DECISÕES COLEGIADAS EM PRIMEIRA INSTÂNCIA NO PROCESSO PENAL E A INSEGURANÇA DOS MAGISTRADOS PERANTE O CRIME ORGANIZADO

Anna Carolina  Sousa Matos e Marcos Brás  
Cleopas Isaías  

SUMÁRIO: Introdução; 1. Instituição da figura do Juiz Sem Rosto e crimes praticados por organizações criminosas 2. Formação de colegiado em primeira instancia. 3. O Estado e a garantia da segurança dos cidadãos: pressão social e casuísmo na edição da lei. 4. Violação de princípios Constitucionais; Conclusão; Referências

RESUMO
Publicada em 25 de julho de 2012, a Lei nº 12.694 prevê a criação de colegiados na justiça de primeiro grau, mediante convocação expedida pelo juiz natural, na jurisdição criminal, em qualquer fase do processo – da decretação da prisão à mudança de regime de pena – sempre que se estiver relacionado a crimes praticados por organizações criminosas. Esta medida tem o objetivo de garantir a segurança dos magistrados de primeiro grau, dada a quantidade de ameaças e efetivas mortes que vêm acontecendo no Brasil. Provavelmente inspirada na luta do governo italiano contra a Máfia, a instituição da figura do “juiz sem rosto” é alvo de diversas críticas, principalmente no que concerne à real responsabilidade estatal de garantir segurança à sociedade e aos magistrados e relativização – para não dizer violação – de princípios processuais e constitucionais como o da identidade física do juiz e do juiz natural.

Palavras-chave: Juiz sem rosto. Decisões colegiadas em primeira instância. Organizações Criminosas. Identidade física do juiz. Lei nº 12.694/2012.


INTRODUÇÃO
A figura do “juiz sem rosto” foi criada pela Lei 12.694/2012, que tem como finalidade precípua garantir a proteção e segurança dos magistrados que atuam em processos ou procedimentos que tenham por objeto crimes praticados por organizações criminosas. De acordo com essa lei, se o juiz do caso se sentir ameaçado, poderão ser sorteados outros dois juízes para atuarem nesses julgamentos, havendo então formação de colegiados para a prática de atos específicos.
Embora já tenha sido sancionada, a referida lei continua a sofrer diversas criticas, sobretudo, as que alegam sua flagrante inconstitucionalidade devido à supressão de garantias constitucionais. Por ter sido apresentada em um momento de extrema pressão tanto social quanto dos magistrados, devido ao aumento do numero de assassinatos de juízes e ameaças sofridas pelos mesmos, questiona-se quais os verdadeiros motivos que ensejaram sua criação e se por ter sido editada sob forte pressão influiu para que diversas garantias constitucionais fossem atingidas diretamente.
Para desenvolver a pesquisa que nos levou a este paper, utilizamos o método descritivo, com pesquisa bibliográfica nas esparsas fontes cujo acesso nos foi possível, dado o sabor de novidade que envolve a temática em estudo.
Em um primeiro momento, faremos uma contextualização sobre o significado da instituição da figura do “juiz sem rosto”, termo cunhado no direito italiano em plena guerra contra a máfia e que seriam as organizações criminosas no Brasil e quais seriam os crimes praticados por elas. Adiante, faremos um esboço a respeito dos requisitos e características da instauração de colegiado de juízes em primeira instância no processo penal, segundo os dispositivos da Lei nº 12.694/2012.
Num terceiro estágio, teceremos algumas críticas de cunho social sobre qual seria o verdadeiro papel de garantidor da segurança dos cidadãos e, notadamente, dos magistrados de outras formas que não a simples edição de uma nova lei. Segurança pública e institucional se faz com uma verdadeira política de Estado, não com uma “canetada”. Canetada esta que, muito provavelmente, se deu em resposta a uma pressão popular e dos magistrados de primeiro grau de jurisdição, principalmente. Nós, estudiosos do Direito, sabemos o quão delicada é a adoção de medidas casuísticas para solucionar problemas permanentes e estruturais. Por fim, analisaremos do ponto de vista principiológico as implicações advindas com a Lei nº 12.694/2012.

