DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NOS CASOS DE ANENCEFALIA: A PRESERVAÇÃO DA DIGNIDADE DA GESTANTE

Renato Gonçalves de Sá[1]

Victor Paiva Gomes Marques do Rosário[2]

Sumário: INTRODUÇÃO 1. ARGUMENTOS CONTRA A ADPF. 2. O QUE É A ANENCEFALIA. 3. ATIPICIDADE DO ABORTO DE FETOS ANENCEFÁLICOS. 3.1 O Aborto. 3.2. Vida e Morte. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

Resumo: O artigo estabelece uma análise sobre a argumentação favorável e contrária ao pedido feito pela CNTS ao STF no que tange à exclusão do aborto em casos de anencefalia do rol de condutas penalmente puníveis. Após essa análise, demonstraremos por quais razões tal pedido deverá aceito e porque o aborto anencefálico deve ser encarado como fato atípico, destacando os conceitos de aborto, vida e morte no ordenamento jurídico brasileiro.

Palavras-chave: Anencefalia, Aborto, ADPF.

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

ADPF – Argüição de descumprimento de preceito fundamental é um instrumento instituído no parágrafo 1º do artigo 102 da nossa Constituição, utilizado para evitar ou reparar danos a princípios fundamentais que venham a ser causados por parte do Poder Público. É método recente e ainda pouco utilizado no Brasil, mas permite que haja uma interpelação da Suprema Corte pela sociedade civil.[3]

No presente artigo, trataremos sobre a ADPF 54/8, cuja entrada no Supremo Tribunal Federal se deu em 17 de Junho de 2004, requerida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS, questionando os artigos 124, 126 e 128 do código penal, que criminalizam o aborto, procurando a liberação dessa prática nos casos de embriões anencefálicos.[4]

O argumento utilizado para fundamentar o pedido era de que por ser a anencefalia um estado de má-formação que impossibilita a vida fora do útero, não há razão para tipificar como crime a interrupção da gravidez nesses casos, que deverá ser entendida como um procedimento médico amparado pelos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do direito à saúde, à liberdade e a estar livre de tortura.[5]

1. ARGUMENTOS CONTRA A ADPF

 

Em primeiro de janeiro de 2007, o ministro Marco Aurélio proferiu liminar favorável ao pedido da CNTS, acolhendo o pleito e reconhecendo o direito constitucional de a gestante submeter-se ao procedimento terapêutico de interrupção da gravidez em casos de fetos anencefálicos confirmados pelo médico.

Reagindo a isto, veio a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil requerendo revogação da medida cautelar deferida liminarmente. Para ela, o feto anencefálico, mesmo impossibilitado de viver fora do útero, é ainda um ser vivo dotado de dignidade humana e, portanto merecedor de proteção jurídica, como prega a Constituição Federal.

Segundo essa visão, como qualquer outro ser humano, o feto anencefálico possui o legítimo direito de viver no útero da mãe ou até que se esgotem naturalmente suas possibilidades. O ser humano é, independentemente de seu estágio de desenvolvimento biológico, um sujeito que deve ser tratado como tal e não desqualificado como uma coisa ou um objeto qualquer que pode ser disposto quando não nos é satisfatório.

O sofrimento da gestante e de sua família é sim considerável, mas a CNBB proclama que ele não é justificativa aceitável para que se sacrifique a vida do próprio filho no ventre materno. Para a Igreja Católica, que queiramos ou não é uma grande influência na atividade jurisprudencial brasileira, a vida humana é sagrada, inviolável, e começa na concepção

Além da CNBB, o Procurador-Geral da República Cláudio Fonteles também requereu o indeferimento do pedido da ADPF, argumentando que as extintivas de punibilidade estipuladas pelo Código Penal já são claras e precisas, permitindo apenas o aborto terapêutico e o sentimental. A gravidez de feto anencefálico não se encaixa em nenhuma dessas duas situações, posto que não produz perigo de vida para a mãe, e embora possa causar sofrimento emocional a ela, o artigo do código é específico para apenas os casos de estupro.

