Ana Paula da Conceição Rebelo [1]

Resumo

Através deste artigo pretende-se abordar de maneira sucinta as contribuições que as reflexões feitas no campo do pós-estruturalismo trouxeram para os estudos pedagógicos, tratando o currículo - enquanto política cultural, bem como enfatizar diferentes possibilidades de organização curricular que objetivam enquadrar os "outros" em identidades nomináveis, constantes nos Parâmetros Curriculares Nacionais. O advento da pós-modernidade trás à tona o movimento pós-estruturalismo, onde muito se discute sobre a construção e a significação da identidade, nos vários aspectos que ela abrange. Os teóricos do pós-estruturalismo e dos estudos culturais trouxeram várias contribuições neste sentido, fazendo análises que promoveram a desconstrução de muitas "certezas" tidas, até então, como inquestionáveis. Finalmente, considerando-se alguns aspectos do currículo, o que pressupõe respeito às identidades, ocorre à possibilidade de ampliar-se o espaço político e social dentro da escola, pois ao se contemplar, no espaço educativo, o contexto social e cultural escolares, está-se diante de elementos para a construção de novas noções a partir de suas próprias. Elucida-se a autonomia e a responsabilidade de cada indivíduo na construção da história social, sem provocar exclusões e solidificando as identidades.

Palavras-chave: Parâmetros Curriculares Nacionais-Currículo - Diversidade - Identidade.

O reconhecimento do caráter multicultural de grande parte das sociedades leva à constatação da pluralidade de identidades culturais que tomam parte na constituição histórico-social da cidadania, nas mais diversas localidades. Nesse sentido, autores como Hall (1997), Featherstone (1997), Canen (1995; 1997b), Candau (1997), Coutinho (1996) e Grant (1997) alertam para a necessidade do reconhecimento da fragmentação de uma noção de identidade fixa e bem localizada, enfatizando a pulverização das identidades culturais de classe, gênero, etnia, raça, padrões culturais e nacionalidade a serem levadas em consideração em práticas pedagógico-curriculares, voltadas à construção de uma sociedade democrática e ao desenvolvimento da cidadania crítica e participativa.

Diante desse panorama, a educação multicultural voltada para a incorporação da diversidade cultural no cotidiano pedagógico tem sido tema importante em debates e discussões nacionais e internacionais, buscando-se questionar pressupostos teóricos e implicações pedagógico-curriculares de uma educação voltada à valorização das identidades múltiplas no âmbito da educação formal. No Brasil, esse debate assume especial relevância no contexto da elaboração de uma proposta curricular nacional - os Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997) -, que inclui "pluralidade cultural" como um dos temas a serem trabalhados.

Autores tais como Moreira (1996, 1997) e Lopes (1995) têm contribuído para a discussão e "desnaturalização" de discursos curriculares, identificando o vínculo entre cultura(s) e poder que constitui a seleção, a hierarquização e a valorização diferencial de saberes em sua formulação. Questionam, entre outros aspectos, a concepção de currículos que se pretendem "nacionais", situando-os em uma visão neoliberal de educação voltada à homogeneização de saberes em torno de competências tidas como "necessárias" para a modernidade. Em tal perspectiva, currículos nacionais são apontados como instrumentos de controle, pautados por conceitos de qualidade e produtividade que desconhecem sujeitos, saberes e formas de conhecimentos plurais. Em sociedades multiculturais, essas questões assumem particular significado, já que vislumbra uma sensibilidade para a maneira como a pluralidade de vozes e de identidades culturais têm sido contempladas nas propostas curriculares em questão.

Nesse contexto, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), publicados pelo MEC pretendem atender a uma necessidade prevista na Constituição Brasileira de 1988, que determina ser dever do Estado estabelecer uma base comum para a educação nacional, com o fito de instituir uma condição que contemple as sociedades multiculturais, até porque, nos últimos tempos, as políticas educacionais têm dado maiores destaques para o currículo que deverá ser adotado nas escolas, de acordo com o que se postula nos parâmetros supracitados.

Desse modo, partindo-se do entendimento que esse assunto é de grande importância para a educação brasileira, especialmente no que tange os seus aspectos pedagógicos, temos como proposta demonstrar: como os Parâmetros Curriculares Nacionais colocam a discussão da diversidade na questão da identidade? A partir desse pressuposto procuraremos percorrer uma trajetória que nos aponte os seguintes aspectos: currículo, cultura e identidade.

De acordo com Silva (1999), os Parâmetros Curriculares Nacionais partem de um conjunto básico de valores universais considerados indispensáveis à manutenção de sociedades democráticas, como o cultivo à tolerância e o respeito a diferenças.

Esse autor afirma que os Parâmetros Curriculares Nacionais tendem a direcionar as necessidades da escola à tarefa de transmitir valores que balizam os comportamentos de indivíduos e grupos na medida em que possibilitam a construção de identidades no contexto da nova ordem mundial, contudo, sabe-se que o "currículo é sempre o resultado de uma seleção". Silva (1999, p.15) e essa seleção é o resultado de um processo que reflete os interesses particulares das classes e grupos dominantes.

