DECISÕES COLEGIADAS EM PRIMEIRA INSTÂNCIA E SUAS SENTENÇAS NO ESCURO:

Incursão Principiológica Na Lei nº 12.694/2012[1]

 

Camila Maria Mont’alverne Frota e Thales Brandão[2]

Cleopas Isaías Santos [3]

 

Sumário: Introdução; 1- A Lei 12.694/12; 2 - Colegiado em primeira instância e suas sentenças lato sensu; 3- Princípios Constitucionais do Processo Penal digeridos pela Lei 12.694/12; 4- Uma nova concepção processualística penal?; Considerações Finais; Referências.

 

RESUMO

 

O presente trabalho acadêmico possui o objetivo de tentar extrair a essência estrutural dada pelo legislador à Lei 12.694/12. Em termos panorâmicos, investigar-se-á se a lei efetivamente garante maior segurança ao magistrado pátrio, ao dar-lhe a oportunidade de compor um órgão colegiado para tomada de decisões (lato sensu) “às escuras”, no transcorrer processual. Assim posto, este paper esmiuçará, igualmente, a eventual violação, esquartejamento de garantias constitucionais ocasionadas pela mencionada lei, apontando a pujança dos princípios constitucionais penais, tais como princípios da publicidade, motivação das decisões judiciais, do juiz natural e da identidade física do juiz. Em toada similar, por sorte, este artigo se ocupará de explorar se o legislador plantou a semente de uma nova processualística penal.

Palavras-chave: Organização Criminosa. Órgãos Colegiados. Princípios Constitucionais Penais. Juiz Sem Rosto.

INTRODUÇÃO

 

O surgimento de uma norma cambaleante, não tão equacionada ou até mesmo inovadora, em um Estado delineado, desenhado juridicademente, como se posta nestes tempos o Brasil, causa espécie como um todo à sociedade com a sua existência e, por conseguinte, validade. Não ocorrera diferente à época do nascimento da Lei 12.694/12., A despeito de episódios lamentáveis que causaram assombro à sociedade, demonstrando que o crime organizado não vê limites para suas ações, a referida lei foi editada.

A vitalização institucional supostamente dada pela lei seria de guarnecer o aparato Judiciário e conferir maior eficácia às suas decisões. Ambicioso, portanto. É assim que tal lei, não obstante possuir roupagem eminentemente inovadora, vanguardista, diga-se, por tentar derruir crimes praticados por facções criminosas, já é amplamente discutida pela comunidade jurídica, fazendo abalar sua eficácia, logo pós sua vigência.

Muito embora se deva admitir que o bojo normativo da Lei carregue consigo conteúdo não tão constitucionalmente balanceado pelo legislador, respingando, aqui e acolá, no frontal ataque aos princípios da publicidade, da motivação das decisões judiciais, do juiz natural e da identidade física do juiz, esse é um tema que há de ser discutido sistematicamente, eventualmente até perquirindo sua (in) constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

Por assim dizer e não por outro modo, a doutrina majoritária vem lançando olhos vacilantes sobre a Lei 12.694/12, ao rogar, genuinamente, sua inconstitucionalidade. É nessa esteira de incertezas, portanto, que o paper passará a navegar: se formação de órgão colegiado em primeira instância para julgar crimes praticados por organização criminosa, e a possibilidade de reuniões sigilosas de tal colegiado, proferindo decisões não singularmente identificáveis, são inconstitucionais e ferem, assim, os princípios acima mencionados.

Por toda sorte, teremos a oportunidade, nesse trabalho acadêmico, através de uma abordagem dedutiva, uma pesquisa exploratória e explicativa, de analisar a lei do “juiz sem rosto”, tratando-a, apurando-a e relacionando-a, como referencial teórico, das garantias individuais outorgadas pela Lei Fundamental do Estado de 88 ao acusado no processo penal.

Ao explicitar o tema nesse início, vê-se como irretocável, para que se chegue a posicionamento fecundo na conclusão, abordagem metodológica da área de política penal nos próximos capítulos. Mas não só isso. Investigar-se-á também as medidas protetivas aos magistrados, incutida pela Lei, possibilitando-lhes tomar decisões às escondidas, valendo-se das cortinas da escuridão, e não dando publicidade e autoria ampliativa aos atos processuais no processo penal. Problematiza-se, assim, se são mais importantes para a atual conjuntura processual penal na qual vivemos. Afora isso, iniciaremos o próximo o capítulo do trabalho, versando sobre as inovações da Lei.

