A lógica da compaixão piedosa, por sua vez, compõe um jogo perverso e "desumanizante", difícil de evidenciar, pois é uma prática muito arraigada e dissimulada em nossa sociedade ocidental, tendo como figura principal no século passado a dama de caridade, que tinha um estatuto de benfeitora divina em função de seus atos de ofertar esmola e filantropia. A dama de caridade vem sendo progressivamente substituída pela enfermagem, herdeira maior dessa lógica que muitas vezes ainda motiva suas ações no ambiente hospitalar. 

O aspecto enrustido da piedade compassiva repousa no fato de que ela faz das práticas antagônicas e paradoxais, ou seja, em seu próprio bojo repousa a ambigüidade constituinte e estrutural de sua práxis, normalizando destarte, o fundamento para as relações dissimétricas que ela institui entre o benfeitor (dominante) e o assistido (dominado). Essa lógica dialética da luta eterna de classes instaura um exercício de poder de coerção e submissão, isto é, uma classe provedora, em uma analogia a qual, assemelha-se a um pai celestial e provedor, que fomenta subsídios para uma eterna dívida dentre o ajudante e o ajudado. Conquanto, assevere a manutenção de um estado de vínculos sociais dependentes, dissimulados ou escamoteados por um discurso de um pseudo-humanismo, pedante, desapaixonado e desinteressado. Nesse ínterim, indivíduos "assujeitados" procedentes de um processo dialógico de dissolução da subjetividade, tornam-se ínfimos objetos de troca para os astuciosos e astutos salvadores, os quais esperam a redenção na beatitude suprema do Criador, preconizada pelo embuste da condição de um escambo pós-moderno. Esses estatutos simbólicos de trocas filantrópicas, imbuídos de caridade, além de exacerbarem a servidão, obediência e dependência instauram ainda uma sensação de dívida e gratidão eterna pela caridade recebida. 

 Caponi ressalta que no ato do altruísmo capcioso existe uma sutil defesa de nós mesmos (egocentrismo-maniqueista), no intuito de nos libertarmos de um sentimento de "paura" que é ontológico a condição humana, pois o contratempo ou a penúria que assola nosso semelhante nos faz sentir impotência, perante a desgraça alheia e o temor de que o infortúnio possa nos acontecer, mobiliza possíveis atos de benevolência individualista. Ou seja, no cerne do ato de compaixão, não estamos sendo completamente generosos e desinteressados, pois estamos em socorro de nossa salvação, isto é, o homem não suporta ver a sua augúria refletida no espelho de um desvalido. Outro aspecto existente nessa atitude ardilosa de prover ao próximo permeia acerca de um fundo de vingança capeada, de sadismo, pois é preciso que o flagelo e a danação existam e aconteçam com o outro para que nós possamos nos aliviar de nossa própria angústia, ao mesmo tempo em que supomos que nos engrandecemos moralmente com nossa caridade. É por isso que o sentimento de compaixão, segundo Nietzsche (1987), reflete-se, na dor alheia sendo despojada do que ela tem de pessoal, de singular e irredutível, pois o compassivo julga o destino sem se preocupar em saber nada atinente as conseqüências e complicações interiores que a aflição tem para o outro. Ou seja, os atos de caridade, são impulsionados pelo júbilo sádico proveniente do espetáculo-masoquista e do altruísmo dissimulado.

Sandra Caponi através da leitura de Nietzsche (1987) e Hannah Arendt (1999) discute os conceitos de compaixão, piedade e solidariedade, nos estimula a pensar a elaboração de estratégias para transformar as intervenções em saúde. Estas, institucionalizadas com base na piedade e na compaixão, tendem a reproduzir mecanismos obscuros e cotidianos de coerção e controle, travestidos de humanismo. A piedade conduz à glorificação do sofrimento alheio. A compaixão legitima as desigualdades, isola, exclui o diálogo. Já a solidariedade é um valor que se funda na vontade de universalizar a dignidade humana, pressupondo uma desapaixonada comunidade de interesses com os infortunados. A solidariedade, realização de ações que beneficia o outro, pressupõe o reconhecimento deste como sujeito autônomo, que é capaz de fazer escolha.