1. INSTITUIÇÃO DA FIGURA DO JUIZ SEM ROSTO E CRIMES PRATICADOS POR ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS
A instituição da figura do chamado “juiz sem rosto” foi feita pela Lei 12.694/2012, visando reforçar a segurança de juízes e promotores que atuam especificamente com organizações criminosas. De acordo com a referida lei, caso o juiz se sinta ameaçado em julgamentos de crimes praticados por organizações criminosas, poderá formar-se um colegiado, ainda que em primeira instância, para a prática de determinados atos processuais, o que em tese ampliaria os limites da segurança dos mesmos e resguardaria sua integridade física, pois quando um único juiz toma essas decisões acaba ficando muito exposto, podendo até mesmo sofrer represálias.
Acontece que, as decisões do colegiado, ainda que devidamente fundamentadas e firmadas, sem exceção, por todos os seus integrantes, serão publicadas sem qualquer referência a voto divergente de qualquer membro, por isso a definição “juiz sem rosto”., pois esconde-se decisões de magistrados. Sendo assim, o colegiado decide, praticando algum dos atos específicos previstos nos artigo 1o, entretanto, o agente não saberá quem votou de maneira divergente nem se algum dos juízes deu uma decisão diferente favorável a ele, o que poderá prejudicar sua defesa, já que o teor desse voto não será sequer revelado ou publicado.
Medidas como reforçar a segurança nos tribunais e Ministério Público com detector de metais e seguranças especializados, bem como a utilização de placas especiais que impeçam a identificação de veículos oficiais que transportem juízes e promotores, parecem modos eficazes e perfeitamente possíveis de proteger a integridade física dos que atuam no combate a organizações criminosas, entretanto, ferir princípios constitucionais para atingir esse fim não. É certo que quando um único magistrado toma decisão prejudicial aos integrantes de organizações criminosas, o mesmo poderá ficar exposto e ser considerado por eles como o responsável por tal gravame, porem, deve-se ampliar limites da segurança dos juízes e promotores sem que haja supressão de garantias constitucionais.
A Lei 12.694/2012 tratou ainda de definir, de maneira inédita no Ordenamento Jurídico brasileiro, o conceito de organizações criminosas, assim dispondo:
Art. 2º Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional.

    Dessa definição, extraímos que organização criminosa, diferentemente da quadrilha ou bando que exige a associação de no mínimo quatro pessoas, poderá ser caracterizada quando associarem-se três ou mais pessoas, não sendo obrigatória a finalidade de obter vantagem apenas econômica, pois ela pode ser de qualquer natureza, não necessariamente de lucro.
 A lei também exige que sejam estruturalmente ordenadas e caracterizadas pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, ou seja, deverá haver certa organização e hierarquia entre os membros, bem como estabilidade ou permanência. Por fim, só será caracterizada se visar a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a quatro anos ou que sejam de caráter transnacional, limitando o alcance do dispositivo ao definir quais os delitos, pois não será configurada se três ou mais pessoas associaram-se para a prática de qualquer outro crime com pena inferior a quatro anos ou que não tenha caráter transnacional (limite quantitativo apenas na primeira parte).
    Importante ressaltar que organização criminosa não se trata de um tipo penal, uma vez que a lei não o define como tal nem há prévia cominação legal, não sendo, portanto, um crime e sim uma modalidade de autoria de crime.  O conceito jurídico é importante para produzir efeitos processuais, investigativos, protetivos e não para fins de tipificação, além disso, serve para dar vida a Lei 12.694/2012, de modo que apenas depois de saber o que organização criminosa significa é que podemos aplicar a referida lei, que altera procedimentos de julgamento para os casos envolvendo-as.

