, as propagandas, etc. ditam comportamentos. A máxima moral segundo a qual “dinheiro não traz felicidade” é habilmente subvertida através de mecanismos de manipulação bastante eficientes. Um bom exemplo disso é a promoção “Não tem preço” da MasterCard, analisada por um grupo de alunos sob a coordenação da Profa. Dra. Ana Lúcia Furquim CAMPOS-TOSCANO (2010). A análise foi publicada em um artigo na Revista Eletrônica de Letras da UniFACEF.

Segundo o artigo, a MasterCard iniciou, no ano de 2008, uma campanha que recolhia as melhores histórias dos consumidores sobre “coisas que o dinheiro não compra”. O objetivo da campanha, que prometia prêmios no valor de R$ 10.000,00, era evidenciar e reforçar o seu slogan: “há coisas que o dinheiro não compra, mas para todas as outras, existe MasterCard”, além de criar uma relação de proximidade com os clientes valorizando suas histórias pessoais. Os participantes enviariam seus relatos pessoais pela internet e o ganhador receberia também, como prêmio, a transformação da sua história “que não tem preço” em propaganda televisiva.

Depois de um breve referencial teórico, o artigo apresenta o filme publicitário a ser analisado: trata-se de uma propaganda em que uma jovem dá aulas de informática para um grupo de idosos. A escolha de faixas etárias bem diferentes evidencia o discurso da empresa de que seus serviços são para todos, além disso, a ação da jovem, preocupada com causas sociais, incorpora a perspectiva da responsabilidade social. Dessa forma, a empresa dialoga com valores morais considerados politicamente corretos, através do que ela espera conquistar a simpatia dos clientes.

No início do filme, aparece uma legenda que diz: “Baseado numa história real”. Essa informação confere maior credibilidade ao conteúdo do filme, além de aproximá-lo dos clientes. A jovem é mostrada dentro de um ônibus usando fones de ouvido e o narrador diz: “MP3, R$140,00 no crédito no MasterCard”. Em seguida ela chega numa sala em que estão reunidos vários idosos e alguns computadores. A moça, ergue o braço e coloca à mostra um pen drive dizendo a todos: “trouxe as fotos”. O narrador diz: “pen drive, R$ 90,00 no débito”. Depois a jovem é mostrada em casa, saindo do banho, nessa hora ela recebe uma mensagem: seus alunos lhe enviaram foto-montagens, cujos rostos estavam em corpos jovens e musculosos com movimentos de exercícios físicos. Ao fundo surge um quadro negro com a mensagem de “obrigado”. O narrador diz: “Ver que seus alunos aprenderam direitinho: não tem preço” (GOUVEIA, 2010)

Assim, a sequência criada pelos signos verbais do início do filme se completam e se comprovam, pois apresentam a felicidade sendo adquirida por meio de produtos que possibilitaram o encontro entre o consumo e a realização pessoal. A MasterCard se utiliza da interatividade como ferramenta mercadológica com o intuito de estimular o consumismo por meio do uso de seus cartões e, com isso, reforçar a ideia de que, por meio da utilização de seus serviços, o consumidor poderá vivenciar momentos impagáveis e, consequentemente, encontrar a felicidade. Nesse contexto, assume um aspecto de efemeridade, pois cria-se um bem-estar subjetivo à medida que as pessoas adquirem bens e riquezas para se tornarem felizes. (GOUVEIA, 2010)

Dessa forma, a MasterCard veicula um discurso ambivalente, pois ao mesmo tempo em que afirma que “felicidade não tem preço”, deixa claro que, para conquistar essa felicidade imaterial é preciso adquirir bens materiais (no crédito ou no débito), reforçando assim a relação entre dinheiro e felicidade. Ver idosos felizes “não tem preço”, entretanto, para que essa possibilidade fosse possível, no caso específico, foram necessários recursos como computadores e pen-drive.

Outro exemplo dessa contradição é o discurso sobre felicidade veiculado pela Revista Superinteressante que foi objeto da análise de Caciane Souza de Medeiros (MEDEIROS, 2009). No artigo, a autora analisa a matéria de capa da revista Superinteressante, edição de abril de 2005, intitulada - A busca da felicidade – pesquisas desvendam os mecanismos do prazer e da felicidade. Como esse novo conhecimento pode melhorar sua vida?