Concorda ainda o procurador com a CNBB que, vingando a tese da ADPF, haveria uma séria lesão à garantia constitucional da inviolabilidade da vida. Ele nos recorda também do que diz o código civil em seu art. 2º, que põe a salvo os direitos do nascituro desde a sua concepção e também o artigo 4.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos que garante a proteção à vida desde o momento de sua copncepção.[6]

2. O QUE É A ANENCEFALIA:

 

Anencefalia é um defeito no fechamento do tubo neural durante o desenvolvimento fetal. Ela ocorre quando a extremidade cefálica do tubo neural falha em fechar-se, resultando na ausência da maior parte do cérebro, crânio e couro cabeludo. As crianças que nascem com essa disfunção nascem sem o lobo frontal do cérebro e o telencéfalo (a parte do cérebro responsável pelo pensamento e coordenação). A parte restante do cérebro frequentemente fica exposta – sem cobertura de osso ou pele. Um bebê que nasce assim é normalmente cego, surdo, inconsciente e incapaz de sentir dor. Somente ações de reflexo, como respiração e resposta ao som ou toque poderão ocorrer, trata-se de um estado vegetativo.

Embora estudos indiquem que a dieta da mãe e a quantidade de ingestão de vitaminas e outras substâncias (em especial o ácido fólico) durante a gravidez podem contribuir, entre vários outros fatores, para o surgimento da anencefalia, não há certeza alguma sobre sua causa bem como, infortunadamente também não existe cura ou tratamento padrão, apenas tratamento de suporte.[7]

O Brasil é o quarto país no mundo em numero de casos de anencefalia, segundo recente pesquisa da Organização Mundial de Saúde. A cada dez mil gestações, nove são de fetos anencefálicos[8]

 

3. ATIPICIDADE DO ABORTO DE FETOS ANENCEFÁLICOS

Lembremos que o pedido feito ao Supremo Tribunal Federal visa, de fato, o aumento nas hipóteses de exclusões da antijuricidade para o aborto, abrangendo agora também, caso o pedido da ADPF seja aceito, os casos de diagnóstico de anencefalia do feto.

Ao examinar nosso Código Penal de 1940, percebemos que o legislador não foi tão inflexível ao criminalizar o aborto, permitindo-o em casos de aborto necessário (quando a gestação implica em risco de vida para a gestante), e aborto sentimental (em casos de gravidez resultante de estupro).[9]

É interessante notar, que a aceitação do processo abortivo em caso de estupro não visa à preservação do bem jurídico da vida nem por obedecer qualquer critério médico, mas da honra, dignidade da mãe e sua saúde psicológica. Exatamente a mesma justificativa que é proposta para o caso de anencefalia, que por algum motivo não é aceita.  Pensa-se na condição psicológica da mulher vítima de estupro, mas ignora-se que a mulher que precisa levar por nove meses em seu ventre e alguns dias ou semanas fora do útero um ser desejado, porém inconsciente e fadado à morte, passa por sofrimento psicológico similar ou até mais grave, tendo também sua dignidade e honra ofendida. Sem falar que o bebê resultado de um estupro, é potencialmente capaz de ter uma vida saudável como qualquer outro cidadão, enquanto que o anencefálico não.

Podemos constatar através dessa situação, que o aborto anencefálico não foi admitido simplesmente porque na época da redação do código não havia o conhecimento médico e tecnológico que temos hoje em dia, capaz de constatar a absoluta incerteza de vida ainda dentro do útero nesses casos.

Fica a seguinte questão: a expulsão de um feto sem cérebro, cuja vida extra-uterina é inviável segundo comprovação médica, constitui crime de aborto? Para responder, precisaremos antes perguntar o que entendemos como o crime de aborto, e o que entendemos como vida.