2. FORMAÇÃO DE COLEGIADO EM PRIMEIRA INSTÂNCIA
A Lei nº 12.694 estabeleceu que o julgamento colegiado em primeiro grau de instrução ocorrerá em processos ou procedimentos relativos a crimes praticados por organizações criminosas. O juiz da causa poderá - ou seja, trata-se de uma faculdade do magistrado – instaurar, por meio de decisão fundamentada, um colegiado de três juízes, sendo ele e mais dois juízes escolhidos por sorteio eletrônico dentre aqueles de competência criminal em exercício no primeiro grau de jurisdição para a prática de qualquer ato do processo, desde que, é óbvio, este seja relacionado a crimes praticados por organizações criminosas.
Interessante perceber que a lei que criou o instituto em análise foi reticente quanto à possibilidade de o colegiado ser instaurado em qualquer fase do processo penal: antes da denúncia, depois de iniciada a ação penal e até mesmo na fase de execução. Esta permissão podemos aduzir da leitura do art. 1º do diploma legal em estudo e seus incisos:
art. 1º Em processos ou procedimentos que tenham por objeto crimes praticados por organizações criminosas, o juiz poderá decidir pela formação de colegiado para a prática de qualquer ato processual, especialmente:
I - decretação de prisão ou de medidas assecuratórias;
II - concessão de liberdade provisória ou revogação de prisão;
III - sentença;
IV - progressão ou regressão de regime de cumprimento de pena;
V - concessão de liberdade condicional;
VI - transferência de preso para estabelecimento prisional de segurança máxima; e
VII - inclusão do preso no regime disciplinar diferenciado.
Percebamos que o caput do artigo citado utiliza a palavra “especialmente”, o que deixa claro que não se trata de um rol taxativo. Além disso, as decisões exemplificadas permeiam todas as competências judiciais do sistema processual penal, desde a decretação da prisão até a execução penal, como a decisão que impõe o regime disciplinar diferenciado (RDD). O colegiado poderá, então, praticar qualquer ato nos processos ou procedimentos em que atuar, observado o ato para o qual foi convocado, que produz efeito vinculante sobre sua competência, conforme art 1º, §3º.
Quando falamos em decisão fundamentada do juiz que houver instaurado o colegiado, entendemos que só há dois motivos que o juiz tem obrigação de demonstrar. O primeiro seria o de demonstrar que se trata de um processo em que se instrui um crime praticado ou supostamente praticado por organização criminosa, como consta da ementa e art. 1º da Lei nº 12.694. O outro fundamento a ser exposto pelo juiz no ato convocatório é o que sustenta o risco à sua integridade física (art. 1º, §1º).
Entretanto, a exigência de decisão fundamentada não parece apontar para o mesmo rigor que se espera de uma sentença, por exemplo. Estamos com o professor Márcio André Lopes Cavalcante, (2012, p. 3) que diz:
não se pode impor ao magistrado que apresente fatos cabais ou efetivas provas de que há risco à sua integridade física, considerando que ainda não se está julgando os agentes envolvidos na suposta organização criminosa. Ex: se o processo refere-se a um grupo de extermínio acusado da prática de vários homicídios, inclusive de autoridades, ainda que não tenha havido uma ameaça real à integridade física do magistrado, este, diante das circunstâncias que envolvem tais investigados/acusados, poderá concluir que há risco pessoal na condução singular do processo e, então, decidir pela instauração do colegiado.
Finalizando este breve esboço a respeito dos requisitos e características do julgamento colegiado de primeira instância no processo penal, ousaremos tecer algumas críticas de cunho social a respeito desta inovação dentro do direito processual brasileiro.

