Artigo escrito por Lilian Segnini Rodrigues Outubro/2015 Democracia e cidadania: notas para um debate contemporâneo Uma recente pesquisa do instituto Datafolha, divulgada em junho deste ano, mostrou que 66% dos brasileiros entrevistados são contra a obrigatoriedade do voto. Dentre eles, seis em cada dez afirmaram que não votariam caso o voto fosse facultativo. Da mesma forma, no berço da democracia, os gregos, mesmo sendo obrigados a votar, abstêm-se em número significativo. Isso nos remete a pensar sobre a descrença dos cidadãos nas instituições políticas a tal ponto de, no auge do descontentamento, preferir abrir mão do direito de participação política, ou seja, do direito ao exercício da cidadania, que, por sua vez, está intimamente ligada à democracia. Embora comprometa a efetividade da democracia, não será tratada aqui qual a melhor forma para o sufrágio, se é por meio do voto facultativo ou do voto compulsório, mas o que pode ser feito para que a democracia cresça e os cidadãos recuperem o interesse na participação política. E isso não se resume ao voto. A participação política vai além do voto. Sendo a democracia um regime legítimo no qual as decisões são tomadas em prol dos interesses da maioria, a participação popular é fundamental, portanto, o fato da maioria preferir não mais participar é no mínimo preocupante. Bobbio, em sua obra “O futuro da democracia”, diz que o regime democrático é um conjunto de regras procedimentais que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros do grupo e com quais procedimentos. Com relação ao voto, o autor o considera um amparo à regra da maioria, ou seja, à regra de que as decisões que são do interesse coletivo devem ser aprovadas pela maioria daqueles a quem compete tomar a decisão. Bobbio faz uma análise sobre as possibilidades e os limites do regime democrático. Na sua visão, a democracia é dinâmica e está em constante transformação. Essas transformações, segundo o autor, se caracterizam sob a forma de “promessas não cumpridas”. Seriam essas promessas não cumpridas as responsáveis pela descrença dos cidadãos ao sistema político, colocando em risco o futuro da democracia? Tomamos como exemplo o Brasil: um sistema político-partidário onde o que prevalece é o clientelismo e uma corrupção sistêmica. Um sistema assim só pode trazer frustração e desânimo à população. Eis que esses são alguns dos principais motivos para o declínio de um regime democrático. É exatamente essa democracia real que Bobbio analisa, ou seja, o contraste entre o que foi prometido e o que efetivamente foi realizado, indicando, a partir dessa premissa, seis promessas não cumpridas da democracia, a saber: o pluralismo, a revanche de interesses, a persistência das oligarquias, o espaço limitado, o poder invisível e a educação para a cidadania. O pluralismo se refere à forma de distribuição do poder, decorrente da perda da potência do indivíduo soberano frente a grupos contrapostos ou concorrentes na vida política, em razão da existência de vários centros de poder na sociedade. Na concepção democrática ideal, o indivíduo é soberano e entra em acordo com outros indivíduos igualmente soberanos, criam a sociedade política, um estado sem corpos intermediários, sendo o povo soberano composto por indivíduos igualmente soberanos (uma cabeça, um voto). No Brasil, o pluralismo se caracteriza por um extenso número de legendas partidárias. Clientelista desde os primórdios de sua institucionalização, o sistema partidário brasileiro tem se mostrado frágil e desacreditado pela maioria dos cidadãos que, conforme já mencionado, estão indispostos a participar ativamente da atividade política. O sistema de voto pela legenda, ou voto proporcional, é a mais pura definição de falsa democracia, já que nem sempre os mais votados são efetivamente eleitos. Ora, se a decisão da maioria deixa de ser considerada, onde está a democracia? O pluralismo leva ao segundo estado de transformação da democracia, a revanche de interesses, característica da democracia representativa. Ocorre que os grupos que estão no poder, que podem ser, por exemplo, os partidos, as legendas ou coligações, acabam por tomar decisões, por intermédio do seu representante eleito, que efetivam os interesses daquele grupo em detrimento