-Me chama o ‘F-R-R-A-T-A-S!’ - bradou o Sr. Joseph com o carregado sotaque alemão.

-Sim, senhor. – respondi de pronto, e saí da sala à procura do tal homem.

-Quem é o ‘F-R-R-A-T-A-S?’ –perguntei à Ana Maria, a pernóstica secretária.

Sem tirar os olhos da velha máquina de datilografia remington, ela respondeu indiferente: - não conheço.

Eu ainda estava me acostumando ao toque da cigarra do diretor. Um toque para chamar o supervisor, dois toques para a secretária e três toques para mim. Quando o terceiro toque era mais longo, todos no escritório sabiam que ‘seu José’, como nós o tratávamos, estava de mau humor e quando isso acontecia, geralmente sobrava pra mim.

Da minha pequena mesinha até a Diretoria, eram cerca de quatro metros, mas naquele dia, quando o último toque da cigarra se prolongou mais do que de costume, os olhares de piedade dos colegas fizeram o percurso parecer uma via crucis.   

Com apenas quatorze anos, eu era o mascote da empresa. Tímido e franzino, eu fora contratado havia dois meses, para ser o novo oficce boy, substituindo o Luiz Tomás. Chegava a ter pesadelos com o velho Joseph. Pelos corredores da empresa, na famosa “rádio peão”, diziam que ele havia sido um antigo oficial de Hitler e que fugira da Alemanha após a queda do temido ditador.

-Você sabe quem é ‘F-R-R-A-T-A-S?’ Eu perguntava desesperado a um e a outro. O tempo passava velozmente.

-Quem? ‘F-R-R-A-T-A-S?’ Será que você ouviu direito, menino?

Ninguém parecia conhecer o sujeito.

O fato é que ‘F-R-R-A-T-A-S’ era um desconhecido e não havia outra saída, eu teria que voltar à sala do homem para dizer que não havia entendido.

- d-d-desculpe seu José, mas... o senhor q-quer falar com q-q-quem mesmo?  -gaguejei

-Você está surda rapaz? Eu falei ‘F-R-R-A-T-A-S !’ Serrá possível uma cosa dessas?

Saí voando da sala, e ainda sem fazer a menor ideia de como achar o ‘F-R-R-A-T-A-S’.

Dessa vez o meu desespero comoveu muitos colegas, que saíram de suas mesas para me socorrer. Cada um a seu modo tentando adivinhar quem seria o tal ‘F-R-R-A-T-A-S’.

-Deve ser o FARIAS, só pode ser ele.  

-Mas não trabalha nenhum FARIAS aqui.

-É mesmo.

-Será que ele quer batatas FRITAS?

-Você tá louco! Onde já se viu alemão gostar de batata frita.

-Quem sabe ele quer água FRIA?

Eu ouvia em silêncio as muitas as conjecturas, mas as tentativas pareciam distanciar cada vez mais a verdadeira identidade do procurado.

Finalmente alguém disse o que eu não queria ouvir:

- Você vai ter que voltar lá, garoto.

A essa altura, passados tantos minutos, o homem estava furioso e tão vermelho como se tivesse passado o dia inteiro numa praia do Nordeste brasileiro em pleno verão, sem usar protetor solar. Com quase dois metros de altura e grandes olhos azuis, eu tinha certeza que dessa vez ele me estrangularia sem que eu pudesse me despedir dos meus pais, e que nunca mais veria a Mariazinha do ponto de ônibus. E logo agora que eu estava criando coragem para falar com ela.

A minha boca parecia anestesiada quando balbuciei que não havia entendido. Foi como se eu tivesse saído do dentista, pois falava e cuspia ao mesmo tempo. As pernas tremiam diante daquele gigante furioso e pronto a me empolar.

Quando o suposto ex-nazista pôs-se a gritar impropérios e bateu furiosamente com o punho fechado na grande mesa de mogno, meus olhos acompanharam como que em câmera lenta a decolagem do grampeador que rodopiou no ar para cair novamente na mesa, transformando aquela sala em um circo de horrores.

Saí lentamente dessa vez. Minhas pernas não tinham mais forças pra correr. Marinete, a recepcionista, viu a cena, não se conteve e começou a chorar.

-Podia ser com o meu filho! -Podia ser com o meu filho!   Ela repetia sem parar.

Novo agrupamento ao meu redor, novas tentativas de traduzir a misteriosa palavra ‘F-R-R-A-T-A-S’.

De repente, a porta do banheiro dos homens se abre e surge a figura displicente e pálida do contador. O sujeito estava há mais de meia hora no banheiro, vítima de uma terrível diarreia.

Todos olham ao mesmo tempo para ele e, como se fosse um coral ensaiado, pronunciam em uníssono: - FREITAS.

Era ele, só podia ser ele.

Imediatamente pegaram o cara pelo braço, e ele, sem entender o que estava acontecendo, foi conduzido até a sala do Joseph.

Era ele mesmo.

Bendito e maldito Freitas.

Tinha que sumir exatamente na hora em que foi convocado?

Freitas não escapou de levar também uma severa bronca porque havia demorado e tentou em vão explicar o que estava fazendo, mas para o velho Joseph isso não interessava. De pé diante do nosso algoz, nos mantivemos inertes enquanto ele destilava seu mau humor. Porém, nesse instante eu suspirei aliviado porque pude compartilhar a minha tragédia com o verdadeiro culpado.