3. O ESTADO E A GARANTIA DA SEGURANÇA DOS CIDADÃOS: PRESSÃO SOCIAL E CASUÍSMO NA EDIÇÃO DA LEI
A segurança dos magistrados é assunto de extrema relevância em qualquer ordem jurídica. É impossível exigir do magistrado um julgamento livre e independente se ele tiver dúvidas no que se refere à sua segurança e de sua família. O magistrado, aqui falando especialmente daqueles com jurisdição criminal, tem o dever de reprimir a criminalidade, não podendo ser uma vítima dela.
A juíza carioca Patrícia Acioli foi assassinada por homens encapuzados no dia 12 de agosto de 2011. Foram efetuados ao menos 21 disparos, segundo a polícia. A magistrada tinha várias decisões judiciais contra policiais militares em seu currículo. Então titular da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo-RJ, foi responsável por julgar casos de quadrilhas de transporte alternativo e jogo do bicho, por exemplo . Patrícia tinha 47 anos. Pouco menos de um ano após a morte de Patrícia, que ganhou as páginas e manchetes dos noticiários, foi publicada a Lei nº 12.694, de 24 de julho de 2012, sobre a qual estamos nos ocupando.
A Constituição Federal de 1988 deu ampla garantia de segurança a todos os cidadãos, sendo esta a única garantia que se repete tanto no rol dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos (art. 5º), quanto dos Direitos Sociais (art. 6º) e a Segurança Pública, que ganhou um capítulo especial (arts. 144 e segs), deixa claro que esta é um dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, exercida para a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Para o alcance deste objetivo, a CF define seus órgãos essenciais: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
Diante do respaldo constitucional e do aparato estatal disponível, devemos concordar com o professor Luis Flávio Sappori (2007, p. 109):
planejamento, monitoramento, avaliação de resultados, gasto eficiente dos recursos financeiros não têm sido procedimentos usuais nas ações de combate à criminalidade, seja no executivo federal, seja nos executivos estaduais. Desse ponto de vista, a história das políticas de segurança pública na sociedade brasileira nas duas últimas décadas se resume a uma série de intervenções governamentais espasmódicas, meramente reativas, voltadas para a solução imediata de crises que assolam a ordem pública.
Em nosso entendimento, o que há no Brasil é uma fragilidade dos poderes Legislativo e Executivo. O primeiro por ceder incontestemente às pressões populares quase sempre balizadas por uma cobertura sazonal da imprensa acerca de determinado caso ou fato que gere comoção nacional. Dada essa impotência, toma-se um caminho “mais fácil” e popular que é a edição de leis que preveem mais crimes, mais penas, mais presídios, mais processo penal, mais demora na prestação jurisdicional.
Por outro lado, no que concordamos em gênero, número e grau com Sappori é que o planejamento, monitoramento, avaliação de resultados e gasto eficiente dos recursos nunca parece ter sido uma prática dentro do Poder Executivo, especialmente no que concerne ao combate à criminalidade. Uma política pública eficaz, em nosso entendimento, tornaria desnecessária a relativização – para não dizer violação – a princípios constitucionalmente assegurados, o que discutiremos no momento oportuno deste paper.
Devemos reconhecer, contudo, que mesmo tardiamente, o governo federal deu os primeiros passos no caminho da instituição de uma política de Estado de segurança pública. No ano 2000, foi criado o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP), e no ano de 2007, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), prevendo, em linhas gerais, o que prelecionou Jorge Bengochea e outros (BENGOCHEA, et al., 2004, p. 120):
a segurança pública é um processo sistêmico e otimizado que envolve um conjunto de ações públicas e comunitárias, visando assegurar a proteção do indivíduo e da coletividade e a ampliação da justiça da punição, recuperação e tratamento dos que violam a lei, garantindo direitos e cidadania a todos. Um processo sistêmico porque envolve, num mesmo cenário, um conjunto de conhecimentos e ferramentas de competência dos poderes constituídos e ao alcance da comunidade organizada, interagindo e compartilhando visão, compromissos e objetivos comuns; e otimizado porque depende de decisões rápidas e de resultados imediatos.
Enfrentando a questão da pressão social para a tomada de atitude dos poderes públicos e retomamos o raciocínio sobre a participação da mídia neste aspecto, devemos dizer que há grande parcela de culpa na participação da imprensa na pressão social exercida no sentido errado. Como disse Luiz Flávio Gomes recentemente: “Há anos estamos fazendo a mesma coisa para combatê-la [a violência]: mais leis, endurecimento das penas, mais presídios, mais prisões etc. Puro populismo midiático e político. Pior: o povo, em geral, continua acreditando nisso!”.
Há, dentro do estudo das teorias sobre a comunicação de massa, um conceito chamado agenda-setting, ou teoria do agendamento, segundo o qual a mídia é capaz de pautar as discussões da sociedade da forma como achar mais conveniente. Não se trata de persuasão – uma outra discussão, diga-se -, mas do poder de incluir ou excluir um assunto das discussões da sociedade. Vejamos as palavras de Shaw (1979, p. 96):
em consequência da ação dos jornais, da televisão e dos outros meios de informação, o público é ciente ou ignora, dá atenção ou descuida, enfatiza ou negligencia elementos específicos dos cenários públicos. As pessoas tendem a incluir ou excluir dos próprios conhecimentos o que a mídia inclui ou exclui do próprio conteúdo, Além disso, o público tende a conferir ao que ele inclui uma importância que reflete de perto a ênfase atribuída pelos meios de comunicação de massa aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas.