Dentre os conceitos norteadores, dos Parâmetros Curriculares Nacionais, destaca-se, o papel da Educação na construção da identidade individual e social, assim como a valorização da pluralidade sociocultural, processos em que a memória tem um papel importante a tal ponto que aparecem inscritas nos objetivos gerais do Ensino Fundamental.

"Conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais;" (BRASIL, Secretaria de Ensino Fundamental, PCNs, Objetivos, p.69)

 

Dessa forma, os questionamentos feitos ao currículo não se limitam a perguntar "o quê?" deve ser ensinado e "como?" deve ser ensinado, mas principalmente "por quê?" este conhecimento deve ser ensinado. O que levou a opção por estes e não por outros conhecimentos? Quais são os interesses que estão por trás dessas escolhas?

Assim, discussão sobre currículo vai além de uma seleção de conhecimentos, envolve sim, uma operação de poder. Desse modo, o currículo é um documento de identidade. "As teorias críticas e pós-críticas de currículo estão preocupadas com as conexões entre saber, identidade e poder" (SILVA, 1999, p.16).

Logo, o currículo precisa ser entendido como um processo de construção social, atravessado por relações de poder "que fizeram e fazem com que tenhamos esta definição determinada de currículo e não outras que fizeram e fazem com que o currículo inclua um tipo determinado de conhecimento e não outro" (Silva, 2002, p. 135). Nesse ponto, o autor enfatiza a importância do papel do discurso e da linguagem numa perspectiva de currículo sob o ponto de vista dos Estudos Culturais, no qual o conhecimento é socialmente construído e mantém relações com a produção de identidades. Nesse sentido, o currículo pode atuar na construção e na reconstrução de identidades e também é constituído por elas; porque o currículo inventa e poderá ser inventado por essas identidades.

Então, se o currículo é um processo de construção sociocultural, fortemente influenciado pelas relações de poder que envolve toda a rede social. Logo, ao selecionarmos os conhecimentos que farão parte de determinado currículo, estamos procedendo a escolhas que refletem nossa própria constituição, nossa identidade. Essas escolhas serão decorrentes do tipo de sujeito que queremos formar, assim, não existe currículo neutro, ele sempre é carregado de intencionalidade. O currículo constitui os sujeitos é também é constituído por eles.

Dessa maneira, falar sobre sociedades multiculturais, ou simplesmente em diferenças, implica adentrar pelos caminhos da identidade, podemos observar que esse fato ocorre a partir do que nos é comum e do que consideramos diferente. Silva (2002, p.9) diz que "... a identidade é, assim, marcada pela diferença." De acordo com este autor, a identidade é marcada por meio de símbolos e por representações que, ao mesmo tempo em que constroem a identidade, fazem uma marcação das diferenças, atuando esta marcação como componente chave em qualquer sistema classificatório, tal como afirma Hall (1997b).

Para Silva (2002), a "identidade e a diferença são estreitamente dependentes da representação". É por meio da representação, assim compreendida, que a identidade e a diferença adquirem sentido. É por meio da representação que, por assim dizer, a identidade e a diferença passam a existir. Representar significa, neste caso, dizer: "essa é a identidade", "a identidade é isso". (SILVA, 2002 p.90).

Portanto, classificamos como iguais todos os que se aproximarem da nossa construção de identidade: branco, classe média, brasileiro, católico, e como diferente o "outro", aquele que se afasta do nosso modelo de identidade: portador de necessidades especiais, negro, pobre, gordo, índio.

Diante do exposto, essa condição nos remete a uma questão: Como olhar para essas diferenças em sala de aula? Através de sua proposta pedagógica, a instituição escolar pode promover tanto a inclusão quanto à exclusão deste indivíduo dito "diferente". É por meio da proposta pedagógica da escola que se concretizam as diferentes filosofias, ideologias e modos de pensar, as diferentes abordagens do processo pedagógico. É nela que são incorporados os vários significados presentes em tantos conceitos, materializados na prática escolar.

Abordando especificamente a questão da diferença no ambiente escolar, Silva (2002) produziu um texto em que trata a "Pedagogia como diferença". Para ele:

"A identidade e a diferença não são entidades pré-existentes, que estão aí desde sempre ou que passaram a estar aí a partir de algum momento fundador; elas não são elementos passivos da cultura, mas tem que ser constantemente criados e recriados. A identidade e a diferença têm a ver com a atribuição de sentidos do mundo social, e com disputa e luta em torno desta atribuição". (SILVA, 2002, p. 96)

E, no tocante ao nosso argumento, objeto deste artigo, pode-se dizer que o pós-estruturalismo não deve ser simplesmente reduzido a um conjunto de pressupostos compartilhados, a um método, a uma teoria ou até mesmo a uma escola. É melhor referir-se a ele como um movimento de pensamento - uma complexa rede de pensamento - o que corporifica diferentes formas de prática crítica. "O pós-estruturalismo é, decididamente, interdisciplinar, apresentando-se por meio de muitas e diferentes correntes". (PETERS, 2000, p.29), colocação essa que pode fornecer subsídios para a construção de identidades, ou na construção de currículos iguais.