 

 

1. A LEI 12.694/12

No dia 24 de julho de 2012 foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff a Lei nº 12.694, cujo texto, como afirma sua própria ementa, dispões sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas. Ou seja, seu conteúdo, aprovado pelo Congresso Nacional, determina que todos os tribunais do País e o Ministério Público devem adotar, com vacatio legis de 90 dias, entrando em vigor dia 23/09/2012, algumas medidas de segurança a fim de garantir o andamento e o julgamento de processos envolvendo organizações criminosas. Para tanto, além disso, juízes e membros do MP e seus parentes poderão receber proteção especial, desde que considerados em ameaça. Essa proteção especial deverá partir da Polícia Judiciária, dos órgãos de segurança institucional e de agentes policiais.

A nova lei já vinha sendo amplamente discutida nos anais do Congresso Nacional e passou a ganhar evidência logo após o assassinato da juíza Patrícia Acioli, em Niterói, Rio de Janeiro (EXTRA, 2011). A juíza investigava o crime organizado local e foi morta por dois homens que, em sua direção, dispararam mais de 16 tiros. O fato foi considerado um crime de atentado à democracia pelos magistrados e, por conta disso, ganhou repercussão.

Não ficando à mercê dos fatos, a lei visa à segurança aos magistrados, aos membros do Ministério Público e seus parentes em ameaça, determinando-se que os juízes responsáveis por julgar casos envolvendo organizações criminosas possam revogar prisão, bem como transferir suspeitos para penitenciárias de segurança máxima, chegando a incluí-los no regime disciplinar diferenciado, e determinar a progressão ou regressão de regime de cumprimento de pena e entre outros atos.

Ademais, a lei não se limitou apenas à proteção das pessoas físicas aqui citadas, mas também prezou pela segurança dos prédios da Justiça, caso estejam sob ameaça devido ao processo que constar em julgamento, como prevê o art. 3º desta Lei. Além disso, o art. 6º, em seu §7º, determina que os veículos utilizados em ações investigativas e julgamento dos casos de organizações criminosas poderão ter suas placas diferenciadas, de modo que impeça a identificação dos usuários. Com isso, a principiologia normativa da lei é munir o aparato judiciário com instrumentos processuais e administrativos de proteção para enfrentar, diretamente, com presteza e justiça, a articulada rede de criminosos que domina e amedronta a sociedade e país.

Superada a finalidade ampliativa – social, jurídica e política - da lei, e passando-se à análise de composição plúrima em primeira instância, impõe destacar que a ocorrência dos atos processuais de competência dos magistrados que compõe tal órgão, dependerá, previamente, de uma opção do magistrado responsável para que formule ou não um colegiado, tendo, também anteriormente, indicado ao órgão correcional de sua jurisdição as razões e devidas circunstâncias que o levam a tanto. É com isso em mente que, relativamente à forma de estruturação deste colegiado, passamos a averiguá-lo no seguinte capítulo.

2. COLEGIADO EM PRIMEIRA INSTÂNCIA E SUAS SENTENÇAS LATO SENSU

O elemento prefacialmente dado à Lei 12.694/12, disposto em seu art. 1º, é altamente revolucionário no cenário processual brasileiro. Com o advento da lei, autorizou-se ao magistrado, após apontar as razões que supervenientemente acarretariam risco à sua integridade física, através de decisão fundamentada, em processos ou procedimentos cujos crimes sejam praticados por organizações criminosas, que opte, escolha pela instauração, já em primeira instância, da formação de colegiado para a prática de qualquer ato processual, quais sejam: a) decretação de prisão ou de medidas assecuratórias; b) concessão de liberdade provisória ou revogação de prisão; c) sentença; d) progressão ou regressão de regime de cumprimento de pena; e) concessão de liberdade condicional; f) transferência de preso para estabelecimento prisional de segurança máxima; e, g) inclusão do preso no regime disciplinar diferenciado.