aos interesses de outros grupos. No sistema eleitoral brasileiro, para deterem para si o poder de representação e, consequentemente, tomar as decisões que mais lhes beneficiem, os partidos políticos lançam mão do personalismo, o que acaba por gerar um grande problema: por ocasião das eleições, os partidos vão à caça de “puxadores de votos” de modo a atingir um elevado coeficiente partidário, porém, os ídolos populares, uma vez eleitos, consideram-se desvinculados do partido que os procurou somente para o desempenho eleitoral. Ocorre então a falta de fidelidade partidária, já que o eleitorado considera somente a personalidade que parece melhor representá-lo, não o partido ao qual ela é vinculada. Bobbio considera a derrota do poder oligárquico como terceira promessa não cumprida. Para o autor, o próprio modelo de democracia representativa já é por si só uma renúncia ao princípio da liberdade como autonomia, porém, segundo Bobbio, nada mais ameaça a democracia do que o próprio excesso de democracia, já que inúmeras são as decisões a serem tomadas em uma nação, inviabilizando, portanto, a participação direta em sua totalidade. Desse modo, poucos se envolvem efetivamente com as decisões políticas e, com isso, o poder acaba ficando nas mãos de pequenos grupos ou oligarquias. No Brasil podemos destacar a oligarquia das elites agrárias. A quarta promessa diz respeito ao espaço limitado. De acordo com Bobbio, se a democracia não consegue derrotar por completo o poder oligárquico, é menos ainda capaz de ocupar todos os espaços nos quais se exerce um poder que toma decisões vinculatórias para um inteiro grupo social. Nesse ponto, o autor faz uma distinção da democracia não como poder de poucos e de muitos mas sim entre poder ascendente e poder descendente. Para Bobbio, quando se deseja saber se houve um desenvolvimento na democracia de um país, o certo é perguntar se aumentou o número de espaços nos quais os cidadãos podem exercer o direito de participar nas decisões que lhes dizem respeito, não procurar perceber se aumentou o número de quantos tem direito de participar. Com relação a essa premissa, podemos fazer uma crítica positiva ao Brasil, visto que o que vemos é um cenário propenso a uma maior participação, já que tem crescido as ações no sentido de mobilizar a população para a participação política. Ações que podem ser exemplificadas pelo Decreto nº 8243 de 23 de maio de 2014, que institui a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social. Outro exemplo é a plataforma de participação social na internet “Dialoga Brasil”, que tem por objetivo buscar a opinião dos cidadãos para a formação de políticas públicas. O exemplo mais conhecido, um dos pioneiros entre os projetos de participação e mobilização popular é o Orçamento Participativo. Se esses mecanismos são totalmente eficazes ou se possuem itens que na prática não funcionam ou não funcionarão, não vem ao caso nesse debate. O que importa é que ações estão sendo tomadas para incentivar a participação popular, de modo impulsionar a democracia brasileira, já que esse regime é, de longe, preferível a qualquer outra forma de governo. A não eliminação do poder invisível seria a quinta promessa não cumprida da democracia ideal. Segundo Bobbio, na democracia real, as grandes decisões deveriam ser tomadas com publicidade, transparência e visibilidade. Em um governo democrático, nada pode permanecer confinado no espaço do mistério. Aos atos do poder público e aos atos decisórios do estado deve ser dada maior visibilidade, acessibilidade e publicidade, o que poderá permitir maior controlabilidade de tais atos. Nessa questão também podemos dizer que o Brasil tem avançado. A Lei de Acesso à Informação, o Portal da Transparência e o próprio Orçamento Participativo são ferramentas que promovem efetivamente o princípio da publicidade, dando mais transparência aos atos de Estado. A sexta e última promessa não cumprida da democracia, de acordo com Bobbio, se trata da educação para a cidadania, que surgiria no próprio exercício da prática democrática. O autor aponta para um cenário de apatia política, com grande desinteresse dos cidadãos em relação ao que acontece na política. Esse cenário também podemos ver no Brasil, todavia, as ações do Estado no