Como a inépcia da política municipal está assassinando a cultura e a arte literária de São Luís

BATTISTA SOAREZ, Escritor, editor e jornalista

Em 2012, ano em que a capital maranhense completou 400 anos de fundação, a 6ª Feira de Livros de São Luís comemorou com um verdadeiro caos. A avaliação, na época, veio dos próprios participantes. Livreiros e organizadores reclamaram de que a prefeitura municipal foi totalmente omissa.

— Faltou mais apoio. Este ano, a feira só aconteceu porque é lei. Se não, não teria acontecido — disse Milton Lira, gerente da Livraria Vozes, em São Luís, e ex-presidente da ALÉM (Associação de Livreiros no Estado do Maranhão).

O então prefeito João Castelo, derrotado nas eleições 2012 para Edivaldo Holanda Jr, foi o primeiro a comparecer na feira, comprou livros e se deixou fotografar. Mas a simples participação de prefeito como visitante não basta. O executivo municipal, seja ele quem for, de qual partido seja, precisa valorizar a feira de livros e torná-la um evento de grande expressão no cenário nacional. É o que se espera em 2013 e nos anos subsequentes.

Na edição de 2012, o problema já começava pela mudança de local. Nos anos anteriores, a feira vinha acontecendo na Praça Maria Aragão, local mais apropriado, de acordo com os participantes. “É amplo. Tem estacionamento e o acesso é melhor”, acentuou o escritor Antônio Guimarães, autor de São Luís: memória e tempo. Em 2012, a feira mudou para o CEPRAMA e isso dificultou o acesso das pessoas.

Logo na entrada, os participantes eram recepcionados pelo sugestivo cheio de esgoto. Na calçada, um esgoto estourado jorrava abundantemente. As pessoas molhavam os sapatos naquela água fedendo a bosta e ninguém da administração pública aparecia para resolver o problema. Para quem veio de outro estado, uma surpresa estranha e desagradável: “Ai, gente! Patrimônio histórico e cultural da humanidade por aqui fede a cocô”, disse a turista Janete Lali Magalhães, de Canoas, Rio Grande do Sul.

Sujeira, buracos, esgoto e fedor. Essa é a cultura que a cidade patrimônio histórico oferece para a humanidade. Somando-se a isso, outras culturas nojentas se avolumam em torno da capital maranhense: ruas e calçadas cheias de mijo; violência por todos os lados; e um, finalmente, brilho cultural sem vida, apagado e sem sentido de ser. Sem exagero, o esgoto é a política cultural mais expressiva na capital maranhense, terra de poetas e escritores talentosos como Graça Aranha, Gonçalves Dias, Josué Montello, Nauro Machado, José Louzeiro e outros.

Aliás, esgoto é, talvez, o destino que o poder público de São Luís quer dar à cultura do livro. Basta fazer uma visita à Rua do Sol e ver o que estão fazendo com a casa que pertenceu a Aluísio de Azevedo (1857-1913), um dos maiores escritores de São Luís de todos os tempos, publicado em mais de 150 países. A casa do autor de Casa de pensão, onde deveria ser um acervo literário — pois ali o escritor produziu duas de suas mais importantes obras, O mulato e O cortiço —, foi vergonhosamente vendida para um camelô que passa a noite inteira destruindo a parte interna daquele patrimônio cultural e incomodando a vizinhança. Parece que o poder público pouco está ligando para a cultura do livro e produção literária. Agora, São Luís tem uma cultura patrimônio da humanidade, tombada, entretanto, pela contracultura da desumanidade.

Na feira do livro de 2012, a Casa do Escritor, por exemplo, ficou escondida quase que debaixo do piso, como sinal de não-reconhecimento a quem faz arte literária na história terra de escritores e poetas. No auditório Quartocentenário — bem localizado até — não comparecia quase ninguém para ouvir as palestras.

“Não ouve muita divulgação. Acho que uma feira desse nível deveria ser divulgada em todo o Maranhão e no Brasil inteiro”, disse o engenheiro civil Irandi Marques Leite. Leitor apaixonado, Irandi sugere que seria indispensável a participação da Academia Maranhense Letras, das universidades públicas e privadas e, ainda, das faculdades. “As empresas — acrescentou ele — como Vale do Rio Doce, Alumar e outras também deveriam estar ali participando e apresentando seus projetos de sustentabilidade para a área da cultura literária”.

