INTRODUÇÃO

Iniciar um texto sobre oralidade com a escrita já é uma opção, além, é claro, de ser uma necessidade. Por muito tempo o método oral foi a única forma usada para transmitir conhecimentos, mas com o tempo e com  a evolução da humanidade, surge a escrita e com ela o preconceito e a discriminação pela oralidade. É também com a evolução e curiosidade do homem que o interesse pela história oral progride consideravelmente nos últimos 27 anos. Várias são as teorias de história oral, mas poucas tratam do social como um todo, o que seria indispensável para uma pesquisa produtiva, pois o homem não existe fora do seu meio sociocultural.

O texto oral permaneceu por muito tempo fora do enfoque teórico dos estudos literários, felizmente, não podemos pensar em manutenção da tradição sem memória, nas suas formas de registro e na seleção que se vai registrar. Tanto a escritura quanto a oralidade são condições indispensáveis para a tradição. Virtualmente retido na memória de um transmissor de folclore, O texto oral é produzido no momento de sua performance – “momento em que uma mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida” (ZUMTHOR, 1993) – quando o texto se atualiza, incorporando signos do universo cultural do transmissor. Assim, a criação do texto oral é fruto da transmissão de um intérprete do saber popular e da recepção desse saber por uma platéia.

No presente artigo, discutiremos a História Oral, o texto e poeta como fontes significativas para a compreensão da sociedade que o produz.

1 – REFLETINDO A HISTÓRIA ORAL

Desde os tempos mais remotos, o método oral é utilizado pelos povos para transmissão de suas tradições culturais; com o advento da cientificidade, a partir do século XVII, o testemunho oral vai perdendo gradativamente relevância nos meios científicos, e perde sua importância primordial, a veracidade.

No confronto entre o Oral e o Escrito, a originalidade de ambos divide os historiadores. Duas são as correntes que desde o início dividem a História Oral: a primeira é vinculada as ciências políticas voltadas para as elites e os notáveis; e a segunda encontra-se nas fronteiras da antropologia voltando seus auspícios para os “indivíduos despossuídos de história”. Na primeira metade do século XX, mais especificamente na década de 50 surge nos Estados Unidos o primeiro grupo de historiadores que utilizavam o método oral. Tinham como objetivo reunir materiais para os biográficos vindouros, dando suporte para as ciências políticas. Na Itália, sociólogos e antropólogos são os precursores da Segunda Forma de História Oral. Surgida em meados da década de 60, utilizavam o método oral de pesquisa na reconstituição da cultura popular.

O XVI Congresso Internacional de Ciências Históricas de São Francisco realizado em 1975 contou com uma mesa redonda intitulada “A História Oral como uma nova metodologia para pesquisa histórica”, que muito impressionou os congressistas dando origem ao ponto de partida do que pode ser considerado como o terceiro ciclo da História Oral; ciclo este marcado por reflexões metodológicas e epistemológicas.

Começa então a manifestação de tendência historiográfica, que impulsiona verdadeiros manifestos sobre a história oral como meio de estudar as classes populares. Na França, em 1980, ocorre o primeiro encontro francês de pesquisadores orais.

No Brasil há a criação da Fundação Getúlio Vargas, enquanto que na Argentina, os projetos orais multiplicam-se como estabelecimento da democracia de 1983. Um pouco mais tarde a Espanha recupera seu atraso com muitos projetos, colóquios e seminários que se espalham por todo o território espanhol.

No Japão, em 1986, simpósios e debates historiográficos destacam a necessidade da História Oral, em particular, para colher depoimentos sobre a Segunda Guerra Mundial.

Uma verdadeira comunidade de história oral caracteriza os anos de 1980, pela sua infinidade de colóquios internacionais; época em que cresceu a necessidade de promover programas de história oral para enriquecer museus, arquivos e universidades. A década de 1990 marca o advento do que pode chamar-se de quarta geração. Todos estavam envoltos em um mundo de imagens, som e oralidade influenciada nos Estados Unidos pelos movimentos críticos pós-modernistas, traduzidas na valorização da subjetividade, o que seria para muitos conseqüência ou mesmo finalidade da história oral.

