Da poesia à prosa: uma visão da lírica moderna em Alfonso Berardinelli

Depois de várias reavaliações das características da poesia e da prosa a que sujeita cada nova vertente literária, o ensaio crítico do italiano Alfonso Berardinelli (1943) parece ter seu lugar assegurado entre os pontos culminantes da imaginação criativa de nosso tempo.

Com efeito, Berardinelli, ao refletir sobre a voz da poesia lírica na modernidade, oferece ao âmbito literário novas perspectivas de leiturae análise à medida que apresenta uma crítica precisa e fecunda do livro de Hugo Friedrich, Estruturas da lírica moderna (1956).

É exatamente isso que mostra a obra Alfonso Berardinelli Da poesia à prosa. De forma didática, o livro publicado pela Editora Cosacnaify, em 2007, organizado por Maria Betânia Amoroso, com tradução de Maurício Santana Dias reúne em oito ensaios a "melhor reflexão feita por cerca de vinte anos – de 1983 a 2001 –, sobre as razões e desrazões da poesia moderna" (p. 07).

Nesse estudo, Berardinelli afirma que existiu, ou existe ainda um "mito da modernidade" e seu jargão, resposta pronta, automatizada "de uma modernidade não cansada de si mesma. Isenta de autocrítica e ainda inteiramente confiante no progresso ininterrupto da inovação" (p. 07).

Entre a dialética do professor e a visão percuciente do pesquisador, desdobram-se considerações sobre o autor Hugo Friedrich, entre outros, que tomando posição perante seu tempo, propõe "grandes esquemas interpretativos, modelos escolásticos, para a poesia do século XX" (p.08) e que foi, de algum modo, responsável pela formação de novos leitores.

Munido de sólido instrumental teórico e respaldado na obra Estrutura da lírica moderna, Berardinelli aponta, ao escrever o prefácio para uma das edições italianas dessa obra, os enganos que Friedrich perpetuou já presentes no título. Segundo o crítico italiano "não há uma estrutura generalizável na poesia, a menos que se caia no idealismo mais desvelado que nega qualquer atributo de concretude para o poeta e para sua poesia" (p. 08).

A maneira com que Alfonso Berardinelli desenvolve o assunto nos traz um grande impacto, principalmente, ao observar que Friedrich forneceu uma descrição "estrutural" da lírica moderna. Menosprezando a fusão e o arranjo dos gêneros – típicosfenômenos da modernidade. Tal fato remete à questão das "três vozes da poesia" que T. S. Eliot mencionou em um de seus ensaios, uma vez que a lírica estudada por Friedrich desenvolve apenas um olhar para a poesia.

Vale dizer que o crítico, ao tratar da voz lírica e de suas artes (poesia/ prosa), apóia-se no conceito de voz poética elaborado por Eliot em As três vozes da poesia:

[...] A primeira voz é a do poeta que fala a si mesmo, ou a ninguém. A segunda é a voz do poeta que se manifesta diante de um auditório, grande ou pequeno. A terceira é a voz do poeta que tenta criar uma personagem dramática cuja expressão seja em verso, que não diz aquilo que gostaria de dizer ele mesmo, mas apenas o que pode dizer dentro dos limites de uma personagem, que dialoga com outros seres imaginários (p.18).

A avaliação dos elementos que compõem os três tipos de vozes, segundo Berardinelli, proporciona uma maior compreensão da questão da lírica moderna, haja vista a "maior parte da poesia do século XX entrar com dificuldades no esquema de Friedrich – esquema que se baseia sobretudo na centralidade de Mallarmé e de seus seguidores" (p. 19).

Aspecto de relevância nos estudosdo crítico italiano é a preocupação com o problema da pluralidade de vozes que agem ou podem agir na poesia, inicialmente apresentado por Eliot, mas logo em seguida relegado por Friedrich.

No entanto, alerta Berardinelli, que a hipótese de Friedrich de a lírica moderna ser examinada e vista por uma "eficaz descrição 'estrutural'" não deve, entretanto, "ser severamente julgada por aquilo que não nos oferece" (p. 20-21), pois tal hipótese não apresenta uma reconstrução da poesia moderna e uma reformulação sistemática da poética da poesia pura e do hermetismo. Consideramos que a visão antiindividualistae anti-históricade Friedrich tem a sua coerência e uma notável eficácia descritiva estrutural. Logo, Berardinelli acreditaque a poesia moderna, ao escolher o dinamismo puro como terreno privilegiado de pesquisa, possibilita criar do seu próprio interior tudo aquilo que necessita, desde conotações sugestivas até desvios da norma da linguagem. É, assim, poesia órfica e ontológica.

Contudo, o estudioso italiano ainda diz que, além de Mallarmé, a poesia do século XX parece buscar modelos mais "impuros" e contraditórios, tendo como foco: Baudelaire, Rimbaud e Whitman. Sobre Whitman pouco se fala na obra de Friedrich, uma vez que o poeta se distância do esquema estrutural, pois nele "não encontramos abstração, culto da premeditação intelectual, transcendência vazia ou fuga da palavra do horizonte do concreto" (p. 23). Ao contrário, a poética de Whitman é "democrática, otimista e inteiramente antiintelectualista" (p. 23).

