I ? Introdução

A Cultura Popular está associada ao povo, geralmente aparte excluída da sociedade. Por ser uma manifestação natural de quem a produz ela não está vinculada ao conhecimento científico, planejado, e sim ao aspecto vulgar ou espontâneo das emoções individuais e coletivas de uma comunidade.
A manifestação popular é uma eclosão de sensações que partem da inspiração de acontecimentos locais e rotineiros. No entanto, essas manifestações têm enfrentado a homogeneização imposta pela Cultura Erudita e principalmente pela Cultura de Massa, que insiste em mecanizar a cultura brasileira, tornando-a sem vida, sem valor humano, oca de sensações, naturalidade e conhecimentos ímpares de determinado grupo social ou comunidade.
Por isso, esta pesquisa busca mapear a expressão e sobrevivência da Cultura Participativa por meio do testemunho vivo de quem a constrói, e faz materializar-se num quadro singular, pois a obra de arte popular constitui um tipo de linguagem por meio da qual o homem do povo expressa sua luta pela sobrevivência. Cada objeto é um momento de vida. Ele manifesta o testemunho de algum acontecimento, a denúncia de alguma injustiça.

II ? A Cultura Popular

Para falarmos de Cultura Popular é necessário apontarmos um outro conceito de cultura. A palavra "cultura" é derivada da palavra latina "cultura", que significa, o cultivo ou o cuidado de alguma coisa, tal como grãos ou animais. A partir do século XVI em diante, este sentido original transpôs a dimensão agrícola para o processo do desenvolvimento humano, associando o cultivo de grãos ao cultivo da mente. A palavra cultura já foi utilizada como sinônimo ou contraste para a palavra civilização, com o sentido voltado ao iluminismo europeu e a crença do caráter progressivista da Era moderna.
Durante muito tempo cultura e civilização foram sendo usadas para descrever o desenvolvimento humano, restringindo o conceito à aquisição de uma postura culta, ou seja, o enobrecimento da mente e do espírito, privilégios dos europeus do século XVIII.
Para Thompson (1995, p.170), o conceito de cultura "não poderia carregar o peso desses pressupostos por muito tempo". Por isso,
A mudança decisiva aconteceu no fim do século XIX, com a incorporação do conceito de cultura à nova disciplina emergente ? a antropologia. Nesse processo, o conceito de cultura foi despojado de algumas de suas conotações etnocêntricas e adaptado às tarefas da descrição etnográfica. (THOMPSON, 1995, p.170).

A partir de então, o estudo de cultura passou a desvincular-se do enobrecimento da mente e do formato europeu de se pensar cultura e partiu para a elucidação dos costumes, práticas e crenças de outras sociedades e povos. O olho deveria agora "captar a alma daquele com quem se identifica e vice-versa". (SILVA, 2004.p.35).

III ? Popular x Erudito

No fim da idade média a cultura começa a passar por uma mutação impulsionada pelos interesses das classes dominantes, voltando-se para o conhecimento erudito com acesso apenas para os mais favorecidos. Esse conhecimento passa então a contrapor as estruturas materializadas pelas manifestações populares (os menos favorecidos) e incorporar um sentimento de superioridade renegando qualidades nascidas do meio do povo, agora inferiores, atrasadas e superadas.
Uma guerra tomou então espaço, com vantagens e desvantagens para ambos os lados no processo do desenrolar da história da humanidade. De certa forma, os pensamentos eruditos e a massificação uniram forças para descaracterizar a imagem da cultura popular. Desde então, surgem preocupações quanto as tentativas de classificação das formas de pensamento e ações das comunidades mais pobres da sociedade. O que seria então essas manifestações populares e o que elas representam?
Para Santos (2006), a cultura popular é "as manifestações culturais dessas classes, manifestações diferentes da cultura dominante, que estão fora de suas instituições, que existem independentemente delas, mesmo sendo suas contemporânea".
Essa classe dominada partilha um processo social comum e coletivo. Portanto, há a necessidade do indivíduo reconhecer o valor de seu cotidiano e da identidade étnica que surge a partir das relações interpessoais.
Para Silva, a identidade étnica,
"implica a afirmação do nós diante dos outros. Quando uma pessoa ou um grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo com que se defrontam. É uma identidade que surge por oposição. Ela não se afirma isoladamente". (SILVA,2004,p.24).

É desta identidade que estamos em busca.

IV ? Aracati: Aragem Cheirosa ? aprendendo a cultura local.