 

3.1 O ABORTO

A doutrina médica define o aborto de quatro maneiras distintas: Interrupção eugênica da gestação: São os casos onde o aborto é praticado por razões eugênicas, movido por valores racistas, sexistas, de limpeza étnica. Bastante utilizado na Alemanha nazista. Interrupção terapêutica da gestante: São os casos executados para preservar a saúde da genitora, salvando sua vida. Interrupção seletiva da gestação: São os abortos feitos em casos de anomalias do feto, aqui se encaixam os abortos por anencefalia. Interrupção voluntária da gestação: São os casos praticados pela autonomia da mãe ou do casal, nos casos de gravidez indesejada.[10]

Para ser entendido como crime, o aborto pressupõe uma gravidez em curso, a vida do feto, e que sua morte seja conseqüência direta do procedimento abortivo. Durante muito tempo, o aborto não foi considerado crime.

O Código Criminal do Império de 1830 não criminalizava o aborto praticado pela própria gestante. Punia somente o realizado por terceiros, com ou sem consentimento da gestante. Criminalizava, na verdade, o aborto consentido e o aborto sofrido, mas não o aborto provocado, ou seja, o auto-aborto. A punição somente era imposta a terceiros que interviessem no abortamento, mas não há gestante, em nenhuma hipótese. O fornecimento de meios abortivos também era punido, mesmo que o aborto não fosse praticado, como uma espécie, digamos, de criminalização dos atos preparatório. Agravava-se a pena se o sujeito ativo fosse médico, cirurgião ou similar.[11] 

Atualmente, o nosso código penal da década de 40 tipifica três figuras de aborto, nos seus artigos 124, 115, 126, 127 e trata das exceções no art. 128.

 

3.2 VIDA E MORTE

 

O entendimento do ordenamento brasileiro, seguindo a evolução científica, reconhece que é a ocasião da “morte cerebral” que põe fim à vida humana, permitindo inclusive o esquartejamento do corpo para doação de órgãos. Se assim o é, o que dizer de um feto que nem mesmo possui um cérebro?

Com a aprovação da Lei dos Transplantes (Lei no 9.434, de 4/2/97, art. 3o), o ordenamento jurídico passou a adotar a morte encefálica como indicador de fim da vida. Contudo, isso não significa que os demais tecidos e órgãos estejam mortos. A morte encefálica simplesmente atesta a total impossibilidade de vida como indivíduo. Se assim não fosse, não seria lícito retirar um coração pulsante de um indivíduo para transplante.[12]

 Dessa forma, assim como o procedimento médico para o transplante de órgãos de um corpo com morte cerebral não é considerado homicídio, também não deve ser considerado o aborto no caso de um feto anencefálico, já que isso não se encaixaria na definição da doutrina penal de que o aborto implica na morte de um feto que obviamente antes da operação tinha vida. Embora a gravidez esteja em curso, não há vida no feto, assim como a manobra abortiva não causará sua morte.

Concluímos então que a interrupção da gravidez nesse caso é conduta atípica, não devendo ser rotulada como aborto e muito menos como crime. Novamente, ressaltamos as palavras de Marco Antonio Becker:

Não há por que adicionar outra excludente ao art. 128 do Código Penal, pois pelas razões expostas o ordenamento jurídico já existente autoriza o médico a retirar o feto de anencéfalo da gestante, a seu pedido, sem que com isso incorra em infração penal ou ética, pois, repetimos: se não há vida, não há que se falar em aborto.[13]

 

Com efeito, porque deveria uma gestante em posse de laudo médico que comprova cientificamente que o feto em seu ventre não possui um cérebro e não lhe resta possibilidade de vida fora do útero ser censurada pelo Estado por buscar o abortamento? Com qual autoridade poderá o Estado exigir que a genitora mantenha em seu ventre este ser inanimado, aguardando o término do seu ciclo biológico que inevitavelmente resultará em morte?