Em primeiro plano, depreende-se do referido artigo o seu caráter meramente exemplificativo, eis que o legislador adotou a terminologia “especialmente” e não exclusivamente, por exemplo. Como se vê, portanto, o legislador pátrio foi tão firme e ousado que outorgou a decisão de qualquer ato processual pelo colegiado convocado. Ou seja, deu-lhe a sustentação lato sensu de sentença. Desta feita, a prerrogativa do art. 1º da Lei só poderia invocar inúmeras discussões. A sorte fora tamanha que grande parte da doutrina já assenta da insurgência de um novo instituto, anômalo, aliás, na magistratura brasileira: a figura do “juiz sem rosto”.

Nesse diapasão, refuta-se sobejamente tal argumentação. A instauração do colegiado fora colocada como uma “faculdade” ao juiz do processo, reduzindo, pois, as possíveis objeções das perigosíssimas organizações criminosas contra a máquina judiciária. Tal como a criminalidade se aperfeiçoou nos últimos anos em nosso país, a manifestação da Lei 12.694/12 tem portentosa razão de ser, ao tentar aperfeiçoar, robustecer também nosso Poder Judiciário. Aliás, enfatiza-se também a verdade que o legislador atendeu à Recomendação nº 3 ofertada pelo CNJ. Destaca-se:

1. Ao Conselho da Justiça Federal e aos Tribunais Regionais Federais, no que respeita ao Sistema Judiciário Federal, bem como aos Tribunais de Justiça dos Estados, a especialização de varas criminais, com competência exclusiva ou concorrente, para processar e julgar delitos praticados por organizações criminosas.

2. Para os fins desta recomendação, sugere-se:

(...) e que as varas especializadas em crime organizado contem com mais de um juiz, bem como com estrutura material e de pessoal especializado compatível com sua atividade, garantindo-se aos magistrados e servidores segurança e proteção para o exercício de suas atribuições.

Esfacelando-se mais o tema, cumpre elucidar que a lei não prevê tipos penais, tampouco regras de natureza processual penal. Equivoca-se quem invoca tanto e quanto. Cabe assinalar, que a lei se revela apenas a racionalizar e organizar a prestação jurisdicional, posto o desgaste e exposição aos quais os magistrados são submetidos durante o seu exercício. Na verdade, é de sabença geral que, por si só, as causam que cuidam de organização criminosa são de alta complexidade. Nesse sentido, uma eventual composição de órgão colegiado, instaurada antes de proposta a denúncia, durante a ação penal ou mesmo na fase de execução, e alargando-se tanto nos processos de competência da Justiça Federal como da Justiça Estadual, representa um marco nas garantias orgânicas da magistratura (CAVALCANTE, 2012), balizando suas funções contra ameaças externas e internas de facções criminosas.

Ante a relevância do tema, há várias proposições justificada sob o pálio de que um julgamento de sentenças lato sensu, no primeiro grau de jurisdição, dessa natureza flamejante que é a criminalidade organizada, seria uma pobre e inconstante adoção do legislador pátrio. Daí, inversamente, parte da doutrina tenta derruir tal argumentação, aduzindo que órgão colegiado em primeira instância é novidade infundada em nossa legislação.

Importantíssimo relembrá-los, todavia, que não há novidade nesta formulação organizacional, vez que o próprio tribunal do júri (art. 5º XXXVIII) é exemplo de órgão colegiado na primeira esfera jurisdicional. Com efeito, nada mais vislumbrou o legislador senão permitir ao juiz se “imiscuir” – na semântica positiva da palavra- das retaliações individuais por si sofridas, para, na verdade, hastear a eficácia de suas decisões judiciais no combate ao crime organizado. Aliás, esse entendimento foi recentemente perfilhado, na decisão da Corte de Superposição pátria, que autorizou a criação de varas para combate ao crime organizado no 1º grau judicante. (STF - ADI 4414/AL, rel. Min. Luiz Fux, proposta contra a Lei Estadual nº 6.806/2007, de Alagoas).

O perfil peculiar à estrutura de composição de um órgão colegiado é plenamente válido, porquanto não exista qualquer norma na Carta Republicana de 88 que, sequer implicitamente, reserve ao juiz monocrático o exercício da jurisdição em primeiro grau. A título de exemplo, os artigos 106 e 109 da Lei Fundamental do Estado de 88 fazem alusão aos "juízes federais" no plural. É por essa razão que a medida irrigada no art. 1º da lei 12.694/12 não confronta contra qualquer direito individual do acusado ou condenado (CAVALCANTE, 2012).