Segundo Emílio Sarde, historiador da Universidade Federal de Rondônia (UFRO), a tarefa do historiador “oral” é escrever de tal modo que os leitores certifiquem-se das origens orais do texto que estão lendo. Os pesquisadores de campo não devem turvar os relatos dos locutores. É necessário que os informantes se inclinem em testemunhos amplos e seguros. Ainda, segundo Sarde Neto, o aumento considerável das curiosidades dos historiadores fez com que a aceitação da história oral pela história universitária progredisse consideravelmente nos últimos tempos. A multiplicação dos acervos fonográficos nos arquivos e museus, as várias reflexões metodológicas ligadas às disciplinas afins nos mostram que já não é possível a banalização da história oral.

A oralidade é a gênese da escrita. Elas são práticas e usos da língua com características próprias, mas não suficientemente opostas para caracterizar dois sistemas lingüísticos nem uma dicotomia. Ambas permitem a construção de textos coesos e coerentes, ambas permitem a elaboração de raciocínios abstratos e exposições formais e informais, variações estilísticas, sociais, dialetais e assim por diante. As fontes orais e escritas requerem instrumentos interpretativos diferentes e específicos, mas são com certeza, fontes incomparáveis para a pesquisa.

Varias são as teorias de história oral, que de fato são teorias de história social como um todo. Os tons políticos do discurso popular carregam implícitos significados e conotações sociais irreproduzíveis na escrita. A literatura de cordel, por exemplo, nos mostra o grau de coletividade em que o indivíduo expositor está inserido, em síntese, a inclusão  da memória coletiva. Fontes orais contam-nos não apenas o que cada povo fez, mas suas alegrias, angústias e anseios; contam-nos o que acreditavam estar fazendo ou como fizeram. Fontes orais nos contam sobre homens, sobre vidas e acrescentam mais conhecimento e sabedoria ao nosso olhar. A literatura oral reproduz e representa a história de uma determinada comunidade, garantindo-a e legitimando-a.

 

2 – A NATUREZA DO TEXTO ORAL

 

O texto oral permaneceu por muito tempo fora do enfoque teórico dos estudos literários, cuja tradição tem privilegiado a escritura como fonte única teorizadora do texto artístico. A partir da década de 70, ampliam-se os espaços de debates sobre literaturas orais e, em 1981 e 1982, durante o Salão do Livro, no Centro George Pompidou, em Paris, esses debates ganham mais consistência. No meio acadêmico e intelectual vem desenvolvendo-se uma nova mentalidade, e um crescente interesse das ciências sociais pela função da voz começa a ser notado. Uma geração de estudiosos do exterior, encabeçada por Paul Zumthor, e do Brasil vem dedicando-se ao estudo da literatura oral, resgatando o seu estatuto de texto artístico, antes privilégio exclusivo da escritura. Dessa forma, esses estudos têm podido ressaltar as especificidades inerentes a sua natureza oral, cuja literariedade, como bem elucida Zumthor (1983, p.39), acentuando a plenitude da função da voz, imprime mais força à sua estrutura moldal, que dá ênfase ao ritmo, que à estrutura textual, legado da escritura.

Conduzindo o imaginário intercultural da memória coletiva de incontáveis gerações, o texto oral mantêm-se virtualmente na memória do transmissor que o ajusta no momento da performance à realidade do grupo a que pertence. Ao discutir a função do interprete e do ouvinte, Zumthor vai conceituar o primeiro como sendo “o indivíduo de que se percebe, na performance, a voz e o gesto, pelo ouvido e pela vista” (1997, p.225) e o segundo como aquele que possui dois papéis: o de receptor e de co-autor (1997, p.242). A relação entre ambos é indissolúvel.

Para Zumthor, o papel do intérprete é mais importante do que o do compositor, pois é a sua performance, o seu desempenho que propiciarão reações auditivas, corporais, emocionais no auditório, ou seja, no ouvinte. A performance do intérprete é, pois, a responsável pela sua força enquanto disseminadora do texto oral. No ato da performance, por vezes, sob a pressão da competência narrativa de uma platéia, introduzem-se signos atualizadores do universo cultural em que se encontra inserindo o transmissor, que vão imprimir-lhe mais funcionalidade e significado narrativo. A qualidade da performance está vinculada à interação entre intérprete, texto e ouvinte.