Essa matéria é apresentada em dois blocos textuais nas páginas 47 e 48 da revista citada. Um dos blocos (apresentado à margem direita da página 47) se inicia com a chamada: “A receita da felicidade”, e apresenta três métodos “que foram testados em laboratório e, portanto ‘funcionam’, quais sejam: prazer, engajamento e significado”. O segundo bloco  (mostrado à margem esquerda da página) se anuncia: “A receita da infelicidade” e pretende apresentar ao leitor os aspectos que não são a solução para o alcance da felicidade, são eles: dinheiro, casamento, futuro, carro novo, beleza e status. (MEDEIROS, 2009). Segundo a autora da análise, a receita da felicidade (o que funciona) está sintetizada em três aspectos da vida:

“prazer”, caracterizado por uma formulação que orienta a experienciação do prazer nas pequenas sensações do dia-a-dia; a do “engajamento”: relacionada com a orientação da dedicação a tudo o que fazemos, ao ímpeto de buscar novas atividades e a se exercitar; e a do “significado”: orientando na direção do agradecimento, do altruísmo e da inter-relação afetiva de gratidão.

A autora recorta, para o seu estudo, o tópico engajamento que, na revista, está relacionado às seguintes atividades: yoga, aeromodelismo, videogame, natação, flauta,

montain bike, culinária vegetariana, bateria.  A partir desse tópico, ela chama a atenção para a contradição presente na reportagem:

A sequência de dicas orienta para atividades que são parte de um discurso, com formação discursiva e ideologia, assentadas em um pensamento que prioriza o ter, mesmo estando edificado na formulação por uma aparência de ser (engajado). Para nos tornarmos engajados precisamos estar ligados a atividades determinadas, de socialização e cuidado pessoal e que não podem ser deixadas de lado, pois há opções para todos os gostos”. Essa “impossibilidade de” traz, na discursividade, a obrigação de um consumo, consumo que antes de ser produto é ideia, é valor. Se existem opções para todos, só não seremos felizes se não o quisermos. A discursividade se amarra em uma ideia – para sermos felizes precisamos estar engajados – que se efetiva em práticas (dicas) do ter (aulas de yoga, de culinária, de ginástica...).

Assim, utilizando um discurso prescritivo, a mídia se coloca como “conselheira” das pessoas em relação à felicidade. Através de orientações, fórmulas e modelos respaldados pelo senso comum e pela autoridade de um conhecimento pretensamente científico, ela submete a realização plena do ser aos imperativos do ter. Mostrando que, para se usufruir da felicidade (que ela reconhece ser imaterial) é sempre necessário ter (material).

Considerações finais: além do consumo

 

De acordo com Mark Kingwell, (2006) existem dois tipos “filosóficos” de felicidade: hedonista e eudemonista. A felicidade hedonista é a sensação de contentamento, em geral relacionada a prazeres corpóreos. Podemos chamar de hedonistas as pessoas que buscam sensações físicas de prazer: boa comida, boa bebida, contentamento estético, prazer sexual, etc. Por outro lado, a felicidade eudemonista é vista como uma

“espécie de satisfação racional com o próprio caráter e ações”: Uma forma de racionalidade reflexiva que avalia a vida e – sempre, claro de maneira provisória, pois as coisas podem mudar, a sorte pode virar – a declara digna de ser vivida. (KINGWELL, 2006)

De modo simplificado, é possível dizer que a felicidade hedonista está relacionada ao sentimento de alegria que temos ao desfrutarmos os prazeres (pequenos ou grandes) da vida, e que a felicidade eudemonista é muito mais complexa, pois implica numa percepção positiva de si próprio, de suas realizações e de seus projetos.

Kingwell destaca que existe uma confusão muito grande, no senso comum, em relação ao conceito de felicidade e atribui a causa dessa confusão à existência de uma palavra apenas para designar coisas tão diferentes: hedonismo e eudemonismo. Na prática, o que acaba acontecendo é uma redução de toda felicidade a prazer. Essa redução, no entanto, não é apenas obra do senso comum, está presente no pensamento de vários pensadores modernos. No seu Mal-estar na civilização, Freud (1996), citado por Kingwell (2006) escreveu:

O que chamamos felicidade, no sentido mais estrito, vem da satisfação (de preferência repentina) das necessidades que se acumularam em um nível elevado, e, por ser desta natureza, é possível apenas como um fenômeno episódico. Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer é prolongada, apenas produz uma sensação de breve contentamento. Somos feitos de tal forma que podemos obter satisfação intensa apenas por contraste, e muito pouca de um estado de coisas. Por isso nossas possibilidades de felicidade são limitadas por nossa constituição.