sentido de promover a participação popular além do voto podem contribuir muito para a educação para a cidadania brasileira. As premissas de Bobbio, portanto, nos leva a crer que a democracia ideal deve ser livre de pluralismo, sem revanches de interesses e poderes oligárquicos, deve promover a participação popular, a publicidade e a transparência dos atos do Estado, bem como a educação para a cidadania. O cuidado com essas questões, ou pelo menos algumas delas, fortalece a democracia, fazendo com que a população recupere o interesse na participação popular. No entanto a democracia, até o momento, não existe em sua totalidade. No Brasil, devido os problemas que aqui foram apresentados, isso fica evidente. Robert Dahl afirma essa hipótese em sua consagrada obra “Poliarquia”. Para Dahl, democracia é um regime político ideal que ainda não foi totalmente alcançado. O que existem são graus de democratização que podem ser analisados e comparados, ou, como sugere o autor, poliarquias. Carole Pateman, no capítulo 1 de seu livro “Participação e Teoria Democrática”, utiliza o conceito de democracia de vários autores contemporâneos, incluindo Dahl, agrupando o que eles têm em comum em torno de uma teoria a qual denominou “Teoria Contemporânea da Democracia”. Nessa teoria a autora afirma que o que determina o sistema democrático é a competição pelos votos em eleições livres e periódicas. Segundo ela, é através do voto que as pessoas adquirem força para controlar os líderes e também influenciar as decisões deles. Nesse sentido, a participação é outro ponto fundamental, uma vez que representa a possibilidade de escolha daqueles que tomam as decisões. Pateman trata da participação no segundo capítulo de sua obra, fundamentando o que denomina “Teoria da Democracia Participativa”. Utilizando, da mesma forma, alguns conceitos de autores consagrados, como Rousseau, a autora traz à tona o entendimento de que a participação é ilimitada, e todos devem e podem participar. Seguindo a mesma linha da sexta premissa de Bobbio, Pateman afirma que a principal função da participação é educativa. Educativa num sentido amplo, quer seja, tanto no aspecto psicológico quanto no aspecto técnico. Nesse sentido, para existir um governo democrático deve necessariamente a sociedade ser participativa. A participação pode iniciar no local de trabalho como aprendizagem e evoluir, gradativamente, para participações no contexto social mais amplo. Bobbio também trata da participação como uma fator de extrema importância ao analisar a democracia representativa e a democracia direta. Para o autor, visto a complexidade de uma democracia totalmente direta, é humanamente impossível aplicá-la na prática, ou seja, a democracia direta pura, de acordo com Bobbio, não existe. Do mesmo modo que também não existe a democracia representativa pura, já que, quanto maior a participação, mais há uma mescla entre os dois tipos de democracia. Hoje tem se usado muito a expressão “democracia participativa”, que caracteriza bem o que Bobbio explica sobre a mistura da democracia representativa com a direta. Afirmando portanto o que foi dito no início desse ensaio, é muito importante que os cidadãos não percam o interesse na participação, já que é a única forma de intervenção direta da população no processo de tomada de decisões. Decisões essas que afetam toda a nação. Com relação ao Brasil, não obstante os problemas pelos quais a democracia representativa vem passando, a luz do que foi comprovado pela pesquisa do instituto Datafolha, a participação popular vem sendo promovida pelo Estado com mais afinco. A internet é uma ferramenta que está contribuindo muito para isso, pois os cidadãos podem dar opiniões ou participar das tomadas de decisões sem sair de casa. Parafraseando Madeilene Albright, a verdadeira democracia nunca é alcançada, mas deve ser sempre uma meta a ser seguida. A democracia depende da capacidade do Estado e dos cidadãos em dar vida a ela. Desistir da democracia é fazer com que as lutas e as grandes revoluções, que custaram a vida milhares de pessoas, tenham sido em vão. Referências: BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. DAHL, Robert. Poliarquia. São Paulo: EDUSP, 2005. PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.