Toda obra escrita por alguém revela algo sobre essa pessoa. No caso de Dante Alighieri com a sua Comédia, que depois veio a ser rebatizada de Divina Comédia por Boccaccio, autor de Decameron, essa afirmação também é válida, visto que Dante nos mostra todo o seu repúdio pela sociedade dominante em sua cidade natal, Florença, à época, bem como suas convicções religiosas. Quando escreveu a obra, o poeta se encontrava sob pena de exílio, ameaçado de morte se retornasse a Florença e condenado a pagar uma multa de cinco mil florins. Dessa forma, muitas referências à sua cidade são encontradas no poema. Pode-se reparar que, ao longo de toda a obra, o poeta encontra-se com pessoas conhecidas em seu tempo, seja no Inferno, no Purgatório ou no Paraíso. Faremos agora uma análise do Inferno de Dante, onde se nota que pena a maior parte dos grandes adversários e desafetos do autor.

O poeta inicia sua narrativa situando-se perdido em uma selva escura, no meio de sua vida, o que provavelmente corresponde aos seus 35 anos, visto que a média na época era de 70. Nessa selva, ele é acuado por três feras uma pantera, um leão e uma loba. O ambiente selvagem é uma analogia que faz referência ao mundo embebido em corrupção, intrigas, conflitos e pecado em todas as suas formas. As tentações, a violência, a ambição e a incontinência, representadas pelas feras, estão prestes a pegar o poeta, quando ele é socorrido por um grande escritor da Antigüidade Virgílio. A aparição salvadora, representada pelo autor da Eneida, é a racionalidade de Dante. Por isso Virgílio é tão exaltado na obra, por representar a razão. E a inspiração dessa racionalidade é Beatriz, mulher que Dante muito amou e considerava um símbolo da virtude, um modelo para ele. Por isso ela orientara o poeta latino a resgatar o poeta florentino no poema.

Guiado por Virgílio, Dante atravessa o portão do Inferno, atravessa o Aqueronte, rio onde os danados são conduzidos aos seus infelizes destinos, e chega ao Primeiro Círculo. Nesse círculo estão as almas daqueles que não foram batizados. Eram aqueles espíritos que haviam vivido antes de Cristo e, por isso, não puderam conhecer a salvação, mesmo tendo vivido sem pecados. Nas palavras de Virgílio:

Viveram no tempo que antecedeu ao Cristianismo, e jamais prestaram culto a Deus. () Por tal defeito () somos torturados com o castigo de ter nossos desejos para sempre frustrados.
(ALIGHIERI, Dante. 2004, 26).

Por isso, passavam a eternidade ali naquele espaço chamado de Limbo, onde não sofriam nenhuma punição, apenas passavam todo o tempo se lamentando, por não terem nada para fazer. Não eram castigados, mas também não eram salvos, tendo de passar a eternidade num eterno ócio. Incluem-se nesse círculo, inclusive, os grandes sábios e filósofos da Antigüidade. No entanto, aqui também existe uma diferença quanto à nobreza das almas. Estes últimos, por serem mais nobres de espírito, se mantém afastados da turba, em um prado suave e verde. Contudo, os únicos que já haviam sido salvos desse círculo e levados ao Céu foram homens como Noé, Abel, Moisés e Abraão, que têm grande importância para a Igreja Católica, o que reflete as convicções religiosas do poeta.

Continuando sua jornada, os poetas entram no Segundo Círculo, que é destinado aos luxuriosos. Encontram lá alguns personagens históricos e outros lendários, como Cleópatra, Helena de Tróia, Páris e Tristão. Dante conversa com uma mulher chamada Francesca da Rimini, que lhe conta que está ali por ter praticado ato sexual antes do casamento, ato altamente abominado pelos valores católicos. A punição para os crimes de luxúria cometidos era a de ser atormentado por ventos furiosos: o furor da tormenta, nunca apoucado, flagelava eternamente as almas (...) sem nunca parar, uma alusão ao fato de não terem resistido à arrebatadora tentação da carne.

Passando ao Terceiro Círculo, Dante encontra os gulosos, condenados a sofrerem o tormento de agüentar uma chuva constante de granizo, água e neve, além de serem dilacerados pelas garras de Cérbero, o lendário cão de três cabeças que, na mitologia grega guardava a entrada do mundo dos mortos. Nesse círculo, o poeta encontra-se com Ciacco, um conterrâneo seu que faz uma alusão ao conflito político existente em Florença à época:

O ódio excessivo os levará ao combate, e o partido selvagem, triunfante, expulsará ferozmente o outro. Ao cabo de três sóis, chegará o momento de ser derrotado pelos vencidos, graças a alguém que age em favor de ambos os lados. Então este vencedor, ousado, atormentará os do outro partido, que se submeterá, envergonhado. Só há dois justos, mas ninguém lhes dá ouvido.
(ALIGHIERI, Dante. 2004, 29).

