Da Capacidade Indígena no Brasil

Rubens Capistrano 1

Resumo: O objetivo do presente estudo é, ainda que de forma sucinta, analisar a capacidade do índio brasileiro, assunto inerente à pauta das manchetes de jornais e programas noticiosos, que por vezes trazem matérias sobre indígenas que, valendo-se da proteção que lhes é conferida por lei, praticam ações tidas como ilícitas pela lei brasileira, mas que não os atingem, por serem supostamente penalmente inimputáveis, situação esta decorrente da sua incapacidade civil. Assim, pretende-se demonstrar que nem todo índio é civilmente incapaz, nem penalmente inimputável, de acordo com a Lei 6.001/73, que dispôs sobre o Estatuto do Índio.

Palavras-chave: Índio; Capacidade Civil; Imputabilidade Penal.

Abstract: The objective of this article is, even being quite briefly, to analyze the capacity of the Brazilian Indian, a subject inherent to the most important news program and newspapers, which some times report news about Indians who, covered by the protection gained by law, execute actions which are legally forbidden. However, even executing forbidden actions, or crimes, they are not punished, for they are criminally unsuitable, situation that results from the civil incapacity, which they are given. In this sense, it is intended to demonstrate that not every Indian is civilly incapable, nor criminally unsuitable, according to the Law 6.001/73, which disposed about the Indian Statute.

Key-words: Indian; Civil Capacity; Criminally Unsuitable.

Introdução:

É crescente o número de notícias veiculadas pelos mais diversos meios de comunicação acerca de membros de comunidades indígenas que praticaram atos próprios da sociedade brasileira civilizada e estranhos à sua cultura e tradição. Não raro, referidas notícias vêm seguidas por comentários no sentido de que os índios são incapazes civilmente, não respondendo pelos atos que cometem, de acordo com a lei. Assim, faz-se necessário um breve estudo sobre o caso, haja vista que nem sempre os índios são tidos por incapazes, como trataremos a seguir.

A Matéria no Código Civil:

O novo Código Civil, ao tratar da capacidade das pessoas naturais, estabelece, em seu artigo 4º, parágrafo único, que a capacidade dos índios será tratada em lei especial, remetendo o leitor à lei 6.001, de 19 de dezembro de 1973, também conhecida como o Estatuto do Índio.

O artigo 1º da referida lei especial estabelece que o propósito do Estatuto do Índio é regular a situação jurídica dos silvícolas e suas comunidades, preservando a sua cultura e integrando-os à comunhão nacional, de forma progressiva e harmoniosa.

Conceitos e Modalidades:

A seguir, deve-se abordar o esculpido no artigo 3º, que traz os conceitos de índio, como sendo aquele indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional, e de comunidade indígena, que outra coisa não é senão um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem neles integrados.

Dúvida que se mostra corriqueira é o termo integrados, estabelecido na lei. Tal vocábulo decorre do artigo 4º do Estatuto, que subdivide os silvícolas em isolados, em vias de integração e integrados. Os primeiros são aqueles que vivem em grupos desconhecidos ou que se possui escassos conhecimentos a seu respeito. Os índios em vias de integração são os que possuem contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, mas mantêm sua cultura, aceitando algumas práticas e modos de subsistência estranhos à sociedade indígena. Por fim, a categoria mencionada pelo artigo 3º, os índios integrados são aqueles incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, mesmo que conservem usos, costumes e tradições característicos de sua cultura mãe.

Note-se, aqui, que o inciso III do artigo 4º traz a figura do índio em um grau de integração tal que é perfeitamente capaz, pois no exercício dos direitos civis inerentes às pessoas absolutamente capazes. E ressalta: mesmo que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura. Em outras palavras, não se exige que o índio, para estar no gozo de direitos civis, saia de sua comunidade e para viver no meio urbano. Ao contrário, o índio poderá gozar de seus direitos civis mesmo que continue habitando a aldeia da qual faz parte, seguindo os seus usos, costumes, tradições e culturas com os quais foi criado. E este índio será um índio integrado.

Ainda, um índio que conhece seus direitos, emanados da lei, não pode ser tido como não-integrado, pois para isso, além de conhecer o idioma português, teve, de alguma forma, acesso à lei.

Tanto o é que o artigo 8º da mesma lei estabelece que serão nulos os atos praticados entre o índio não integrado e qualquer pessoa estranha à comunidade indígena se não houver assistência do órgão tutelar competente. A lei é clara ao dizer índio não integrado, resultando óbvio que o índio integrado, e até mesmo o índio em vias de integração, pode praticar atos com pessoas estranhas à comunidade indígena mesmo sem a tutela ou a assistência exigida para aquele.