O percalço da compaixão, quando se amplia e passa a fundamentar políticas de assistência, apregoa Caponi, é que ela permanece alheia ao diálogo e exclui a argumentação, pretendendo superar uma necessidade, pelo imediatismo-assistencialista.  Nessa conjuntura de uma sociedade fugaz, evanescente e volátil, onde os vínculos afetivos (sociais e libidinais) são efêmeros, o ente pós-moderno vive encapsulado, em sua redoma protetora. O sujeito contemporâneo busca uma "uterização", ou seja, o mal estar de conviver em uma civilização, como nos alude Freud (1980) é demasiadamente penoso e frustrante, no que tange aos contatos interpessoais, a insignificância humana perante a natureza e o pavor da morte, isto é, a angústia da certeza da cessação da existência orgânica.

Nessa amálgama de sentimentos difusos e coletivos o indivíduo busca o retorno ao útero, onde se sentiria preservado e satisfeito, ou seja, novas relações duais e objetais se instauram, mediante uma configuração patológica de simbiose tardia com elementos artificiais que poderiam suprir a primeira falta inscrita no psiquismo.

O compromisso com a pessoa que sofre é fornecida pelo utilitarismo de Bentham e Stuart Mill Apud Dumont (1981), que faz da procura da maior felicidade para o maior número a medida para todos os atos. Um hedonismo dissimulado, ou seja, um ato é correto se produz as melhores conseqüências para o bem-estar humano.

Acredita-se no utilitarismo que o prazer ou bem-estar de um sujeito pode ser medido e comparado com o de outro. Como na cultura do individualismo e no estoicismo a "felicidade coletiva" só pode ser pensada como a soma das "felicidades individuais". O problema passa a ser como fazer, com que a procura da "felicidade individual", possa ser integrada nessa "felicidade coletiva"? A solução passou a ser criar instituições de controle (dispositivos estatais de domesticação e "docilização" do sujeito) capazes de vigiar e punir as condutas dos indivíduos, tentando padronizar o comportamento humano e relegando ao limbo todas as atitudes ou condutas destoantes. 

Centrando-se na leitura de Foucault (2006), Caponi busca demonstrar como as formas piedosas de socorro e assistência paternalista, ocultam estratégias de coerção, mecanismos de emasculação individual e coletiva, e como ambos os discursos, o compassivo e o utilitarista, apresentam essa característica de atuar pela moralidade áulica, afirmando agir em conformidade com a ideologia e pelo nome do bem estar ou bem comum dos necessitados.
 Nesse sentido, as instituições de assistência pública de saúde se fundamentam, faz dois séculos pelos critérios de bem-estar geral, urgência social e de felicidade e interesse comuns. Entrementes, desde os primórdios do assistencialismo-paternalista, sempre houve a mão santa da Igreja e sua celeuma concernente aos infortúnios que acometem os impuros, pois aqueles que aceitassem seus preceitos dogmáticos e doutrinadores seriam salvos pela beatitude suprema do paracleto da humanidade.

No que tange aos clérigos, suas ações, campanhas e programas são oriundos das certezas de que sempre atuam pela benevolência ou altruísmo. Uma política de assistência fundamentada sobre esses pressupostos prescinde de argumentos, exclui a palavra e emudece qualquer diálogo.  Tanto a ética utilitarista, quanto a ética compassiva religiosa são, por si só, "desumanizantes" e axiomáticas, pelo fato de colocarem os princípios religiosos acima dos sujeitos envolvidos, isto é, a salvação do benfeitor, consiste no auxílio prestado ao moribundo em sofrimento.

Está atitude unilateral e mesquinha, sedimenta a escravidão, fomentando a dependência e expurgando as decisões tomadas coletivamente com base no diálogo e argumentação, pois essas éticas consideram que os princípios religiosos ou de utilidade geral são os únicos a priori salutares e benéficos. 
A assistência à pessoa que sofre, por vezes, é trazida pelo discurso tecno-científico, o qual abarca a ausência da paixão, que a suposição de objetividade e neutralidade da ciência desperta no homem moderno.