Este conceito clássico das Teorias da Comunicação explica a preocupação dos juristas com a atuação, em especial, do legislador com relação ao tema da segurança pública e dos magistrados e o papel de formadora de opinião que os mass media representam. Preocupação esta que se reflete no precedente que se abriu para a relativização de princípios processuais constitucionais, de que trataremos a partir de agora.
4. VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS
Como já mencionado, embora já tenha sido sancionada, a referida lei continua a sofrer diversas críticas, sobretudo, as que alegam sua flagrante inconstitucionalidade devido à supressão de garantias constitucionais. Entendemos que a Lei 12.694/2012 fere alguns princípios processuais penais, dentre eles os que seguem:
O princípio da ampla defesa, encontrado no artigo 5º, inciso LV da Constituicao Federal, assegura aos “litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. De acordo com Alexandre de Moraes:
Por ampla defesa entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que possibilite trazer ao processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário, enquanto o contraditório é própria exteriorização da ampla defesa, impondo a condução dialética (par conditio), pois a todo ato produzido pela acusação caberá igual direito da defesa de opor-se-lhe ou de dar-lhe a versão que melhor lhe apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa daquela feita pelo autor (Moraes, 2006, p. 93).
    Na referida lei, o sigilo do voto divergente fere o principio da ampla defesa, uma vez que caso esse voto seja pela absolvição do condenado, por exemplo, o mesmo poderá ser importante para sua defesa, que assim sequer saberá quem votou de maneira diferente. Ressalta-se que no voto do juiz que decidiu em desacordo com os demais pode haver algum elemento importante que se o acusado prejudicado tivesse acesso, poderia utilizar para fundamentar um eventual recurso, baseando-se justamente nos argumentos utilizados por esse voto vencido. Para o professor da USP Perpaolo Bottini, entrevistado pela revista Consultor Jurídico,  a medida viola o direito do réu e contraria a política de transparência adotada pelo governo federal com a Lei de Acesso à Informação, pois “o réu tem o direito de saber quais os argumentos expostos, seu teor, e os fundamentos das decisões, em especial daquela que divergiu dos demais”.
O princípio da identidade física do juiz, presente no artigo 399, parágrafo 2, do Código de Processo Penal, garante que “o juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença”. Baseia-se no fato de o provimento judicial final dever demonstrar um juízo de certeza cercada das maiores cautelas, quando condenatória a sentença, valorizando-se, portanto, o livre convencimento motivado e a persuasão da convicção do magistrado (OLIVEIRA, 2009, p. 292). No caso da lei do “juiz sem rosto”, dois magistrados integrarão o colegiado e poderão determinar a sentença sem terem participado de fases anteriores do processo, como a produção de provas, por exemplo, considerada por nós a mais importante, afrontando assim o princípio supracitado.
O princípio do juiz natural, proclamado nos incisos XXXVII e LIII do art. 5º da Constituição Federal, proíbe a criação de Tribunais ou juízos de exceção, bem como exige respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência, para que não seja afetada a independência e a imparcialidade dos juízes. Entendemos ser o juiz natural imprescindível à obtenção de uma prestação jurisdicional independente e imparcial, entretanto, encontra-se violado ao permitir-se a possibilidade da ulterior instituição de colegiados para julgamento de organizações criminosas em primeiro grau. Para não ser inconstitucional, o colegiado deveria ser estabelecido previamente ao fato criminoso e não casuisticamente pela discricionariedade do julgador, uma vez que a competência de um juiz tem de ser fixada em lei anterior ao fato.
Por fim, o principio da publicidade, presente no art. 5º, inc. LX CF que dispõe que “a lei só poderá restringira a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”. Aceitar a Lei 12.694/2012 afetaria o direito à informação, violando assim tal principio, uma vez que informações do processo são negadas a uma das partes, criando também decisões ocultas, que não são expostas ou juntadas aos autos.
5. CONCLUSÃO
No curso do presente paper, buscamos analisar os dispositivos da Lei 12.694/2012, sobretudo, a possibilidade de formação de colegiado na primeira instância do processo penal, confrontando-os por fim com os princípios processuais da ampla defesa, publicidade, juiz natural e da identidade física do juiz.
Entendemos que ocorreu um casuísmo na edição da referida lei, pois impulsionado pelo clamor dos magistrados e da sociedade em geral, que buscavam uma resposta eficaz e célere aos inúmeros casos de violência, o Estado, por intermédio do Poder Legislativo, editou a lei do “juiz sem rosto” de modo emergencial. A segurança dos magistrados, sem dúvida, é assunto de extrema relevância em qualquer ordem jurídica, entretanto, a deficiência do Estado em seu papel de garantidor da segurança pública e da proteção de seus cidadãos não pode justificar a violação de garantias constitucionais.
 Em nosso entendimento, uma política pública eficaz tornaria desnecessária a relativização de princípios constitucionalmente assegurados. Reduzir o risco que os magistrados que julgam casos que envolvem organizações criminosas é bastante plausível, porém, as medidas utilizadas devem ser compatíveis com todo o ordenamento jurídico brasileiro.