Por ora, nessa esteira de afirmações, a discussão começa a se tornar acalorada, por extrair-se o choque de interesses constitucionais de rica grandeza: de um lado, as garantias constitucionais do acusado: a ampla defesa, publicidade fundamentada, juiz natural; do outro , a rantia que se deve oferecer aos magistrados a fim de que possam atuar com altivez e independência. Para tanto, dedicaremos o próximo capítulo a este embate constitucional.

3. HÁ PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL DIGERIDOS PELA LEI 12694/12?

É a partir do nosso texto constitucional, composto por normas básicas e princípios criados a fim de conduzir a atuação jurisdicional em face do direito punitivo, que o processo criminal encontra seus fundamentos. A Lei 12.694/12 recebeu diversas críticas, as quais se direcionavam aos princípios violados no momento de sua atuação e vigência, abrindo margem, dessa forma, para diversas discussões acerca de sua constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Os princípios supostamente violados são o princípio do juiz natural, da identidade física do juiz, do devido processo legal, da motivação das decisões judiciais, da ampla defesa e da publicidade.

Como já explicitado, para que ocorra um dos atos supracitados de direito do magistrado, será de sua preferência e discricionariedade a criação de um órgão colegiado formado por ele e mais dois juízes, os quais também terão competência para julgar o caso do processo em questão, sendo os demais membros do colegiado escolhidos via sorteio eletrônico. Entretanto, grande parte da doutrina vem defendendo a posição de que o simples fato de criação desses órgãos colegiados, visando à atuação exclusiva em atos isolados do processo, acaba ferindo os princípios do juiz natural e da identidade física do juiz.

Segundo a própria Constituição Federal, em seu art. 5º, LIII, o princípio do Juiz Natural defende a tese de que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.”. Tal princípio surgiu com o objetivo de abolir do nosso país a figura dos tribunais de exceção, e vem a impedir que o Estado direcione seu julgamento, abrindo mão da imparcialidade. Mais do que um direito subjetivo da parte, o principio do juiz natural qualifica-se como garantia da própria jurisdição. No momento em que há provocação do Judiciário e é instaurada a lide, quem deverá atuar na prestação jurisdicional são juízes, órgãos e tribunais já previstos em lei. É de absoluto direito de ambas as partes que seja realizado um julgamento justo, imparcial e igualitário, como tutela a própria Constituição Federal, não importando o grau de jurisdição de que se trata. Para Nelson Nery Junior, em citação de Pedro Lenza (2000)

A garantia do juiz natural é tridimensional. Significa que: 1) não haverá juízo ou tribunal ad hoc, isto é, tribunal de exceção; 2)todos têm o direito de submeter-se a julgamento (civil ou penal) por juiz competente, pré-constituído na forma da lei; 3) o juiz competente tem de ser imparcial.

Já o princípio da identidade física do juiz está vinculado por grande parte da jurisprudência ao que é previsto nos art. 399, §2º do Código de Processo Penal, e art. 132 do Código de Processo Civil com o seguinte texto:

Art. 399: Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado, de seu defensor, do Ministério Público e, se for o caso, do querelante e do assistente.
§ 1º O acusado preso será requisitado para comparecer ao interrogatório, devendo o poder público providenciar sua apresentação.

§ 2º O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença. (grifo nosso.)

 Art. 132: O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor.
Parágrafo único. Em qualquer hipótese, o juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas.

Ou seja, aquele magistrado que presidiu ou concluiu a instrução probatória estará, automaticamente, vinculado ao processo, devendo ser, dessa forma, o prolator da sentença, tendo em vista o fato de que, já que foi ele quem colheu as provas, é quem está em melhores condições para analisar a questão. E, em todas as vezes que se fizer acontecer o que é previsto pelo art. 132 do CPC, a instrução há de ser reproduzida através de nova audiência de instrução e julgamento.