Outro ponto importante nos ensaios de Berardinelli é a poesia e o gênero lírico nas vicissitudes pós-modernas. Dessa forma, o crítico italiano parafraseando e invertendo um dito de Pasolini, segundo para o qual "a prosa é a poesia que a poesia não é", afirma que "a poesia é também aquele tipo deprosa que a prosa não consegue ser".(p. 175).

Como demonstra o título da obra em questão, a proposta de análise crítica dapoesia e da prosa do século XX, está vinculada, conforme Berardinelli:

[...] a uma modernidade canonizada e teorizada, em geral, como negação, grau zero e fusão magmática, subversora dos gêneros (mais que "mistura de estilos": a mistura de fato requer que existam elementos heterogêneos a serem misturados, isto é, gêneros suficientemente distinguíveis) (p.176).

De fato, o crítico italiano afirma que Friedrich deixa escapar essa contra-tendência, essa atração da poesia pela prosa. No entanto, é afortunado ao identificar o elemento da obscuridade da poesia e tentar reconstruí-lo sob diversas variedades numa profundaestrutura da lírica moderna.

Não à toa, Friedrich identifica a obscuridade como um dado de evidência imediata: "a lírica européia do século XX não é facilmente acessível. Fala por meio de enigmas e obscuridade" (p.128).

No que concerne a esse ensaio crítico, Berardinelli estabelece uma diferenciação importante ao distinguir quatro tipos de obscuridade que caracterizam a poesia moderna: solidão e singularidade, profundidade e mistério, provocação e jargão.

Sendo assim, na primeira categoria o "eu" não está abolido, mas está só diante de si mesmo. Na segunda, somente o indivíduo singular em sua solidão pode dirigir-se intencionalmente para a profundidade ou nela se precipitar acidentalmente, mergulhar no abismo e no mistério. Já a terceira categoria remete sobretudo ao modo de ser do poeta e ao seu comportamento (escandaloso, ultrajante, incompreendido, rebelde, revolucionário). Na última categoria, temos o jargão, quando a obscuridade como característica geral, genérica e abstrata da poesia moderna se torna língua especializada, aceita enquanto tal no pluralismo das especializações culturais. Logo, "o radicalismo estético moderno está acabado: já não surpreende nem escandaliza, nem oferece um acréscimo de conhecimento, e o choque é assimilado" (p. 140).

Para o pesquisador italiano, a poesia moderna que correspondia à necessidade real de uma nova "leitura" da sua linguagem e estruturação formal, acaba rapidamente se historicizando dando lugar ao mito que, ao se consolidar, cria sua própria linguagem e a ela se remete sempre.

Fato interessante a ser observado é que, para Berardinelli, a lírica moderna foi por mais de um século um gênero literário de extraordinário prestígio, em cujo âmbito (cita-se pela generalidade e influência, Baudelaire, Eliot, Valéry, Pound, Montale, Audem etc.) e as partes da qual se formou a idéia moderna de "especificidade literária", de "função poética". Por isso, cabe a nós aguçarmos os ouvidos para o fato de que a poesia moderna tem mais vozes do que uma única estrutura profunda.

Na Itália, o crítico cita Ungaretti como o maior expoente dessa cultura de vanguarda, pois sua obscuridade se explica "como a contínua alusão a profundidades inatingíveis: como se a onipresença da totalidade cósmica, dentro e ao redor de cada imagem e de cada fibra que Ungaretti expõe com gesto lírico, fosse extrema na forma de sua ausência" (p. 99).

Nesse sentido, Berardinelli afirma queo máximo de abstração e de esvaziamento semântico do texto chegará a ser interpretado como o máximo da liberdade concedida ao leitor, que atuará com participação criativa, pois "quando um texto busca a originalidade no vazio, elesó pode aspirar a ser preenchido pela imaginação (por assim dizer criativa) de quem olê" (p. 130).

A linguagem poética da modernidade parece escapar a toda contaminação, parece excluir a prosa, a épica, a sátira, o dialogismo, o tecido lógico e a reflexão, "confeccionando enigmas textuais por esvaziamento semântico" (p. 143). No entanto, por outra parte, a lírica moderna frequentemente é anti-lírica: elimina o sujeito monologante e o distribui numa pluralidade de vozes, descentraliza o "eu", engloba a prosa e todos os outros gêneros.

Em suma, parece-nos que – se Eliot foca nos seus estudos as três vozes da poesia e Hugo Friedrich mantém uma visão estritamente estruturalista da poesia. Alfonso Berardinelli já faz uma crítica à descrição apenas estrutural de Friedrich e busca uma síntese, valorizando a pluralidade de vozes entre a poesia e a prosa, sem descartar que elas devem ser vistas no âmbito da própria linguagem que as materializa.

Desta feita, Berardinelli mostra na sua obra Da poesia à prosa não somente uma possível trajetória dos estudos críticos da lírica moderna, partindo de estudiosos da literatura como Eliot e Friedrich, mas também nos oferece suporte teórico para acompreensão das obras contemporâneas. O crítico italiano, com sua experiência nos estudos da lírica moderna, apresenta-nos uma obra sucinta, de fácil compreensão, sem perda de rigor, que traz informações, às vezes só contidas em publicações mais específicas. Ao mesmo tempo, deixa índices para novas pesquisas e descobertas no âmbito dos estudos da lírica moderna.