Tal previsão feita por Ciacco relata o que aconteceu em Florença de acordo com a visão de Dante sobre a disputa política em sua cidade.

Passando ao Quarto Círculo, o poeta encontra os avarentos e os pródigos, todos condenados a rolarem enormes pedras e a se injuriarem mutuamente. Uma clara alegoria de que a avareza põe os homens uns contra os outros. Nesse círculo ele encontra, entre outros indivíduos, papas, e cardeais.

Em seguida entram no Quinto Círculo, onde encontram os vencidos pela ira, que estão condenados a passar o tempo sofrendo os efeitos que sua ira causou, por isso se batem, se mordem e se flagelam em meio ao lodo de um pântano chamado Estige, sendo que os rancorosos se encontram no fundo, por não externarem seus sentimentos, ficando submetidos a eles.

Para passar pelo Quinto Círculo, os poetas contam com a ajuda de Flégias, personagem mitológico, que teve a filha violentada e incendiou o templo de Apolo por vingança, para conduzir a barca que os levará à cidade de Dite.  Na travessia são abordados por Filipe Argenti, um desafeto de Dante que havia sido vitorioso no terreno da política e, aqui, sofre a vingança de Dante, que o amaldiçoa: Permanece a sofrer no lodo mergulhado, ó espírito maldito!. Filipe era conhecido por ficar irado com muita facilidade e tomar decisões explosivas. Aproximam-se da cidade de Dite, que é a entrada para os demais círculos. Marca a divisão entre os pecados cometidos sem intenção e os cometidos conscientemente.

Quando finalmente conseguem entrar na cidade, Dante descreve o Sexto Círculo, destinado aos heréticos, que queimam em tumbas inflamadas, de acordo com a gravidade da heresia. Lá encontra um guibelino chamado Farinata, que travou sangrenta batalha às margens do rio Árbia.

O Sétimo Círculo é destinado aos violentos. De acordo com a obra, este círculo é dividido em três recintos: o primeiro é destinado àqueles que cometeram violência contra o próximo. São eles: homicidas, agressores, saqueadores e ladrões. No segundo estão os suicidas, e no terceiro, os que cometeram violência contra Deus, negando-o ou blasfemando. A entrada desse círculo é guardada pelo Minotauro, monstro lendário da mitologia grega, que vivia aprisionado num labirinto na ilha de Creta.

Aqueles que penavam no primeiro recinto estavam imersos em um rio de sangue fervente, guardados por centauros. Assim como o Minotauro e os centauros, os violentos do primeiro recinto tinham uma parte animal, que é a bestialidade, a violência, e esta parte é a que está imersa no rio.

No segundo recinto, encontram-se os suicidas. Um dos que são entrevistados por Dante e Virgílio é Pier delle Vigne, secretário e confidente do imperador Frederico II, que mandou prende-lo e cegá-lo. Pier cometeu suicídio e foi, como os outros que cometeram o mesmo ato, transformado em árvore, como ele próprio explica:

Quando homem violento, dominado pelo furor, voluntariamente apaga a sua vida, é atirado por Minos ao Sétimo Círculo. Cai, ao acaso, no meio da floresta, qual semente germina e se faz árvore, cuja fronde serve de pasto às Harpias, as quais, provocando a dor, a esta abrem a janela que são os gritos.
(ALIGHIERI, Dante. 2004, 51).

Eles são condenados também a não poderem recuperar seus corpos no dia do juízo final, pois os desprezaram em vida.

Em seguida, podemos contemplar o terceiro recinto, onde os violentos contra Deus, contra a arte e contra a natureza sofrem sob uma chuva de fogo que nunca cessa. Como rejeitaram a Deus, merecem perder todas as coisas boas que ele criou. Por isso queimam em um deserto incandescente.

Entre os que atentaram contra a natureza estão os sodomitas, entre os quais está Brunetto Latini, mestre querido e amigo íntimo de Dante. Ele faz uma previsão sobre o futuro de seu pupilo, que tem a ver com o exílio: ... esse ingrato povo que do povo de Fiesole descende (...) será teu inimigo, porque és bom. Mais uma vez é notória a influência da vida do poeta em sua obra.