Com relação ao devido processo legal, o art. 5º, LIV, CF expressa: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Em contribuição a este inciso, o inciso LV ressalta o princípio da ampla defesa: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. A partir do que foi expresso, conclui-se que o devido processo legal é uma reunião de garantias e princípios, as quais visam assegurar os direitos fundamentais do indivíduo ao longo do processo, de modo que se permita a justa composição da lide, a qual engloba o direito de defesa, o direito de ser ouvido e de ser informado de todos os atos do processo. É a partir desse princípio que os demais são oriundos

José Frederico Marques, jurista, professor, leciona que:

O exercício da jurisdição deve operar-se através do devido processo legal, garantindo-se ao litigante julgamento imparcial, em procedimento regular onde haja plena segurança para o exercício da ação e do direito de defesa. É que de nada adiantaria garantir-se a tutela jurisdicional e o direito de ação sem um procedimento adequado em que o Judiciário possa atuar imparcialmente, dando a cada um o que é seu. Se a lei permitisse ao Juiz compor o litígio inquisitorialmente, sem a participação dos interessados, não haveria tutela jurisdicional, e sim atuação unilateral do Estado para impor sua vontade aos interessados. Juiz e jurisdição, para atuarem, pressupõem sempre o devido processo legal; e, por imposição expressa e categórica do art. 5.º, LIV, da Constituição, a qual solenemente proclama que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. (1990, p. 80-81).

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, cabe a ressalva ao princípio supracitado da ampla defesa, também expresso no art. 5º da Constituição Federal, o qual confere ao indivíduo integrante de qualquer uma das partes do processo a utilização dos meios permitidos em direito e comprovadamente necessários (quando ilegais, dispensando-se a necessidade probatória em casos de material legal) a fim de provarem os fatos alegados.

Um dos mais importantes princípios constitucionais garantidos ao indivíduo trata-se do princípio da Publicidade. No seio dos arts. 5. L e 93 IX da Carta Magna de 88 tem-se o supedâneo do principio da publicidade no campo processual. Diz-se, então que tal princípio funciona como o garantidor da transparência jurisdicional (TÁVORA, 2012, p. 65.) da transparência referente aos atos da Administração Pública, o que nos remete imediatamente a uma associação à democracia e à segurança das partes, de modo que é através dele que também serão garantidas e imparcialidade e a responsabilidade do juiz. Assim sendo, pode-se constatar que através da transparência resultante da publicidade dos atos, todo e qualquer princípio há de ter sua atuação e sua aplicabilidade “observada” de modo a garantir às partes e a toda a sociedade proteção judicial efetiva, e um meio de controle dos atos e questões judiciais e administrativos.

In casu, em relação à Lei discutida, em seu art. 1º, §4º há a seguinte redação: “As reuniões poderão ser sigilosas sempre que houver risco de que a publicidade resulte em prejuízo à eficácia da decisão judicial”. Esse texto nos leva a indagar de que se tratam tais reuniões, se são públicas ou sigilosas. Entretanto devemos considerar que, pela literalidade do dispositivo, essas reuniões serão públicas, e sigilosas somente quando apresentarem perigo referente à eficácia da decisão consequente de sua publicidade, tendo o art. 5º, LX, CF e o art. 1º, §6º da própria Lei, como embasamento para esta exceção.

No que tange ao princípio da motivação jurisdicional, inspirado no Codice Civile Italiano, o que se pode dizer a respeito é que tal princípio tem o intuito de obrigar os órgãos do Estado ao dever de fundamentarem suas decisões, ou atos decisórios, para que, assim, impeçam o arbítrio e a subjetividade do magistrado. No momento da aplicação da jurisdição, é obrigação do órgão jurisdicional que se faça alcançar a composição adequada do conflito de interesses, de modo que sejam observadas e seguidas as regras instituídas no sistema legal, uma vez que, agindo de forma contrária ou viciada, o julgador estará ultrapassando seus limites de ação, chegando a intervir nos princípios e direitos básicos dos indivíduos.

Atualmente, é considerado um dever, apoiado pela própria Constituição Federal, a fundamentação das decisões tomadas pelo judiciário, de modo que, a partir de então, permita-se às partes que haja um controle da função jurisdicional, limitando-se, dessa forma, os poderes inerentes ao magistrado, dos quais será exigido o cumprimento dos direitos fundamentais e a garantia da não violação dos princípios fundamentais (TÁVORA, 2012, p. 63.).