Dessa forma, Freud descreve a felicidade humana como algo bastante limitado, destacando como suas características: a efemeridade, a necessidade de contraste e limites biológicos, aparentemente naturais. Tal definição se coaduna perfeitamente com os interesses comerciais, uma vez que é isso que os “produtos” oferecem: uma satisfação momentânea. Essa satisfação, no entanto, supõe uma frustração constante, pois a felicidade, posta nesses termos, dura sempre pouco e logo dá lugar a novos desejos cuja satisfação é novamente “providenciada” pelo mercado.

O oportunismo do comércio não é difícil de perceber: ao contrário do que quer fazer parecer, as mercadorias não são criadas para nos fazer felizes, mas para aumentar os lucros das empresas. Diante desse quadro, Kingwell (2006), defende o resgate da perspectiva eudemonista de felicidade, destacando

“a profundidade da realização pessoal como não necessariamente limitada a experiências que nos proporcionam bons sentimentos e sensações do tipo transitório. A felicidade não é se sentir bem o tempo inteiro. Está, em vez disso, na habilidade de refletir sobre a própria vida e achar que ela vale a pena – vê-la como satisfatória”. Kingwell (2006)

Assim, para retirar a noção de felicidade da manipulação comercial Kingwell sugere remodelá-la e transformá-la na “posse de um caráter virtuoso e o desempenho de ações virtuosas”, enfatizando a importância da reflexão filosófica para a construção de uma vida feliz e resgatando a contribuição de grande parte da filosofia grega clássica que associa felicidade a virtude.

Comte-Sponville (2001) é outro filósofo que defende a importância do tema para a filosofia e destaca a centralidade da felicidade no pensamento filosófico desde o seu surgimento. Cita Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicuro, Spinoza, Kant, Diderot e Alain, como importantes filósofos que se debruçaram sobre o problema da felicidade e constrói a seguinte definição de filosofia, baseada em Epicuro: “a filosofia é uma prática discursiva (ela procede ‘por discursos e raciocínios’) que tem a vida por objeto, a razão por meio e a felicidade por fim. Trata-se de pensar melhor para viver melhor.”

Assim, apesar da tendência contemporânea de se considerar a felicidade como um tema ultrapassado, acredito que a filosofia tem o papel social importantíssimo de auxiliar as pessoas na formulação de uma ideia coerente sobre felicidade, pois a falta dessa investigação permite que o sistema econômico, através da mídia, continue a manipular as mentalidades, impondo uma espécie de “felicidade publicitária” que não tem outro objetivo a não ser a venda de produtos. O rigor do pensamento filosófico é imprescindível para desvelar os mecanismos de manipulação comercial, mas principalmente, para oferecer outras possibilidades na busca desse bem, tão desejado por todos: a felicidade.

REFERÊNCIAS

 

ARENDT, Hannah. O conceito de amor em Santo Agostinho. Trad. de Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 2005.

COMTE-SPONVILLE, André. A felicidade, desesperadamente – São Paulo: Martins Fontes, 2001

CONDÉ,  Geraldo  G.  Do  mal-estar  solúvel  e  da  felicidade  obrigatória: as narrativas da felicidade cotidiana na imprensa. Disponível em: http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/13989538282977454242675056962088437070.pdf Acesso em 07/01/2012

GIANNETTI, Eduardo. Felicidade: diálogos sobre o bem-estar na civilização. São Paulo. Companhia das Letras, 2002

GOUVEIA, Adrieli CASTRO, Cláudia de Fatima Pereira ANDRADE, Danila Rúbia. A análise do discurso das propagandas da MasterCard: felicidade não tem preço. Disponível em: http://periodicos.unifacef.com.br/index.php/rel/article/view/390/374 Acesso em 11/01/2012

GRACIOSO, Joel. A dimensão teleológica e ordenada do agir humano em Santo Agostinho Disponível em: http://200.145.171.5/ojs-2.2.3/index.php/transformacao/article/viewFile/2672/2097 Acesso em 07/01/2013

KINGWELL, Mark. Aprendendo felicidade: todas as tentativas de Platão ao Prozac – Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006

McMAHON, Darrin M. Felicidade, uma história. São Paulo: Globo, 2006.

MEDEIROS, Cassiane Souza de Medeiros. O conceito de felicidade na mídia e o estímulo ao consumo permanente: A felicidade não tem preço? Disponível em: PREÇO? http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/famecos/article/view/5908 Acesso em 13/01/2013



* Graduada em Pedagogia pela UFMG e professora da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte. Contato: [email protected]