Quando Pero Coelho de Souza trouxe suas embarcações para o Brasil, vindas da Europa, jamais pensou encontrar uma terra que seria o marco da história do ceará. Aportando em Aracati, começou a idealizar uma cidade que progrediria em riquezas gradualmente. Surgiu então o Arraial do Porto dos Barcos do Aracati, pois suas primeiras habitações foram construídas de forma desordenada, não constituindo ruas.
Em 1714, elevou-se a Vila de Santa Cruz do Aracati, isso porque suas casas passaram a assumir uma forma mais organizada (em ruas).
A região logo se destacou pela criação de gado, destinado ao comércio de carnes e couros. O principal produto era carne de charque (carne velha), produzida com facilidade devido a fabricação de sal e ao clima litorâneo tropical.
Quando os portugueses chegaram às terras do Aracati, encontraram muitos resquícios históricos que apontavam a presença indígena nas terras. Estes seriam os seus primeiros habitantes. As tribos vieram da linhagem Tupi Guarani e foram os primeiros a passarem pelo processo de colonização e escravidão. Porém, como os índios se negaram ao trabalho escravo, pois não tinham talento para a lavoura (eles eram muito indisciplinados) os colonizadores optaram pelos negros vindos da África.
O processo da colonização brasileira nunca ambiciou a idéia de progresso para a terra e sim retirar da terra o progresso para seus interesses individuais. Sobre este aspecto, Freire (2005, p.75) diz que: "A nossa colonização foi, sobretudo, uma empreitada comercial. Os nossos colonizadores não tinham ? e dificilmente poderiam ter tido ? intenção de criar, na terra descoberta, uma civilização. Interessava-lhes a exploração comercial da terra".
Houve um tempo em que "a população negra no Aracati era bem maior que a população branca". (Entrevista oral com o historiador Ocivan Carnaúba, em 23 de abril de 2007). Na época foi construído um pelourinho no centro da cidade para açoitar os escravos, e atualmente foi levantado um monumento chamado Cruz das Almas, em lembrança dos negros e ladrões que lá morreram.
Decorrido quase um século é que a Vila de Santa Cruz do Aracati veio a elevar-se a condição de cidade, em 25 de outubro de 1824, sob a jurisdição do brigadeiro José Joaquim Coelho. A vila passou a ser chamada de Aracati, que na língua tupi guarani significa Bons Ventos, Ventos que Sopram ou Aragem Cheirosa.
Entre 1750 e 1790, a grande circulação de dinheiro levou o Aracati ao ápice comercial e social. Veio então, a construção e reforma de igrejas, entre elas, a igreja Matriz, famosa por sua exuberância e estilo barroco. Da Europa vieram os azulejos portugueses, que perfilam estampados nos casarões da antiga Rua Grande (Cel. Alexanzito) e se entrecruzam na riqueza de detalhes executados pela pintura manual.
Depois de tanto brilho de desenvolvimento a cidade começou a perder estabilidade devido a chegada da seca e diminuição da criação de gado. Fernandes explica que;
A decadência da cidade começou em 1924, com a cheia do Rio Jaguaribe, a maior até então registrada, ocasião em que o leito do rio foi assoreado e os navios não puderam mais entrar na barra. Passaram a descarregar em Fortaleza, onde fora construída uma bela ponte, que adiantava o mar por uns duzentos metros. A crise comercial, iniciada em i924 com a ausência dos navios na cidade, piorou com a recessão nos Estados Unidos em 1929, que abalou a economia mundial, obviamente, atingiu a economia do Aracati. Acrescentemos a esses fatores a construção da BR ? 116 passando por Russas. Aracati ficou isolada. Estes e outros fatores foram determinantes para a decadência da cidade. (FERNANDES, 2006, p.23-24).

V ? Formiguinha: Uma realidade cultural apresentada como tal.







Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Essa é a cantiga preferida de Dona Francisca. Talvez Casimiro não tinha nem imaginado que esses versos estariam hoje, estampados na memória de uma mulher tão forte e guerreira.
Aos 10 de setembro de 1945, nascia em Aracoiaba - CE, Francisca Alves da Silva, a famosa Formiguinha da Várzea da Matriz. Durante a seca de 1958, veio para Aracati, casada com um homem de Itaiçaba com quem teve seus onze filhos. Dos filhos morreram quatro e um desapareceu já bem jovem, causando muito transtorno e sofrimento para toda a família. "Até hoje eu nunca isqueço de meu fio", diz a Formiguinha cheia de lembranças.
Depois de terminado o relacionamento com seu marido, sua vida em Aracati foi uma forma de depositar nas malas esperanças de formar os filhos e tentar conseguir uma vida melhor.
Os dramas, histórias e causos que Formiguinha fez questão de colocar em sua mala, são heranças de uma infância ruça de brincadeiras e folguedos, repassados pela professora Chiquinha Joana, que movimentava um grupinho de teatro na época, e que já começava a delinear uma história artística ? cultural na vida de Francisca Alves da Silva.
A história de Formiguinha traz consigo uma realidade cultural que tem sua lógica interna, "a qual devemos procurar conhecer para que façam sentido as suas práticas, costumes, concepções e as transformações pelas quais estas passam. É preciso relacionar a variedade de procedimentos culturais com os contextos em que são produzidos". (SANTOS, 2006, p.8-9).
Tudo que está camuflado nas entrelinhas dos dramas, poesias e músicas dessa artista do povo é se não, um reflexo de seu próprio contexto social e de sua participação crítica no meio em que vive.
Para Formiguinha a aprendizagem hoje em dia é mais difícil porque as pessoas aprendem de forma mecanizada. Anteriormente, a aprendizagem era conseguida, assimilada ou formada através de conceitos, e esses conceitos partiam do processo de leitura. Sobre este aspecto ela diz: "Antigamente, eu lia um livro e aprendia tudo. Hoje, são cinco, seis, sete matérias. Como é que aprende"?
De acordo com ela, o homem era machista e não queria brincar de mulher (no teatro), portanto, só as mulheres faziam tudo, se vestiam de homem e dramatizavam os personagens. Essa grande senhora de sua própria história, acredita que a arte hoje, não guarda a beleza de "antigamente", mas continua conquistando as pessoas.
Uma observação importante é que todas as suas músicas e histórias são escritas por terceiros, pois ela, já com 62 anos, tem dificuldade para escrever e nunca quis passar sua arte para o papel. Preferiu deixá-las armazenadas na "cachola". Ela conhece todos os ritmos, letras e histórias que aprendeu de "boca em boca" na sua época.
Hoje, cumpre seu papel de artista, sendo líder comunitária de seu bairro, e presidente de grupos carnavalescos, de quadrilhas, entre outros. Trabalha em casa, fazendo confecção para a sociedade, fantasias e figurinos para a dança e o teatro, pois tem uma habilidade enorme com corte e costura o que lhe dá o sustento por muito tempo.
Esta personagem marcante buscou enraizar tradições em sua comunidade de forma a construir significados e determinou um grupo, uma história, uma vida.
Dessa forma,
Se a cultura está diretamente ligada à construção de significados de um determinado grupo, também nesse emaranhado se dará a construção da identidade, individual e coletiva, marcada por um conteúdo reflexivo ou comunicativo que orienta o desenvolvimento das relações sociais. (OLIVEIRA, 1976, p.5).

Podemos dizer que essa construção de significados está estritamente ligada à identidade étnica, cujo propósito implica a afirmação de nós diante dos outros. Assim, "quando uma pessoa ou um grupo se afirmam como tais, o fazem como meio de diferenciação em relação a alguma pessoa ou grupo com que se defrontam. É uma identidade que surge por oposição. Ela não se afirma isoladamente". (OLIVEIRA, 1976, p.5).
Desse modo, Formiguinha tornou-se personagem ativo na história do Aracati e foi tecendo e re-significando o cotidiano das pessoas a sua volta, por meio de uma arte devastadora, que destrói e constrói e que se afirma a cada momento em todos e para todos.

VI ? Um drama, uma poesia, uma música: Produções de Formiguinha em seu formigueiro.

O Vaqueiro do Ceará

Um fazendeiro tem duas filhas, uma se chama Maricota e a outra se chama Mariquita.
Mariquita casa com um rapaz sem nada pra oferecer. Ele rouba tudo dela e depois foge sem dizer nada. Ela fica grávida e dá muito desgosto ao seu pai. Já Maricota é uma moça caseira, mas muito paqueradora. Um dia ela vai à feira atrás de paquera e se apaixona por um vaqueiro. No mesmo instante leva o vaqueiro para casa.
Em casa Mariquita se punha a reclamar:

Eu já sou dona de casa
Não posso mais passear...
Levo a vida inteira na cozinha a trabalhar.