Nesse sentido, o artigo 9º expressamente declarou que qualquer índio poderá requerer ao Juiz competente sua liberação do regime tutelar, investindo-se na plenitude da capacidade civil, desde que preencha os seguintes requisitos:

a) idade mínima de 21 anos: esse requisito deve ser olhado com cautela, haja vista ser a lei 6.001 datada de 1973, época em que vigia o Código Civil de 1916, diploma que estabelecia que a maioridade civil e, conseqüentemente, a capacidade absoluta, eram adquiridas quando a pessoa atingisse a idade de 21 anos. Insta lembrar que referida norma foi revogada pela novel legislação, qual seja, a lei 10.406/02, o novo Código Civil, que diminuiu para 18 anos a idade da maioridade civil e da capacidade absoluta. A nova idade deve, por óbvio, ser aplicada aos índios.

b) conhecimento da língua portuguesa: o fato de a lei exigir que o índio conheça o idioma vernacular não significa que ele deva se comunicar com seus conterrâneos, obrigatoriamente, em português. O que a lei exige é que o silvícola conheça a língua portuguesa, mesmo que ele viva na aldeia e se comunique com seus semelhantes na língua em que foram criados. Vale lembrar, aqui, que o propósito da lei é integrar o índio à comunhão nacional de forma progressiva e harmoniosa, preservando sua cultura.

c) habilitação para o exercício de atividade útil, na comunhão nacional: inciso curioso, exige que o índio seja habilitado para desenvolver atividade que seja útil para a nação não-indígena. Curioso porque o inciso III do artigo 4º da mesma lei diz que o índio será considerado como integrado quando for incorporado à comunhão nacional, mesmo que conservem seus usos, costumes e tradições, sem mencionar este requisito.

d) razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional: chegamos, aqui, ao cerne da questão. Para que o índio possa requerer sua liberação do regime tutelar, além dos demais requisitos, ele deve ter uma razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional. Isto significa que não se exige que o índio conheça a fundo os usos, costumes, tradições e cultura nacionais, mas que ele apenas tenha um conhecimento superficial, ou seja, uma razoável compreensão. Razoável compreensão esta que não deve recair sobre assuntos banais, que o índio desenvolva em sua comunidade, mas sobre assuntos e atividades desempenhadas pela comunidade não-indígena. Como exemplo, cite-se o índio que conhece seus direitos, emanados de lei estranha à comunidade silvícola. Este índio não tem apenas um conhecimento da língua portuguesa, mas a fala fluentemente. E não tem apenas uma razoável compreensão dos usos e costumes nacionais, pois conhece a lei. Conhece-a de tal formal que, às vezes, tem a falsa idéia de que é inimputável, arquitetando e participando de ações delituosas, como seqüestros e tráfico de entorpecentes, pensando estar protegido pela inimputabilidade, decorrente de sua suposta incapacidade, conforme veremos a seguir.

Das Normas Penais:

O Direito Penal, ao se deparar com um delito praticado por um incapaz, não aplica as penas previstas para o crime, mas Medida de Segurança, se relativamente incapaz. Se o agente era, ao tempo da ação ou da omissão ilícita, inteiramente incapaz, será isento de pena, assim como os menores de 18 anos, ainda que tenham desenvolvimento mental completo. É o que determinam os artigos 26 e 27 do Código Penal pátrio, a que se chama inimputabilidade penal.

Daí, fala-se que os índios são inimputáveis, ou seja, não podem receber penas, pois são considerados incapazes pela lei. No entanto, conforme demonstrado acima, há graus de integração do indígena com a comunhão nacional que o torna capaz de exercer direitos civis.

Essa integração do silvícola com a comunhão nacional, que lhe confere a oportunidade de gozar de direitos civis, também lhe traz a possibilidade de poder ser apenado, pois passa a ser visto, pelo ordenamento jurídico, como se capaz fosse, situação que, de fato, ostenta.

Nesse sentido, a lei 6.001/73 trouxe à lume o Título VI, intitulado Das Normas Penais, subdividido em dois capítulos, tratando o primeiro dos princípios e o segundo dos crimes contra os índios.

O artigo 56 da referida norma estabelece que, in verbis:

No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola.

Perceba o leitor, aqui, que a lei é clara ao estabelecer que o índio pode, sim, ser submetido às penas previstas em nossa legislação penal, desde que alguns requisitos sejam atendidos, como a atenuação da pena de acordo com o grau de integração do silvícola com a comunhão nacional. Ainda, a lei não faculta ao Magistrado a decisão de atenuar a pena a ser aplicada ao silvícola, mas a impõe, devendo tal determinação ser respeitada, por óbvio.

Como não poderia deixar de ser, mister se faz mencionar que ao índio perfeitamente integrado à comunhão nacional, ou seja, aquele que conhece tão bem os usos, costumes e leis nacionais que é capaz de arquitetar e participar de ações criminosas, ações estas que são cada vez mais corriqueiras, deve ser aplicada a pena por inteiro, levemente atenuada. E a referida atenuação faz-se necessária por se tratar de exigência legal, haja vista que no momento em que decidiu por praticar a ação tida como criminosa, era plenamente capaz e, conseqüentemente, imputável.


1 Rubens Capistrano é advogado em São Paulo. Graduado em Direito pela FMU. Pós-graduado em Direito Ambiental pelo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação das Faculdades Metropolitanas Unidas CPPG-FMU.

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