Estudos dentro de uma perspectiva pós-estruturalista sobre currículo questionariam os "significados transcendentais", ligados à religião, à pátria, à política, à ciência, que povoam o currículo. Uma perspectiva pós-estruturalista buscaria perguntar: onde, quando, por quem foram eles inventados?

A partir da abordagem pós-estruturalista, os estudiosos que usam esse referencial colocam em dúvida, questionam as rígidas segmentações curriculares entre os diversos gêneros do conhecimento.

A proposta pós-estruturalista considera, primordialmente, a concepção de um sujeito autônomo, racional, centrado, unitário; construindo, sob estes paradigmas, todo o empreendimento pedagógico e curricular, tornando-o, assim, resultado de uma construção histórica muito particular. (SILVA, 1999).

Pode-se considerar, então, que uma das maiores contribuições do campo dos estudos culturais para o processo educativo seja a proposta de diálogo na diversidade. Somos seres múltiplos, logo o que é central é a diferença. As identidades são construídas na relação entre as diferenças. No campo teórico dos estudos culturais cada cultura tem suas próprias e distintas formas de classificar o mundo e é pela construção de sistema classificatório que a cultura nos propicia os meios pelos quais podemos dar sentido do mundo social e construir significados. Deve-se considerar que as diferenças fazem parte de um multiculturalismo, o que deve ser levado em conta na construção do currículo escolar. Contudo, pergunta-se: Como determinar o que estudar e o que deixar de estudar? Qual a ênfase principal do currículo? Identifica-se, neste contexto, um vínculo entre conhecimento, identidade e poder. A construção do currículo será perpassada por essas relações, que são relações de continuidade.

O currículo, dentro de uma visão baseada no campo teórico pós-estruturalista, deve buscar ampliar o espaço político-social dentro da escola, pois que também é considerado como espaço de produção e criação de significados. Um olhar pós-estruturalista do currículo parece possibilitar uma maior reflexão para a construção de uma proposta curricular que vise uma educação inclusiva, que trate o currículo como uma prática cultural e também, como prática de significação.

"A tradição crítica em educação nos ensinou que o currículo produz formas particulares de conhecimento e de saber, que o currículo produz dolorosas divisões sociais, identidades divididas, classes sociais antagônicas. As perspectivas mais recentes ampliam essa visão: o currículo também produz e organiza identidades culturais, de gênero, identidades raciais, sexuais... Dessa perspectiva, o currículo não pode ser visto simplesmente como um espaço de transmissão de conhecimentos. O currículo está centralmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos, naquilo que nos tornaremos. O currículo produz, o currículo nos produz". (SILVA, 2001b, p.27)

Dessa forma, percebe-se que o conhecimento se dá na relação social, onde os processos de significação, que produzem as identidades e por conseqüência as diferenças, estão em conexão com as relações de poder existentes. Neste sentido, o currículo é uma representação formal dos conceitos que surgem na caminhada, dos sujeitos enquanto seres sociais, que são reproduzidos nas instituições escolares em forma de saberes ou verdades.

No momento em que se reconhece a interferência dos grupos sociais na construção do currículo escolar, admite-se também que se faz necessária uma reavaliação dos referenciais que servem para determinar a inclusão de certos saberes e de certos indivíduos, o que implica, necessariamente, na exclusão de outros. Assim, através do currículo, são fabricados, parâmetros que servirão para a classificação dos indivíduos na escola: saberes, competências, sucessos, fracassos.

A discussão da construção do currículo é assunto premente, que deve ser foco de atenção e discussão e precisa, necessariamente, ser partilhada por todos os indivíduos da comunidade na qual a escola está inserida, pois que será expressão das marcas das relações sociais de sua produção.

"A obtenção da igualdade depende de uma modificação substancial do currículo existente. Não haverá "justiça curricular", para usar uma expressão de Robert Connell, se o cânon curricular não for modificado para refletir as formas pelas quais a diferença é produzida por relações sociais de assimetria". (SILVA, 1999 p. 90)

 

Considerando os aspectos argumentados, pode-se afirmar que, a abordagem pós-crítica do currículo, o que pressupõe respeito às identidades, demonstra à possibilidade de ampliação do espaço político e social na escola, pois ao contemplar no espaço educativo os contextos sociais e culturais escolares, estaremos fornecendo a eles elementos para a construção de novas noções a partir de suas próprias. Desse modo, elucida-se a autonomia e a responsabilidade de cada indivíduo na construção da história social, reafirmando as identidades, elucidando as diferenças (forma de ver, pensar e agir) sem provocar exclusões.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais/Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997. 126p.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da

Silva e Guacira Lopes Louro. 4. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

PETERS, Michel. Pós-estruturalismo e Filosofia da Diferença. Belo horizonte: Autêntica, 2000.

SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

____. Documentos de Identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

­­____. (org.) O que é afinal Estudos Culturais? 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000c.

____. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000a.



[1] Pedagoga, especializanda em Educação Especial e Inclusiva e Auxiliar Pedagógica da Faculdade da Amazônia – FAAM / Pa.