Nesta oportunidade, entretanto, há de se ressaltar que não há inconstitucionalidade alguma no que diz respeito à criação da nova Lei. Tanto o princípio da ampla defesa quanto o princípio da publicidade não são, portanto, violados, tornando o dispositivo constitucionalmente válido. No que corresponde à ampla defesa, o que se questiona é a respeito de a decisão do colegiado não fazer referência alguma ao voto divergente. As decisões do colegiado, como já foi dito, deverão ser sempre fundamentadas, de acordo com o princípio da motivação jurisdicional.

Dessa forma, o acusado ou investigado deverá ter sempre o conhecimento dos argumentos que fizeram o colegiado chegar àquela decisão, de modo que, assim, poderá impugná-la, apontando eventuais erros sentenciais. Portanto não há que se questionar acerca do voto vencido, isolando qualquer ideia de que o princípio da ampla defesa fora violado. O princípio da publicidade também não será violado, tendo em vista o fato de que a decisão do colegiado será sempre publicada, entretanto caberá sigilo quanto ao que já foi citado: o voto divergente, visando a segurança do magistrado.

No que diz respeito ao juiz natural, não há violação, uma vez que o próprio juiz convoca o colegiado, sendo parte dele. Ademais, a composição do colegiado é feita por sorteio eletrônico entre magistrados com competência criminal. Por fim, também não se pode falar em violação do princípio da identidade física do juiz, haja vista o fato de que o juiz da causa que teve contato direto com o material probatório também participará do colegiado, possuindo total capacidade para repassar aos demais membros suas impressões pessoais e conclusões acerca das provas colhidas. Além disso, tal princípio não é absoluto, tendo suas exceções previstas no art. 132 do Código de Processo Civil, como já citado.

Sendo assim, não há que se falar em inconstitucionalidade quando discutido o julgamento colegiado em primeira instância, previsto pela Lei nº 12.694/12, haja vista que não padece de qualquer vício. Não há óbice constitucional para seu uso e a prestação jurisdicional penal, no campo das organizações criminosas, não deve ficar à guisa da falta de segurança, mas sim utilizar dos meios processuais penais para combatê-lo.

Após exposta a vertigem constitucional da lei e a despeito dos seus inovadores meios processuais, a partir do capítulo a seguir, indagar-se se o ventre procedimental da lei dá uma nova roupagem processo penal.

4. UMA NOVA CONCEPÇÃO PROCESSUALIÍSTICA PENAL?

Eis, em síntese, que, após percorremos todo o trilho investigativo da Lei 12.694/12, debruçando sobre cada princípio constitucional penal, nos deparamos com uma frutuosa provocação: será se a ambição da lei nos leva a uma nova concepção processualística penal? Será tal formulação uma vanguarda no processo penal? Prima facie, entende-se que o escopo da lei em dar segurança necessária, plena, convicta para o exercício da judicatura, representa um progresso no sistema processual brasileiro (SANTOS, 2012). É, sem sombra de dúvidas, uma lei de proa em nosso ordenamento. Um ponto que há de ser registrado, porém, é que a sua essência vem imbuída em teses e políticas estruturais já adotadas nos demais quadrantes do mundo, tais como a Convenção de Palermo, o II Pacto Republicano, as normas processuais da Espanha, França, Colômbia e até mesmo da Resolução n. 3 do CNJ.

Nesse contexto, não há dissídio algum ao fato da terra brasilis perquirir a criação de novos instrumentos estatais de combate à criminalidade, criando normas de mero processamento e julgamento em decisões de órgão plural em primeira instancia(SANTOS, 2012). Altera-se, enfim, o caminho processual percorrido. Como demonstrado, a decisão colegiada não prejudica em nada a fundamentação e livre convencimento do magistrado, não afronta o principio da ampla defesa. Em verdade, o que se tem é que as deliberações dos magistrados são secretas, mas ao fazê-las, os fundamentos de argumentação são plenamente publicados.

Na Carta Republicana de 1988 não há qualquer referência de que o primeiro grau de jurisdição da Justiça brasileira deverá ser composto por apenas um Juiz. Uma hermenêutica rasa nos permite essa afirmação. Paradoxalmente, é de nossa tradição o papel do Juiz monocrático em primeira instância. In casu, a lei foge à regra, mas não reluz nem miúdo sobre o campo da inconstitucionalidade. Pelo contrário. A colegialidade serviria como sustentáculo à independência dos julgadores, tornando difusa a responsabilidade de seus membros e reduzindo os riscos de uma sentença eivada de vícios.

