Joselita Marques Santos

Resumo: O presente artigo tem por finalidade suscitar alguns questionamentos relacionados a novos campos de pesquisa para a história da educação. O foco da análise será a memória e seu valor enquanto fonte – documental ou oral – na reconstrução da história.

Palavras-chave: memória; fonte histórica; arquivo; matrizes teóricas; esquecimento.

Cotejando algumas referências sobre memória e história em obras de autores da nova história cultural, mas especificamente em autores da história da educação, uma declaração de Pierre Nora citado por Ana Chrystina Venâncio Minot no livro Baú de memória, bastidores de histórias, merece destaque.

...tudo que se chama memória, não é da memória, é da história. Tudo o que se diz dissipado da memória é a lembrança fulgurante, sua desaparição no fogo da história. A necessidade da memória é uma necessidade da história.[1]

A necessidade de a história perpetuar-se, durante muito tempo, constituiu um problema para os historiadores que não dispunham senão das fontes reconhecidas pela história tradicional.A partir da nova história cultural, o conceito de fonte histórica ampliou-se e muitas fontes consideradas de caráter pouco comprobatório - como cartas, relatórios não oficiais, depoimentos, memórias - passaram a ter importância no processo de reconstrução da história. Jacques Le Goff, analisando a ampliação do universo histórico, assinalou o grau de importância das novas fontes:

O novo documento, alargado para além dos textos tradicionais, transformado – que sempre a história quantitativa é possível e pertinente – em dado, deve ser tratado como um documento/monumento.[2]

Para um pesquisador, a proposta da nova história cultural parece fantástica, pois muitos fatos históricos, quase perdidos no tempo podem, a partir dessa nova visão, ser reconstituídos.

Dentre os dispositivos de pesquisas acima citados, merece destaque o uso da memória enquanto fonte histórica.

Diversos autores da atualidade têm-se utilizado dos registros memorialísticos no desenvolvimento de suas pesquisas. A memória - seja ela documental ou oral, coletiva ou particular - tem servido de suporte técnico em muitas produções biográficas. É importante lembrar que memórias sempre existiram e durante algum tempo fizeram parte dos arquivos literários ou jornalísticos.

O escritor realista Machado de Assis, por exemplo, soube mais do que ninguém se utilizar das memórias enquanto estilo literário. O trecho a seguir faz parte de sua conhecida obra, Memórias Póstumas de Brás Cubas:

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo.[3]

Machado, no entanto, escreveu ficção e não história. O pesquisador que utiliza o aparato da memória deve proceder, em sua análise, com devida cautela para não correr o risco de não produzir história. É preciso deixar claro que a história não produz memória, produz história. Mesmo que se valha da memória, ela a retira da inércia na qual se encontra, garantindo-lhe a perpetuação através do relato histórico.

Das memórias, a historiógrafa Ana Chrystina Venâncio Minot forjou a biografia da educadora Armanda Álvaro Alberto sem que sua obra perdesse o valor enquanto documento histórico. No trecho que se segue, nota-se a preocupação da autora em explicar os acontecimentos a partir do conceito escolanovista:

De fato, as primeiras histórias que ouvi de Armanda foram em sala de aula. Tinham sido transmitida aos meus alunos por seus avós e pais que haviam estudado ou trabalhado na Escola Regional de Meriti.[...] Era uma escola que respeitava o desenvolvimento intelectual dos alunos,[...] Achava interessante mas, no final dos anos oitenta, compartilhava da febre conteudista, o que significava contestar a contribuição da Escola Nova.[4]

Para que não haja nenhum questionamento quanto ao valor de sua pesquisa, o historiador deve-se valer categoricamente de uma base teórico-metodológica a qual dará sustentação a sua análise. Dessa forma, a memória perde o caráter de simples narração figurativa e passa a ser tomada como fonte histórica. Sem apoio das matrizes teóricas não há distinção entre relato ficcional ou histórico.

