Descaso, Omissão de Socorro e Erro Médico


Por: Walleson de Andrade Lessa


Inacreditavelmente em nosso país ainda perduram situações de completo desrespeito para com o próximo e em especial à classe oprimida. Verdade é que nosso sistema público de saúde SUS está entregue às traças e encontra-se precário, tornando-se cada vez mais obsoleto, porém existem casos que extrapolam a idéia do verdadeiro abandono.
Tamanho descaso nos faz acreditar na inutilidade da máquina estatal e infelizmente suga da grande massa a possibilidade do mínimo existencial, mesmo conhecendo alguns preceitos alçados constitucionalmente. É evidente e bastante conhecida a forma diferenciada entre os tratamentos realizados em hospitais particulares, por convênios, planos de saúde etc. O que nós verdadeiramente não imaginamos é quão desprezíveis são estes servidores que mais do que nunca deveriam zelar pelas responsabilidades a si dirigidas. Verdadeiros martírios, horas na busca pelo vagaroso e desinformado atendimento, filas imensas e o descrédito que levam muitos dos necessitados ao desespero, gritos, pedidos de socorro, suplícios sem fim.
Funciona como um grande hospital-escola, só que ao invés da presença ou supervisão dos professores, os alunos é quem prescrevem, atuam e assumem os riscos. Sabemos que o exercício da medicina sem o devido registro em seus órgãos competentes configura-se crime de acordo com o Art. 282 do Código Penal. Mas em nossos centros de saúde tal prática vem se tornando cada vez mais freqüentes, diuturnamente estudantes são alocados em centros de atendimento emergencial para fins didáticos a título de experiência, mas na prática, lhes são atribuídas responsabilidades inerentes aos profissionais competentes na área de saúde, ou seja, uma sucessão de erros grotescos, primários e muitas vezes irreversíveis.
É indescritível e vergonhoso o atendimento e as explicações de pessoas que nitidamente ainda não estão aptas a estas atividades. É importante salientar, no entanto que existem obviamente algumas exceções; mas no geral, o que vimos é uma verdadeira oficina de aprendizes inexperientes sem a devida supervisão de um responsável.
Vou tentar descrever conforme presenciei nos dias em que fiquei internado na unidade do Posto de Saúde Alfredo Bureau, localizado na ladeira do Marback, localizado no Imbuí: São cenas de total abandono, as pessoas ficam se escorando nos bancos de atendimento da unidade, sempre que há lugares disponíveis, ou se aglomeram ali mesmo, naquela sala minúscula, onde o atendimento das recepcionistas é insustentável. Depois o que se passa é uma sucessão de tortura psicológica porque existe na teoria uma sala de triagem onde só cabem no máximo duas pessoas bem apertadas e sem nenhum conforto, mas o medo maior além da demora para ser chamado é maximizado pelo temor do despreparo profissional deste servidor, pois é daquele momento em diante que o mesmo indicará ou não se sua prioridade é alta ou baixa.
Não mais frustrante do que ter sua vida sorteada como se numa "loteria", é a sensação de ter sido cobaia de alguém que nem ao certo sabemos se possui ou não competência para tal, a exemplo de várias queixas de pessoas que tem pressão alta e ali, naquele "mágico" momento fica com esta baixa nos boletins e vice-versa, na sua grande maioria, todos os pacientes daquele lugar estão com a pressão arterial normal e sem febre.
Mas o que leva o ser humano a ficar de três a quatro horas pela madrugada, com filhos menores, idosos, pessoas com debilidade motora e até psicológicas, que se debatem de dor, visivelmente com problemas de saúde? Certamente não é por brincadeira.
Sem o atendimento necessário e em tempo hábil, é crescente a sensação de insignificância e de como as pessoas podem ser frias, cínicas e até irônicas quando questionadas sobre algo que realizarão no procedimento, quando este é alcançado. Objetivamente falando é a falta do conhecimento técnico, do domínio do assunto e da matéria; a essas pessoas é que atribuo o apelido de "jaleco de enfeite", pois a maioria sequer está na metade do curso que, diga-se de passagem, é técnico, mas dado ao ambiente e aos necessitados freqüentadores já se auto-intitulam "enfermeiras". Não que o curso técnico seja ruim, muito menos aqui estou eu desmerecendo a qualidade de algumas escolas, mas a crítica é referente à falta de mecanismos que avaliem o profissional em desenvolvimento, assim como o tempo necessário aos estágios e a permanência em ambientes reais. Afinal de contas é preciso antes de tudo uma certificação deste futuro profissional de saúde para evitarmos futuros erros e filtrar ao máximo o grau e interesse destes, pois aqui tratamos acima de tudo de vidas. E penso que seja a escola o lugar mais apropriado à valoração deste bem.