De fato. Não se faz empresa sem livro. Não existe universidade sem livro. Não há cultura sem livro. Nem ciência. Nem arte. Sem livro, nem se fala em literatura. E a literatura, claro, é a vida útil de qualquer civilização. O livro mantém o diálogo entre gerações. É com a existência de livros que se conhece o passado, registra-se o presente e se promove o futuro. No entanto, falta política cultural para o livro. Escritores não recebem nenhum incentivo. Nem se organizam como deveriam.

A beleza da cultura maltratada

São Luís é bela. Muito bela. Cercada de águas oceânicas por todos os lados, a cidade torna-se uma ilha deslumbrante. Belas praias. Gentes bonitas. Culinária riquíssima. Poetas, escritores e uma história literária fantástica. Há, ainda, uma lenda que, contada, emociona e encanta.

Com forte influência francesa, a ilha de Upaon-Açú já foi berço da intelectualidade brasileira e guarda, no seu seio, um orgulho histórico-cultural acima de tudo romântico, pela sua poesia, pela sua arte literária e pela sua sensibilidade criativa. Ando pelas praias, por ruas modernas e pelo Centro Histórico e sinto-me impulsionado pela inspiração que o brilho de seus casarões me proporciona. Sinto a emoção que qualquer poeta ou escritor sente olhando sua beleza cultural desenhada na arte de antigos prédios coloniais portugueses. Aliás, maranhenses mesmo.

O céu de São Luís parece reluzir mais límpido que o céu de outras cidades históricas do Brasil. Os pássaros, aqui, parecem ter, em seus cantos, melodia mais refinada que em outros lugares do mundo, como diria o poeta maranhense Gonçalves Dias: Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá / Os pássaros que aqui gorjeiam / Não gorjeiam como lá... E nesta terra de Gonçalves Dias, até os cães parecem mais felizes, haja vista o ar puro e naturalmente saudável que respiram, graças à aragem que vem do Atlântico e ventila seus becos e vielas. Seus poetas são mais poetas. Inspirados. Aqui, tudo cheira arte. Tudo respira poesia e cultura literária.

Declínio da razão literária

Tudo isso, no entanto, parece estar ameaçado pela estúpida falta de interesse e má vontade política, ou melhor, má vontade dos políticos. Políticos que, infelizmente, são os únicos seres que administram tudo, em nome de uma democracia mentirosa. Eles mandam em tudo: na cultura e na arte; na cidade e no campo; na pobreza e na riqueza; nas leis e no judiciário; no legislativo e no executivo; no dinheiro e na falta deste. Mandam até na vida e na morte. Eles decidem quem deve viver, e quem deve morrer.

As autoridades, ao invés de investirem na arte, questionam: que razões levam alguém a tornar-se artista?; o que leva alguém a querer ser escritor? Evidentemente! Se não questionam de forma verbal, questionam na prática com suas atitudes mesquinhas, burocráticas e omissas.

Exemplo disso é o que vem acontecendo com a Feira do Livro de São Luís. Criada com absoluto sucesso em 2007 — na gestão do então prefeito Tadeu Palácio — pelos livreiros de São Luís, através da Associação dos Livreiros do Estado do Maranhão (ALEM), a feira tornou-se obrigatória por força de uma lei municipal. Vejam isso: precisou de uma lei para forçar se promover a cultura de livros. Em outras palavras, se faz cultura por obrigação. Não por prazer. Como se o desenvolvimento de qualquer civilização não fosse possível somente por meio de livros. Como se a educação não dependesse de livros. Como se a própria literatura não vivesse de livros.

Morte da razão inteligente

Um povo que não gosta de ler, sem amor aos livros, não tem identidade. Talvez isso explique o fato de o brasileiro gostar de “coisa” importada americana: da arte cinematográfica à cultura da violência, tudo é importado de “modelos” americanos. E isso é uma agressão fatal à inteligência da civilização brasileiro.

Lamentavelmente, na literatura não se encontram incentivo e nem vocações transmitidas de pais a filhos, por exemplo. A identidade cultural do maranhense — diferente de outros tempos atrás — é solta nos labirintos das desculpas sem “pé” nem “cabeça”, nos “vales” e “esgotos” da internet e, finalmente, da preguiça intelectual de precedentes estranhos.

Nos tempos de Aluízio de Azevedo, Graça Aranha, Gonçalves Dias, Dagmar Desterro, Bandeira Tribizzi, José Sarney, Carlos Cunha e tantos outros, os jovens liam por diversão. Eles se reuniam para ler, escrever e trocarem ideias inteligentes. O resultado disso foi que se tornaram grandes homens e mulheres não só na arte e na literatura, mas, também, na política, nos negócios e na liderança social em diferentes níveis.