Clarice Nunes, pesquisadora que, com maestria produziu uma obra totalmente sustentada em conceitos, faz a seguinte declaração:

A pesquisa histórica é um contexto dentro do qual os acontecimentos, os comportamentos, as instituições e os processos podem ser descritos como ele sugere, isto é, de forma inteligível, buscando não cair no formalismo conceitual e, ao mesmo tempo, elaborando distinções delicadas.[5]

Logicamente que desafios e dificuldades sempre aparecem quando se tenta recriar uma trajetória. Como realizar o que Clarice Nunes indicou quando as memórias são apagadas? De que maneira o pesquisador irá desenvolver sua pesquisa?

Numa citação de Eni P. Orlandi, Ana Chrystina Venâncio Minot comenta que,

Assim como o silêncio, o esquecimento é indissociável da memória e igualmente não é o nada, não é o vazio da história. Tem significância própria.[6]

Merece destaque aqui um caso atípico de esquecimento e descaso. A primeira instituição Adventista de Aracaju teve todos os seus registros de fundação literalmente doados a uma empresa de reciclagem. Não fazia parte do calendário escolar sequer a comemoração por conta do seu aniversário. O descaso na manutenção da memória da escola incomodou na medida em nem mesmo nas atas de reunião da igreja havia menção a esses registros.

Retomando o que declarou Eni P. Orlandi, esse silêncio tinha significação própria. Se os documentos nada diziam, o depoimento das antigas professoras tinha muito a revelar. No confronto das declarações não só foram apontadas duas prováveis datas de fundação, 1955 ou 1956, como também foi assinalada uma possível fonte arquivística na Bahia, sede, na época, da Igreja Adventista no Nordeste.

De fato, embora sujeita aoesquecimento[7], a memória individual tem grande importância na reconstrução histórica. Uma declaração de Maria Helena Câmara Bastos esclarece melhor o significativo papel da história e do historiador ante as memórias:

Tributária da memória, a história narra quando é capaz de fazer falar o silêncio, quando consegue silenciar os ruídos. O historiador age, assim, pelo encontro: encontro do seu repertório temático, teórico e metodológico com a apropriação de um outro repertório, que corresponde à narrativa do próprio objeto investigado;[8]

Se as memórias desaparecem a história também se dissipa.[9]Nessa batalha travada em busca da valorização dessas novas fontes, somente o rigor teórico e a seriedade do historiador podem fazer as memórias reescreverem a história.

Referências bibliográficas:

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Obra Completa, Vol I. nova Aguillar. Rio de janeiro, 1994. p.11.

LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 1. Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. p. 95-106

MINOT, Ana Chrystina Venâncio. Baú de memórias, bastidores de histórias: o legado pioneiro de Armanda Álvaro Alberto. Bragança Paulista: EDUSF, 2002.

NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Bragança Paulista: EDUFS, 2000.

RIBEIRO, Arilda Inês Miranda. A educação feminina durante o século XIX: O Colégio Florence de Campinas 1863-1889. Campinas: Áreas de Publicações CMU/UNICAMP, 1996. (Coleção Campiniana, 4)



[1] NORA apud MINOT, Ana Chrystina Venâncio. Baú de memórias, bastidores de histórias: o legado pioneiro de Armanda Álvaro Alberto. Bragança Paulista: EDUSF, 2002, p.42.

[2] LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 1. Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. p.104.

[3] ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. . Obra Completa, Vol I. Nova Aguillar. Rio de janeiro, 1994. p.11.

[4] MINOT, Ana Chrystina Venâncio. op. cit. 2002, p.21.

[5] NUNES, Clarice. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Bragança Paulista: EDUFS, 2000, p.44.

[6] ORLANDI apud MINOT, Ana Chrystina Venâncio. op. cit. 2002 , p.32.

[7] idem, 2002, p. 32

[8] BASTOS, Maria Helena Câmara. Pro Pátria Laboremus: Joaquim José Menezes Vieira (1848-1897). Bragança Paulista: ADUSF, 2002. p.13

[9] idem, 2002. p.42