Percebemos que nessa hipótese, há a chamada “inexigibilidade de conduta diversa”, que deverá ser aceita como uma causa excludente de culpabilidade. Não se pode exigir dessa mulher angustiada e aflita outra conduta que a force a passar por todo esse sofrimento de ver seu filho sair de dentro de si para logo depois falecer. Tal exigência caracterizaria uma grave afronta ao princípio da dignidade humana.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não é possível que, em pleno século XXI com os avanços da medicina, se reprove socialmente a conduta da mulher que opta por abortar um feto anencéfalo, cuja possibilidade de vida extra-uterina segundo a medicina é de absolutamente zero, muito menos que a censurem juridicamente pelas mesmas razões citadas neste artigo. É uma desumanidade exigir que uma mãe conserve esse feto em seu ventre e o faça vir ao mundo para ao invés de comemorar um nascimento, se preparar para um enterro.

Tal procedimento pode ser encaixado perfeitamente na caracterização de “tratamento desumano” como disposto no art. 5º da Constituição Federal, segundo o qual “ninguém será submetido a tratamento desumano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O direito fundamental do feto anencefálico. Uma análise do processo e julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1555, 4 out. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10488>. Acesso em: 01 out. 2010.

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Atipicidade do aborto anencefálico: respeito à dignidade humana da gestante. Disponível em: <http://www.aidpbrasil.org.br> Acesso em: 03. Out. 2010.

________________, Manual de Direito Penal. Vol. 2; 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Diário Oficial [da] República do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 31 dez. 1940.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (Med. Liminar) 54-8. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/fazerDownload.asp?classe=ADPF&processo=54>. Acesso em: 1 out. 2010.

Diniz D, Vélez ACG. Aborto na suprema corte: o caso da anencefalia no Brasil. Rev Estud Fem. 2008; 16(2): p.647-652

BECKER, Marco Antônio. Anencefalia e possibilidade de interrupção da gravidez, in Revista MEDICINA do Conselho Federal de MEDICINA, n. 155, maio/julho de 2005.

NATIONAL INSTITUTE OF NEUROLOGICAL DISORDERS AND STROKE – NINDS. Anencephaly Information Page. Bethesda, MD: NINDS, 2006. Disponível em: <http://www.ninds.nih.gov/disorders/anencephaly/anencephaly.htm>. Acesso em: 02 out 2010.

WHO – World Health Organization. World Atlas of Birth Defects. Disponível em <http://www.who.int/genomics/about/en/anencephaly.pdf>. Acesso em 2  out 2010.

 



[1] Acadêmico do Curso de Direito, do 4º Período Vespertino da UNDB.

[2] Acadêmico do Curso de Direito, do 4º Período Vespertino da UNDB.

[3] Diniz D, Vélez ACG. Aborto na suprema corte: o caso da anencefalia no Brasil. Rev Estud Fem. 2008; 16(2): p.647-652

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (Med. Liminar) 54-8. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/fazerDownload.asp?classe=ADPF&processo=54>. Acesso em: 1 out. 2010.

[5] Diniz D, Vélez ACG. Op. Cit.

[6] ALVES JR., Luís Carlos Martins. O direito fundamental do feto anencefálico. Uma análise do processo e julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1555, 4 out. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10488>. Acesso em: 01 out. 2010.

[7] NATIONAL INSTITUTE OF NEUROLOGICAL DISORDERS AND STROKE. NINDS Anencephaly Information Page. Bethesda, MD: NINDS, 2006. Disponível em: <http://www.ninds.nih.gov/disorders/anencephaly/anencephaly.htm>. Acesso em: 02 out 2010.

[8] WHO – World Health Organization. World Atlas of Birth Defects. Disponível em <http://www.who.int/genomics/about/en/anencephaly.pdf>. Acessado em 2  out 2010.

[9] BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Diário Oficial [da] República do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 31 dez. 1940.

[10] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Atipicidade do aborto anencefálico: respeito à dignidade humana da gestante. Disponível em: <http://www.aidpbrasil.org.br> Acesso em: 03. Out. 2010. p 7

[11] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. Vol. 2; 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 155

[12] BECKER, Marco Antônio. Anencefalia e possibilidade de interrupção da gravidez, in Revista MEDICINA do Conselho Federal de MEDICINA, n. 155, maio/julho de 2005, p.10.  

[13] Ibid