Minhas mãos são encardidas
De lavar tantas panelas
Se eu fosse uma solteira
Só vivia na janela

Meu marido é muito velho
Muito feio e rabugento
Se eu soubesse não tinha querido
Casar com aquele nojento

Vocês vão me desculpando
Que eu já vou me arretirar
O tempo está se passando
E o nojento está pra chegar

Tão feliz com seu vaqueiro Maricota agora queria se casar e tinha que enfrentar seu pai que tinha medo da filha terminar igual a outra. O vaqueiro cheio de força e simpatia chegou em casa de Pai de Maricota e cantou a sua rima:

Eu sou um vaqueiro
Do sertão do ceará
Eu só vim aqui
Foi pro mode me casar

A menina que eu queria
Para ser minha mulher
Coitada da pobrezita
Eu não sei se ela me quer

Eu vi ontem no mercado
Fazendo compra na feira
Ela quando me viu
Saiu doida na carreira

E Maricota, vendo a situação, se encantou pelo vaqueiro e pegou na sua mão. Saíram de mãos dadas e ela cantando seu refrão:
Pronto seu Chico
O povo vai ficar admirado
De nós sair de braço cruzado

Depois de tanta confusão, o pai aceitou o casório e a filha Maricota saiu feliz da vida para sua lua de mel, mas seu pai continuava com o pé atrás com o vaqueiro do Assaré.
Formiguinha

Dois doidos no portão

Dois doidos e uma cega
Foi parar no Siridó
Era uma noite de festa
Com uma banda de forró

Ao chegar lá no evento
Foi a maior confusão
Botaram a cega pra dentro
E os doidos no portão

A cega caiu na farra
Era pra lá e pra cá
Os doidos só reclamavam
Implorando pra entrar

O forró tava animado
E o porão se divertia
Os dois doidos no portão
Um gritava, outro dizia:

Ai, ai, ai por favor deixa eu entrar
A cega só dá no couro
Se nós dois lhe ajudar.
Formiguinha

A raspadinha

A mulher que raspa o bixo
Pra jogar na raspadinha
Bota o coro ispicho
Fica toda assanhadinha

A mulher inteligente
Raspa o bixo todo dia
Ela fica mais decente
Com a pele mais macia

Por isso minha mulher
Tem prazer e alegria
De raspá o bixo dela
Pra ganhar na loteria

Ela dia ao maridinho
Deixa de ser bestão
Vem raspá a raspadinha
Vamos ganhar um milhão

Todo dia por caprixo
Vai comprar uma cartela
Pra raspá o bixo dela
E eu não vou impatá não

Eu cheguei lá na cidade
Tava o maior rebuliço
Com mulher de toda idade
Querendo raspá o bixo

Ela não quer nem saber
Quando passa na janela
Agora chega você
E quer pegar no bixo dela

Eu também do uma foça
Pra raspá o bixo dela
Ela ainda é muito moça
Muito jovem e muito bela

Ela quer andar desente
Eu não posso ajudá
E assim que muita gente
Pega o bixo pra raspá

Formiguinha

VII ? Considerações Finais

Falar de cultura popular é falar do povo, pois estão completamente associados. Esse povo geralmente está a quem da sociedade capitalista dominante e tem por necessidade tornar vida sua cultura como forma de "gritar" pela vida, e para se opor aos "lobos" da cultura de massa e da cultura erudita que tendem a massacrar as manifestações que tentam acender a expressão da luta pela sobrevivência.
Aracati sempre foi uma cidade nomeada "celeiro de artistas", pois em cada esquina podemos encontrar manifestações da arte estampadas nos rostos e mãos dos aracatienses. Formiguinha é um desses rostos que teima em quebrar paradigmas dentro da sociedade que a cada dia se torna mais e mais burocrática e capitalista. Ela é um exemplo de vivência da arte e da concretização e luta da cultura popular por um espaço em meio a tantos problemas.
E assim Formiguinha de faz presente na história desse município e torna-se estampada nas páginas da história cultural do Aracati, do Ceará e do mundo. E como diz Malinowski (1931,p.621,623), "a cultura compreende artefatos, bens, processos técnicos, idéias, hábitos e valores...a cultura é uma realidade sui generes e deve ser estudada como tal".

























VIII - Referências

FERNANDES, L.C.Aracati: O que pouca gente sabe. Rio ? São Paulo ? Fortaleza: ABC Editora, 2006.
OLIVEIRA, R.C. Identidade e identificação. In: Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Enio Matheus Guazzelli & Cia., 1976.
SANTOS, J. L. O que é Cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006. (Coleção Passos).
THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação ? Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.