REFERÊNCIAS

BENGOCHEA, J. L. et al. A transição de uma polícia de controle para uma polícia cidadã. Revista São Paulo em Perspectiva, v. 18, n. 1, p. 120, 2004.  


BEZERRA, Elton. Lei do “juiz sem rosto” viola garantias constitucionais. Disponível: < http://www.conjur.com.br/2012-jul-25/lei-juiz-rosto-viola-garantias-constitucionais-dizem-advogados>.  Acesso em 05 nov. 2012.


CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários à Lei 12.694/2012 (Julgamento colegiado em primeiro grau de crimes praticados por organizações criminosas). Atualidades do Direito. São Paulo. Disponível em: <http://staticsp.atualidadesdodireito.com.br/lfg/files/2012/08/Lei-12.694-Julgamento-colegiado-em-crimes-praticados-por-organiza%C3%A7%C3%B5es-criminosas.pdf>. Acesso em 7nov2012.


GOMES, Luiz Flávio. Política brasileira errada não reduz violência. Jus Navigandi, Teresina, ano    17, n.3374, 26 set. 2012.    Disponível em:
 <http://jus.com.br/revista/texto/22685>.    Acesso em: 7 nov. 2012.


OLIVEIRA, Eugênio de. Curso de Processo Penal. 11 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

PACELLI, Eugenio. Curso de Processo Penal. São Paulo, Atlas, 16 ed, 2012.


SAPORI, L. F. Segurança pública no Brasil: desafios e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 109, 2007.


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