O desenvolvimento científico e tecnológico tem trazido uma série de benefícios, sem dúvida, mas tem como efeito colateral uma inadvertida promoção do "assujeitamento". A imparcialidade oriunda da metodologia científica alude a uma formalidade padronizada e específica, cuja sua elementariedade estruturante e funcionalismo despótico, em seu seio, engendram uma eliminação do verbal, isto é, a exatidão da ciência não permite o espaço lingüístico e simbólico.

Esse cerceamento do verbal (Lingüístico) e dos símbolos (Simbolismo) procedentes de uma (des)ruptura entre o humano e o imaginário, ensejam a dicotomia paradoxal e ambígua homem/máquina. O preço que pagamos pela suposta objetividade da ciência é a eliminação da condição humana da linguagem.

O lado humano é constituído pela linguagem, ou seja, uma das prerrogativas do "humano" é a forma de externalizar seus pensamentos mediante a linguagem, a qual é transmitida pela inserção da cultura pelos sujeitos. A palavra é necessariamente pessoal, subjetiva, e precisa do reconhecimento no diálogo do outro, somente no contato interpessoal que a palavra é assimilada, enquanto mediadora do simbólico e real. A dimensão "mecanicista" da ciência e tecnologia far-se-á, portanto, na medida em que ficamos reduzidos a objetos de nossa própria técnica e objetos despersonalizados de uma investigação que se propõe imparcial e objetiva.

A ética utilitarista, assim como a compassiva, afirma os princípios acima dos sujeitos. Segundo Japiassú e Marcondes (1996), no utilitarismo, doutrina defendida por J. Benthan e J. S. Mill, as ações são boas quando tendem a promover a felicidade, más quando tendem a promover o oposto da felicidade. As ações, boas ou más, são consideradas assim do ponto de vista de suas implicações ou conseqüências, sendo o objetivo de uma boa ação, em consonância com os preceitos do utilitarismo, promover em maior grau o bem geral. Porém existe uma dificuldade em se estabelecer um critério de bem geral, ou seja, aquilo que pode ser benéfico para alguns pode não o ser em maior ou menor grau para outros. Além do fato de que essa doutrina aceita o sacrifício de uma minoria em nome do bem geral, e para a não-consideração das intenções e motivos nos quais, a ação se baseia levando apenas em conta seus efeitos e conseqüências.

Neste contexto o compromisso autêntico com quem está em sofrimento é propiciado pela solidariedade. A solidariedade abre uma perspectiva de humanização, pois ela somente se realiza quando a dimensão ética da palavra está colocada. Nesse sentido, segundo Caponi a solidariedade implica uma preocupação por universalizar a dignidade humana, que precisa da mediação das palavras faladas e trocadas no diálogo com o outro para poder generalizar-se. Como uma relação autêntica com o outro implica um mínimo de alteridade e aceitação da pluralidade humana como algo irredutível, o laço social "humanizante", somente se constrói pela mediação da palavra.

É somente pela mediação da palavra trocada com o outro que podemos tornar inteligíveis nossos próprios pensamentos, anseios, temores e sofrimentos. Nossos sentimentos e sensibilidades só tomam forma e expressão na relação simbólica com o outro.

Nessa conjuntura, humanizar o âmbito institucional implica dar lugar tanto à palavra do usuário quanto à palavra dos profissionais da saúde, de forma que possam fazer parte de uma rede de diálogo, que pense e promova as ações, campanhas, programas e políticas assistenciais a partir da dignidade ética da palavra, do respeito, do reconhecimento mútuo e da solidariedade.

Referência Bibliográfica.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.

CAPONI, Sandra. Da Compaixão À Solidariedade - Uma Genealogia da Assistência Médica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004.

DUMONT, L. O Individualismo. Rio de Janeiro, Rocco, 1981.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2006.

FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização. Vol. XXI. Rio de Janeiro, Ed. Imago, 1980.

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3ª Ed.rev. e ampliada. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed.; 1996.


NIETZSCHE. A Gaya Ciência. Os Pensadores. São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1987.