Dando prosseguimento à corrida pela vida, depois de decorridas algumas horas, o vigia (que pensa nessa altura do campeonato ser algum tipo de autoridade policial) vem com sua ficha médica em punho, chama seu nome; devo dizer que é realmente como participar de um sorteio de loteria. Ultrapassa-se então aquela porta dupla, "como as portas antigo faroeste" e há inacreditavelmente outra sala de espera em frente à sala do médico ( na sua maioria estudantes do 5º, 6º período de Medicina).
Até aqui, o acompanhante não é autorizado a entrar, a menos que o paciente esteja entre essa vida e a outra.
Ao ser chamado pelo "médico", já em estado avançado de dor, estresse, revolta, compaixão pelas crianças e idosos, você enfim tem noção do grave problema e da ineficiência do poder público. A avaliação do DOUTOR, como é comumente chamado pelas pessoas mais carentes e que não imaginam que aquela "criatura" ainda é estudante, baseia-se em poucas perguntas, nenhum esboço de preocupação e total desatenção com indicadores fundamentais como a aferição da pressão arterial, temperatura corporal, coloração da pele, pálpebras, etc., ou seja, mesmo nós que somos leigos no assunto, sabemos que todos estes são necessários ao diagnóstico correto e indispensáveis à melhora ou piora do paciente. Pois bem, após se esquivar das perguntas sem respostas, o DOUTOR rabisca a ficha e lhe entrega esta novamente passando uma impressão de lhe ter prestado um grande e impagável favor, lhe indicando a apresentação da mesma na enfermaria, para que os procedimentos possam ser iniciados. Em caso de problema externo, como corte, sangramento, haverá mobilidade por parte dos mesmos, em caso de algo interno, certamente será atribuída a esses sintomas, alguma "virose".
Novamente a espera, agora no frio de arrasar, pois os dois ar-condicionados centrais garantem que a propagação de outras doenças seja mínima, o cidadão após entregar a ficha aguarda sentado a boa vontade dos "enfermeiros" e dos técnicos, até que esses coloquem o papo em dia com os colegas, parece um corredor de colégio infantil, tamanho ti-ti-ti. O descaso espanta, mas a naturalidade como estes profissionais abordam é desastrosa, pessoas amargas, com testas franzidas, com olhar mórbido e postura nada humilde ressalta o despreparo e o desapego da humildade, exaltando ainda mais a soberba e frustração de muitas vezes não ter conseguido entrar no curso de medicina e precisar se submeter a estes cursos rápidos de dois anos que ancoram seus anseios e suas vontades, indeterminando a real vontade daquele ser.
Eis o surgimento de um grande dilema?: Toda essa mágoa, angústia existente no âmbito do profissional é extravasada e causam muitas vezes desatenção, diagnósticos mal feitos, erros desnecessários. Fator importantíssimo e imprescindível à administração correta de procedimentos e medicações inerentes à vida. Vi idosos, crianças, doentes mentais, alcoólatras, pessoas sendo tratadas de acordo a critérios de como se chega, se bem ou mal vestidos, indistintamente, sem que houvesse uma triagem de verdade, mais específica ou mesmo uma atenção redobrada, até porque essas pessoas merecem o atendimento digno necessário, não importa quem estas sejam.
O momento-chave então chega, é hora do medicamento, mas antes, durante e após o procedimento é inegável a sensação de que algo de errado aconteceu ali. No meu caso, por exemplo, para economizar os "acessos" como são chamados aqueles quites responsáveis para realizar a transmissão do soro e medicamentos para a artéria(acredito que seja isso, pois não sou especialista, mas), você fica ali, mesmo após ter acabado o medicamento, andando pelos corredores e vendo o sangue ir e vir porque não é permitida a retirada até a reavaliação do "médico" que se encontra no alojamento dormindo mesmo sendo este responsável pelo plantão e sem falar da chegada do tal do exame de sangue que pode levar de 3 a 4 horas estando ou não se sentindo bem.
