Thiago B. Soares[1]

            O título acima talvez não seja apropriado pois dá uma ideia de que se tratará de pontos convergentes aos dois campos do saber. Ora, utilizaremos o magnetismo dos estudos da linguagem para tornar, se é possível expor assim, a filosofia parte de suas reflexões constituintes. Pensando que a matéria prima tanto de uma quanto da outra são a mesma, a língua(gem), tecemos considerações cujo substrato é o papel da linguagem.

Tentar discorrer sobre o papel da linguagem é uma função, para quem leva a sério a tarefa, demasiadamente excessiva, porquanto a linguagem compõe o ser humano enquanto o que se diz do humano. Nesse sentido, não é menos legítimo assegurá-la como fundadora dos aspectos básicos da própria filosofia. Portanto, referir à filosofia é resvalar no âmbito da linguagem.

            Posto isso, desde aos primeiros filósofos, a preocupação era penetrar o logos constituinte da physis, ou seja, produzir uma narrativa que tentasse decriptar o funcionamento do cosmo. Ainda que diante desse aspecto Turnbull (2001, p. 36) diga que “o logos é o princípio fundamental que governa o “funcionamento” do cosmo”, a palavra grega logos é, de acordo com o dicionário etimológico de Antônio Geraldo da Cunha, “palavra”, “estudo”, “tratado”. Destarte, a filosofia primordial não escapou da linguagem nem por um instante, o que não quer dizer que o desenvolvimento dos estudos dessa se fizeram diferente.

            Por outro lado, o genebrino Ferdinand de Saussure em seu “Curso de Linguística Geral” delimita a investigação da linguística ao demarcar a língua como fato de linguagem, isto é, a língua como um dos desdobramentos da antecedente; em seu dizer Saussure assevera: “(...) que não é a linguagem que é natural ao homem, mas a faculdade de constituir uma língua, vale dizer: um sistema de signos distintos correspondentes à ideias distintas” (s/d, p. 18). O mestre de Genebra no intuito de corroborar a ideia de língua como imanente ao gênero humano profere o seguinte: “A língua, assim delimitada no conjunto dos fatos de linguagem, é classificável entre os fatos humanos, enquanto que a linguagem não o é” (ibid, p. 23). Em outras palavras, tem-se na língua uma instituição social da qual o ser humano faz parte na medida em que necessita interagir, ao passo que a linguagem é de outra ordem, posto que existam outras formas de linguagem – como é o caso de um desenho, caso pictográfico, uma foto, arranjo iconográfico, uma nuvem escura, um índice, traços constituindo formas de conteúdos culturais circunscrito à determinada comunidade, o símbolo. É, com efeito, que Saussure elege uma ciência mais ampla para a linguagem, a semiologia.

            Em função das considerações saussurianas, pode-se seguramente afirmar que a filosofia se faz e refaz a partir da língua, embora não tenha como fito a língua. Todavia, a filosofia visa à linguagem, que, por sua vez, não é senão a forma do homem estar no mundo, relacionar-se consigo e/ou com a alteridade. Nesse âmbito, arrisca-se uma inferência para limitar a filosofia atada não somente à linguagem, mas justamente à língua. Ora, se não é de outra forma, filosofar é uma apropriação singular da língua com suporte na linguagem.

            Posto isso, a linguagem possui formas de ser considerada pela filosofia da linguagem, e entre muitos pensadores que o fizeram, o russo Mikhail Bakhtin (1896-1975) obteve significativa proeminência ao destacar diretrizes acerca da linguagem. Bakhtin fornece uma espécie de classificação para as formas de encarar a linguagem como objeto de estudo, da forma que segue na perícope:

 

Chamaremos a primeira orientação de “subjetivismo idealista” e a segunda de “objetivismo abstrato”. A primeira tendência interessa-se pelo ato da fala, de criação individual, como fundamento da língua (no sentido de toda atividade de linguagem sem exceção). O psiquismo individual constitui a fonte da língua. As leis da criação lingüística – sendo a língua uma evolução ininterrupta, uma criação contínua – são as leis da psicologia individual, e são elas que devem ser estudadas pelo lingüista e pelo filósofo da linguagem. Esclarecer o fenômeno lingüístico significa reduzi-lo a um ato significativo (por vezes mesmo racional) de criação individual (2006, p. 71).

 

 

Ou seja, de acordo com a orientação do subjetivismo idealista, grosso modo, o indivíduo é origem da língua, portanto, se pensa em um ser que não é atravessado pela cultura, pelo social nem pela ideologia.Em outras palavras, alguém ideal, lembrando um ser universal na acepção dos filósofos medievais. Nessa perspectiva, se encontra vários eminentes estudiosos de cunho empirista, como por exemplo, o renomado criador da teoria gerativista, Noam Chomsky.

Além dessa concepção, Bakhtin explicita outra orientação:

 

Passemos à definição da segunda orientação do pensamento filosófico-lingüístico. Segundo esta tendência, o centro organizador de todos os fatos da língua, o que faz dela o objeto de uma ciência bem definida, situa-se, ao contrário, no sistemalingüístico, a saber o sistema das formas fonéticas, gramaticais e lexicais da língua. Enquanto que, para a primeira orientação, a língua constitui um fluxo ininterrupto de atos de fala, onde nada permanece estável, nada conserva sua identidade, para a segunda orientação a língua é um arco-íris imóvel que domina este fluxo (2006, p. 77).

 

Dessa forma, Bakhtin estabelece que o objetivismo abstrato não é senão uma visão positivista da língua que presta simplesmente a classificar os elementos constitutivos da língua, por conseguinte, da linguagem. Nesse sentido, o indivíduo é pensado como um receptáculo da entidade língua, como conjunto de regras, e, ainda, não tendo ligações socioculturais que o modifiquem. Bakhtin contesta com essa orientação a visão de língua/linguagem que o fundador da linguística moderna, Saussure, possuía, além de muitos outros.

            Contudo, o russo não só crítica, mas propõe uma excelente visão da língua/linguagem, a de fato social. Enfoque esse muito próximo ao do que outro russo, Lev Vygostky (1886-1934), dá à linguagem humana. Tal horizonte foi relativamente bem aceito pelas ciências humanas contemporâneas, pois ao considerar a língua/linguagem um fato social, pesa-se o ser humano com um sujeito social, atravessado por culturas ideológicas, quer dizer, tem-se a partir daí uma maneira mais aproximada do “real” de se examinar o que para Protágoras era a medida de todas as coisas.

 

 

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12ª ed. Hucitec, 2006.

CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova fronteira da Língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Org. Charles Bally e Albert Sechehaye. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes e IzidoroBlikstein. 9ª ed. São Paulo, Cultrix, s/d.

TURNBULL, Neil. Fique por dentro da filosofia. Trad. Felipe Lindoso. 2ª ed. Cosac &Naify, 2001.

           

 

 

[1] Doutorando (PPGL-UFSCar). E-mail: [email protected]