Hoje, a cultura da internet e outras tecnologias viciosas estão assassinando a paixão pela leitura, pela arte literária. O espírito criativo está declinando. A razão da cultura inteligente está morrendo bombardeada pelo “arsenal” de lixos eletrônicos, pornográficos e violentos. Os jovens não gostam de ler. Por isso, não sabem escrever. Nem falar. Não sabem administrar. Nem amar. Não respeitam limites. Nem o direito do outro. A consequência disso é uma sociedade burocrática ao extremo, burocracia esta que só serve para alimentar a corrupção, a fraude, a ganância, o poder de posse, a violência física, política, jurídica e social.

Que exemplos se podem mencionar de violência nesse sentido em que, aqui, está sendo colocado, na falta do hábito de leitura? O primeiro deles é a violência política: compra de voto, corrupção, burocracia, anseio por poder, CPIs, partidarismo, fraudes orçamentárias, má administração das políticas públicas, superfaturamento, apadrinhamento político e favorecimento econômico.

Depois, a violência educacional: febre de avaliação para tudo — o atual sistema de avaliação da educação brasileira está totalmente equivocado —, falta de investimento na educação, escolas públicas em péssimo estado de conservação, não investimento em pesquisa científica e acadêmica, desvios de recursos públicos, falta de capacitação profissional, ausência de interação escola-família, despreparo na política de relações humanas nas escolas em geral.

Um pouco mais adiante, depara-se com a violência jurídica: leis direcionadas para beneficiar bandidos, juízes mal preparados, promotores que se vendem, um judiciário que se presta a serviço de grupos políticos, medidas judiciais que favorecem a corrupção.

Com a escassez da cultura de livros, prolifera a cultura da ignorância, da estupidez, da violência física, psicológica e social. No Brasil, ainda se confundem política com corrupção, autoridade com estupidez, justiça com punição e vingança.

Escritores, leitura e política cultural do livro: tempo de recordação

 Chegou-se a uma geração de poucos leitores. A criatividade literária sofre com isso. “São Luís — dizem os intelectuais — precisa cultivar sua cultura de bons leitores. Precisa rever sua história cultural e preservar o que há de melhor na herança de nossa tradição literária”.

A equação da filosofia do descaso focado na arte literária é simples: Sem incentivo à produção literária, não haverá livros. Sem livros, não terão leitores. Sem leitores, é impossível de se ter escritores. E sem escritores, morrerá a literatura. E sem literatura.... acontecerá tudo o que sua mente for capaz de imaginar do ponto de vista catastrófico.

Prevalecerão, sem dúvida, a ignorância, a violência, a soberba, a insensatez, a insensibilidade humana. Acho que bem se pode aplicar à literatura maranhense o pensamento de Oscar Niemeyer: “Quando a vida se degrada, e a esperança foge do coração dos homens, só resta recordação”. Usando-se da boa razão que teve o gênio da arquitetura brasileira, o que nos resta é: recordar. Recordar de que um dia, lá pelo meio da história do passado, tivemos bons escritores e poetas. Recordar dos sonhos que um dia aqueles ancestrais da literatura sonharam para o futuro de nossa arte literária.

Recordar da bela poesia de Humberto de Campos. Da poética lírica de Gonçalves Dias. Do bom teatro de Arthur Azevedo. Da bela prosa de Graça Aranha. Da poesia meio clássica e meio moderna de Bandeira Tribuzzi. Do romancismo naturalista de Aluízio de Azevedo. Da literatura socioeducativa de Dagmar Desterro. Dos ensaios veementemente críticos de Erasmo Dias. Das crônicas cheias de bravura e inconformismo de Carlos Cunha. E, enfim, da mensagem literária que os jovens do passado tentaram escrever para nós do futuro que, agora, sofre.

Não espero, finalmente, que, com a leitura desta matéria, tentam corrigir o que os homens tornaram incorrigível. Seria, de minha parte, pretensão ingênua. Mas que os perversos que pegam o dinheiro público da literatura e usam para “outros” fins tenham consciência de que o que estão fazendo com a arte literária em São Luís é estupidez e maldade. Aliás, estupidez e maldade não são nenhum elemento estranho na política do Maranhão. Em matéria de produção literária e leitura, eles não têm nenhum interesse de investir naquilo que liberta a mente do povo para o esclarecimento da vida pública.