Outra peculiaridade é que a publicidade, como uma garantia democrática que aproxima os cidadãos, é indissociável ao cuidado desta lei. E há mais: na detença de cada dispositivo legal, reputa-se inexistir o véu obscuro do sigilo na tomada de decisões no incurso de tal processo. Ampliativamente, a jurisdição é um serviço público e, por isso, não pode ser prestada de portas fechadas, secretamente, sem o controle e apreciação da medida que supostamente viola o direito do réu ou contraria o princípio da transparência adotada pelo governo federal com a Lei de Acesso à Informação.

A lei 12.694/12, finalmente, traz à cena uma nova processualística penal. Sua feição não descortina a ferir vícios ou atingir o grau de inconstitucionalidade. O que se roga com a lei é flexibilização dos procedimentos processuais, dando-lhes novo modelo, basicamente lastreado pela tentativa de resguardar os magistrados que condenam integrantes de facções criminosas. O crime organizado só é ousado porque não encontra resistência, o Estado, então, tenta penetrá-lo com uma inteligente norma processual e procedimental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À vista de tudo que foi exposto, conclui-se que o Poder Judiciário anseia por mudanças, tanto do ponto de vista penal quanto processual, para que se combater o crime organizado neste país. O aparato protetivo construído e ofertado pela lei respeita todos os direitos fundamentais do acusados. Devemos, portanto, honrá-lo por tal oferta.

Quando se vive em um país falível e, por reflexo, um Poder Judiciário desorganizado que julga um crime vivamente organizado, não só se acredita que a indolência normativa será curada com a racionalização do serviço jurisdicional. É certo que a composição de um órgão colegiado é uma medida inaugural nesse campo. Veio sim para dificultar e desestimular a atuação destas facções criminosas que permeiam nosso tecido social.

Mas não se deve parar por aí, confiando-se em apenas um órgão colegiado. O Brasil precisa parar com essa inércia estrutural, política, legislativa, enfim, e criar técnicas competentes e eficazes que permitam alcançar as pessoas que se escondem nas cortinas da criminalidade, tais como a interceptação telefônica, quebra do sigilo bancário, quebra do sigilo telefônico, colaboração premiada, infiltração policial. Ou seja, um conjunto todo de técnicas de investigação. Aliás, esse é assunto para outro verão. Quem sabe futuramente... Como dissie o inesquecível Millor Fernandes (2011): “Nesse ritmo de incompetência as civilizações tropicais vão acabar morrendo de frio.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

SANTOS, Akhenaton Augusto Nobre, Crime Organizado e sua Nova Processualística Disponível em http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=4666 acesso em 03/11/2012

CAVALCANTE, Márcio andré Lopes. Comentários à Lei 12.694/12, Julgamento colegiado em primeiro grau de crimes praticados por organizações criminosas. Dizer Direito. Disponível em: <http://staticsp.atualidadesdodireito.com.br/lfg/files/2012/08/Lei-12.694-Julgamento-colegiado-em-crimes-praticados-por-organiza%C3%A7%C3%B5es-criminosas.pdf> . Acesso em: 05 nov. 2012

EXTRA. Disponível em http://extra.globo.com/casos-de-policia/patricia-acioli-juiza-linha-dura-com-grupos-de-exterminio-de-sao-goncalo-morta-na-porta-de-casa-2438304.html 12/08/11 Acesso em: 03 nov. 2012

FERNANDES, Millôr. Eros uma vez... In: Millôr online.  Fábulas  fabulosas. Disponível em:

http://www.viajus.com.br/viajus.php?pagina=artigos&id=4666 Acesso em: 03 nov. 2012

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª ed. ver., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. v. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011;

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2012.

MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. 13º ed., São Paulo: Saraiva, 1990, v. I p. 80-81

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 7. ed. Salvador: JusPODIVM, 2012 p. 65.



[1] Paper apresentado à disciplina Direito Processual Penal I do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB para obtenção de nota parcial.

[2] Alunos do 6º período noturno do Curso de Direito da UNDB.

[3] Professor Mestre da disciplina de Direito Processual Penal I do Curso de Direito da UNDB.