Os poetas são levados ao Oitavo Círculo no dorso de Gerião, um monstro mitológico que é o símbolo da fraude, pois se apresenta como um ancião, mas na verdade é um monstro horrendo. E esse círculo é justamente onde são punidos os fraudadores de todas as categorias, divididos em dez diferentes valas. Na primeira estão os sedutores e rufiões. Na segunda, estão os aduladores e lisonjeadores, entre os quais se encontra Alessio Interminei, um membro dos guelfos brancos de Florença. Na terceira estão os simoníacos, aqueles que negociam com as coisas sagradas. Uma das figuras encontradas lá é a do papa Bonifácio VIII, que provocou a expulsão de Dante de Florença.

Na quarta vala penam os mágicos, adivinhos e farsantes, que têm as cabeças voltadas para as costas, para que não possam ver o que vem pela frente.

Na quinta vala estão aqueles que se beneficiaram do tráfico de cargos e de influências. Encontravam-se mergulhados em betume fervente. Na sexta estão os hipócritas, que andam revestidos de grossas capas de chumbo. Neste espaço encontram-se mais personagens do convívio de Dante, os frades Gaudentes Catalano e Loderingo, que foram designados para manter a paz em Florença, porém usaram de seu poder para obter vantagem, e ficaram famosos por sua hipocrisia.

Na sétima vala, encontram-se ladrões, que são condenados a passarem a eternidade sendo perseguidos por serpentes gigantescas e a terem seus corpos roubados por elas, para depois renascerem. Nessa vala, Dante encontra Vanni Fucci, homem violento e depravado de Pistóia. Ele faz uma previsão acerca do acontecido de maio de 1301: a expulsão dos guelfos brancos de Florença pelos guelfos negros:

...Pistóia expulsará de si a facção dos negros, Florença mudará seus mandantes e sua política. No Val di Magra, o deus Marte prepara um raio que, envolto em torvas nuvens, fará desencadear violenta tempestade. Quando o combate houver findado, cada um dos brancos estará ferido.
(ALIGHIERI, Dante. 2004, 85).

Na oitava vala, encontram as figuras dos falsos conselheiros acesas em longas chamas. Nessa parte da obra Dante manifesta explicitamente sua indignação quanto à situação de sua cidade, por haver encontrado entre os ladrões cinco florentinos:

Quisera eu que o mal não demorasse a cair sobre ti, pois quanto mais rápido ele vier, menos sofrerei.
(ALIGHIERI, Dante. 2004, 89).

Encontram-se nessa vala, muitos personagens da Ilíada, de Homero, entre eles Ulisses, que aconselhou mal Aquiles, ocultando-lhe que morreria na guerra de Tróia. Nesse recinto encontramos mais um florentino: Guido de Montefeltro, um famoso capitão guibelino que liderou várias lutas contra os guelfos.

Na nona vala estão aqueles que desencadearam cismas religiosos e semearam ódio e discórdia. Todos estão cruelmente mutilados e entre os sofredores estão nobres florentinos e Maomé, que se encontra todo cortado em arcos, sendo possível observar-lhe as entranhas. Aqui se nota uma convicção claramente católica, de condenar o profeta islâmico ao inferno.

Na décima e última vala estão os falsificadores, que vêm a ser os alquimistas, que produziam metais enganosos para confundí-los com metais nobres. Estão completamente recobertos de lepra.

Os dois poetas são levados ao Nono e último círculo pelo gigante Anteu. Os gigantes são símbolos da traição, pois em várias lendas eles traem seus criadores. O Nono círculo é destinado aos traidores em geral, e é dividido em quatro recintos. O primeiro, chamado Caína, é destinado aos que traíram o próprio sangue. O segundo, a Antenora, aos traidores da pátria. O terceiro, a Ptoloméia, aos que traíram os amigos. O quarto e último, a Judeca, é onde estão os traidores de seus chefes e benfeitores. Estes últimos são penalizados pelo próprio Lúcifer. São eles: Judas, Bruto e Cássio. Lúcifer é descrito como um ser gigantesco, com três rostos. Cada boca mordia um dos pecadores, sendo que a pena maior era a de Judas, que também era dilacerado por suas garras.

Usamos o inferno como uma amostra da obra, para mostrar que A Divina Comédia nos revela muito sobre seu autor. Podemos perceber esse fato pela quantidade de citações de pessoas que conviveram com ele em Florença e outros lugares, amigos e desafetos. A obra também nos mostra as convicções religiosas de Dante, pois se percebe que ele defende muito a religião católica e os valores por ela aprendidos. Por isso critica os hereges, mostra tantos personagens mitológicos no inferno, restringe a salvação aos que vieram depois de Cristo. Dante Alighieri era um homem católico e politicamente engajado. E é principalmente essa a mensagem que sua riquíssima obra nos deixa passar.

Graduando em história a cursar o 2º período da Universidade Estadual do Piauí.

Referência bibliográfica:

ALIGHIERI, Dante.  A Divina Comédia. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2004.