O currículo oculto é o eixo que alavanca e sustenta os tensionamentos dentro da escola; os jogos de poder, os espaços disputados, o bullying, o rosto real da escola, e não o mitificado, não o socialmente conveniente, não o retoricamente posto. É ele o subterrâneo que emerge a cada momento e no qual se fixam as tendências da escola, onde se dão as insurgências, as eventuais neurastenias e que reflete a cultura própria de cada escola. Os focos de resistência docentes e discentes estão ali.

No entanto, ao mesmo não é dada a relevância necessária, que isso fica para os estudos do currículo formal, como se apenas aquele fosse o norte a ser (per) seguido pela escola. Ocorre então que há duas espécies de currículo ignoradas, passadas a lo largo da cotidianidade da escola. Um deles é o currículo oculto, que ora falamos e o segundo é o currículo nulo, que, pretendo, será objeto de outro artigo.

Embora as áreas pedagógicas saibam ou tenham uma visão mais ou menos acurada do currículo oculto, não lhe é dada atenção, o que disfarça ou oculta sua essência e aplicabilidade. O que temos, então? Sua sonegação enquanto objeto de análise pedagógica. O cerne da indisciplina, da sexualidade exacerbada, da agressividade, das posturas de resistência, da acriticidade, da rigidez, das relações docência-discência e das faltas de comunicação internas, por exemplo, não residem na formatação do currículo formal, mas, sim nos estudos do currículo oculto; aqui se estruturam valores, comportamentos e atitudes.

O currículo formal se destina muito mais à seleção e recorte epistemológico dos temas que serão abordados na e pela escola, atendendo aos variantes do processo político-pedagógico e ao que se insere dentro da pretensão ideológica dessa mesma escola, ou, amplo modo, do sistema educacional que lhe dá sustentação.  Por outro lado, se pensarmos em estudos culturais dentro do âmbito escolar, veríamos a relevância do currículo oculto.  Tomaz Tadeu da Silva explicita que “O poder socializador da escola não deve ser buscado tão-somente naquilo que é oficialmente proclamado como sendo seu currículo explícito, mas também (e talvez principalmente) no currículo oculto expresso pelas práticas e experiências que ela propicia.” 1

Entendo que o currículo oculto deveria estar inserido no planejamento pedagógico da escola. Mais: que sua não inserção implica no divórcio entre a realidade e as pretensões de desenvolvimento do currículo formal. A interferência e as perturbações a que se vê exposto o processo educacional pela não abordagem do currículo oculto são por demais evidentes. Quando se sabe, por exemplo, que cerca de trinta por cento do tempo que deveria ser dedicado às aulas é desperdiçado2   por várias razões, nota-se a sua importância. É a cultura da escola que, de certo modo, autoriza as frequentes interrupções, atrasos, indisposições, indisciplinas  e a indiscutível precariedades na utilização do tempo que deveria ser dedicado à aprendizagem. Tal cultura não é um exercício de ficção, mas um produto socialmente construído e, temo, temerariamente adotado.

Então, o que se faz é estabelecer regramentos, normas, convocar os pais para reuniões (nas quais os mesmos na verdade tem o mínimo de vontade de comparecer e quando o fazem muitas vezes vem para a contestação ampla e aberta, partindo do princípio de que escola, quando chama, é pra reclamar do filho – no que tem razão, na maior parte dos casos), entupir os serviços de orientação escolar de papéis e de extintores, para que os mesmos apaguem os já habituais e diuturnos “incêndios” indisciplinares e assim por diante.

A carência de planejamento do currículo oculto e de seu real entendimento no sentido de fazer com que a escola adote uma estratégia pedagógica em relação ao mesmo e trabalhe efetivamente temas como convivência, perdas e lutos psicológicos, autoestima, responsabilidade, disciplina, atitudes, caráter adquirido e valores em relação a situações reais resultam em:

a)      Perda de foco da orientação escolar, que passa a funcionar como um serviço de emergência precarizado dentro da instituição, onde o papel e os problemas disciplinares tomam ainda mais tempo do que o destinado às funções típicas do serviço;

b)      Tensionamentos nas relações entre a supervisão escolar e os professores que, não raro, utilizam o tempo que deveria ser dedicado ao planejamento para purgar culpas muitas vezes inexistentes em relação aos problemas de indisciplina e assim por diante, o que desestimula uma otimização do tempo e das prioridades afeitas àquela área de suporte;

c)       Provocam uma inflação normatizadora e normalizadora, no mais das vezes sem qualquer efeito prático, uma vez que as possibilidades disciplinares das escolas estão contidas em diplomas legais esparsos, especialmente no Estatuto da Criança e do Adolescente e em instrumentos legais expedidos pelos órgãos responsáveis pela política e sistema educacional mantenedor;

d)      Interferência no processo educacional, que é maior que o processo ensino-aprendizagem, pois a escola tem um papel não apenas informativo, mas formativo em seu sentido amplo.

Assim, desenvolver o currículo oculto não é apenas uma questão de regrar disciplina, é muito mais que isso, é necessário e, como sabem os que levam a educação minimamente a sério, urgente. Um bom primeiro passo seria estudá-lo de modo profundo e, possivelmente, iniciar-se uma estratégia que premie um contato constante entre os atores que compõem o processo educacional amplo senso: escola, alunos, pais e comunidade. Em princípio, um trabalho de médio e/ou de longo prazo que, sem dúvida, renderá frutos que serão revertidos não somente na melhoria de índices de aproveitamento dos tempos dedicados aos estudos, mas que, especialmente colocarão em uma pauta real, e não meramente discursiva, as situações de vida que a escola, normalmente, passa ao largo.

O currículo oculto, se bem planejado e estudado é o principal alicerce  à cidadania consciente. A ele, pois. 

REFERENCIAS

1 - SILVA, Tomaz Tadeu da. Democracia: as lições e as dúvidas de duas décadas. Publicado em educa. fcc.org.br/pdf/cp/n73/n73a06.pdf. Acesso em 21/05/2012, às 18h15min.

2 –  VENTURINI, Fábio. Pouco tempo para o ensino aprendizagem. In http://www.profissaomestre.com.br/view/action/visualizarMateria.php?cod=907. Acesso em 21/05/2012, as 19h51