Até aí, é um "mix" de dúvida, insatisfação e medo. Nesses procedimentos me foi indicada uma medicação antiinflamatória que após algum tempo de administração, percebi que o braço inchara devido à agulha não estar no lugar correto e naquele instante, muito rapidamente se formara um enorme abscesso. Infelizmente a falta de atenção por parte dos profissionais deixa o clima pouco ameno, pois a cada hora naquele lugar, prolifera-se a indignação de todos ali presentes, familiares e acompanhantes.
É ímpar ressaltar que esses procedimentos são realizados numa sala e logo após o paciente é realocado para outro ambiente de nome "inalo terapia" onde as pessoas com problemas respiratórios como Asma, Bronquite, Gripe, ou seja, inúmeras doenças inclusive contagiosas são ali também acomodadas sem que haja ao menos a higienização necessária. Enfim, o limite da tolerância é alçado ao extremo, pois não há visitação dos médicos ou enfermeiros e sua presença só se faz constante depois de repetidas reclamações, gritos e discussões até por parte dos acompanhantes, pois os médicos detestam ser incomodados em seus dormitórios durante o plantão.
Após acionada a pessoa que se diz enfermeira, ouvimos inusitadamente a seguinte frase: "não se preocupe, isso é normal, fique calmo" alusão à reclamação sobre o abscesso que a essa altura já paralisa os movimentos do braço e dá sinais de que o organismo não absorverá tal medicamento conforme orientação da funcionária, iniciando o processo de expulsão imediatamente após a retirada do acesso. O líquido transparente passaria a noite a sair daquele minúsculo furo.
Mesmo sem resolver seus problemas médicos, muitos dos pacientes acabam por desistir do tratamento ali oferecido, em virtude da ineficiência da unidade, despreparo profissional e medo principalmente de que haja uma piora no quadro depois de um ou outro internamento. Estas pessoas sofridas acabam por retornarem a seus lares, suportando dores e convivendo com doenças não diagnosticadas e que aparentemente teriam solução rápida e sem muitas dificuldades caso existisse responsabilidade na incumbência da presteza eficiente dos serviços necessários.
A indignação é algo que elenca e exalta a frustração em nós que precisamos do serviço gratuito de saúde e que infelizmente devido a condições financeiras não podemos pagar por um plano. A humilhação é permanente, pois ficamos à mercê desse sistema mecanizado, das escolas e cursinhos particulares que almejam angariar sempre mais e mais, da individualização do homem, da insensibilidade da maioria das pessoas que optam pela área de saúde e total e visível descumprimento das autoridades responsáveis, fiscalizadoras e dos respectivos órgãos reguladores e poderes públicos.
A solução paliativa talvez esteja aqui, na denúncia, para tentarmos coibir os abusos e as irresponsabilidades que ali são cometidos indiscriminadamente por aqueles que certamente dispõem de seus magníficos planos e convênios em hospitais que mais parecem grandiosos hotéis de luxo.
Resta o apelo aos que ainda tem família e sentimentos, sejamos solidários e demonstremos o mínimo de humanidade, exaltemos o tema "vida" e cultuemos o bom senso senhores.
Que enxerguemos que a máquina estatal está falida há tempos e o que precisamos de fato nos dias atuais é fazer uma grande faxina nas dependências de saúde dos estados brasileiros, em especial as de Salvador-BA, queremos antes de mais nada o direito à vida e de sermos tratados como pessoas que merecem o digno e respeitoso atendimento necessário aquilo que é o bem mais precioso da face da terra, precisamos revitalizar e reestruturar a coluna vital de uma sociedade, bom seria se os grandes médicos deixassem suas magníficas clínicas para se dedicarem ao trabalho social, mesmo que uma vez na vida. Isso seria sim um ato de inteira responsabilidade social...mas na realidade isso nunca acontecerá, infelizmente.
Não deixem seus entes queridos morrerem nas filas desses "açougues", DENUNCIEM, contem suas histórias, espalhem as notícias, os fatos e alerte a todos para os riscos. Sobrevivam!!!

Salvador-BA, 25 de julho de 2011.