Com o passar dos tempos, a interpretação, a performance e a própria poesia oral vão assumindo um caráter comercial, e essa transição inicia-se quando o autor passa a exigir seus direitos autorais. Podemos afirmar que a comercialização de sua obra está ligada ao emprego da escrita que, desde seu surgimento, é monopolizada pela classe dominante: enquanto a poesia oral ocupava-se em retratar as angústias dos oprimidos, os poetas eram porta-vozes destes. Esta inversão de valores vai nortear, por muitos séculos, os propósitos e destinos de ambas.

Zumthor defende a possibilidade de que, em função do momento histórico, o texto vai depender de uma oralidade que funcione na zona de escritura ou vice-versa. O fato é que o manuscrito mantém a característica tátil-oral e a escrita vai adquirir mais efeito a partir do surgimento da imprensa. W. Ong diz que “o manuscrito é uma continuidade oral” (ZUMTHOR, 1993), a imprensa no entanto cria uma ruptura neste ponto.

A passagem do oral para o escrito é repleta de confrontações, tensões, oposições completivas e muitas vezes contraditórias; é mais do que transcrição, é transcriação. Embora se tenha consciência da impossibilidade de registro de toda a gama significativa dos signos não verbais produzidos durante a performance, isso não impede que o transcritor se empenhe em minimizar ao máximo essa limitação da escrita. É preciso ter sensibilidade para perceber os vários procedimentos utilizados na exploração de elementos prosódicos, próprios da literatura oral, que transformam as imagens verbais, no discurso narrativo, as imagens auditivas expressas através da seqüências fônicas imitativas. Por meio de onomatopéias, o narrador das histórias orais consegue passar de forma realista, rigorosa e convincente a carga emotiva que está por trás do gesto da personagem, dando a idéia aproximada da dramaticidade. Dessa forma, o transmissor do texto oral amplia o seu poder de comunicação junto ao seu auditório.

3 – POETAS ORAIS

Ao contrário do texto escrito, o texto literário oral encontra-se raramente isolado, ou produzido como texto, está sempre inserido num discurso como mensagem em situação. Etnotexto designa o discurso que uma coletividade elabora sobre sua própria cultura, na diversidade de seus componentes e, através da qual se reforça ou questiona a sua identidade.

Vivemos num país onde centenas de poetas são marginalizados, devido a classe social, escolaridade, raça, região, produção artística (a poesia oral é considerada ainda menor e híbrida.) Esses poetas jogam contra a massificação que domina e aliena o mundo que os circundam. Eles nos mostram que o povo da periferia / favela / gueto / zona rural tem a sua colocação na história e que não ficarão mais quinhentos anos jogados no limbo cultural de um país que tem aversão à sua própria cultura.

O poeta é um indivíduo sensível ao mundo; consegue percebê-lo intensamente, associando e fazendo circular idéias. Por ser mais sensível que o comum dos homens, o poeta é dominado por um estado emocional involuntário (AMORA, 1970), e tem que expressá-lo de modo fiel e eficaz ao leitor, portanto, a falta da escrita não interfere na criatividade do artista sensível, prova disso é a existência da poesia anterior a sua invenção. A poesia oral é um excelente meio para observação do ‘lugar que o produz’, isto é, a sociedade que a contextualiza, que define a sua própria linguagem possível,  estabelece e delimita os seus fazeres,  instituindo a sua temática. Por isso, qualquer obra literária – seja oral ou escrita – é sempre portadora de retratos, de marcas e de indícios significativos da sociedade que a produziu. Toda a produção literária traz por trás de si ideologias, imaginários, relações de poder e  padrões de cultura.

Em vista deste mundo tão produtivo, apresentaremos nos próximos parágrafos três poetas orais de Andaraí (BA), na Chapada Diamantina. O primeiro é o poeta Pedro Benevides, mais conhecido como Pedrão. Nasceu em 1951, mora em Andaraí e faz poesia desde os 30 anos. Segundo ele, para se fazer poesia “não é preciso ter estudo e sim mente”. Cada uma das suas poesias possui um tema, ora expressa a vida dos pobres e não esquece de expressar também, as suas andanças pelo Brasil. “A poesia é conforme a hora, não e toda hora que se faz. Às vezes fico uns dois meses sem fazer nada e outras faço cinco num dia; também prefiro um lugar calmo para compor”, foi assim, com essa simplicidade, que ele me respondeu como era o seu processo criativo. Faustino (1977) já dizia que “o poeta precisa ser receptivo e objetivo perante o mundo"; Pedro Benevides expressa com objetividade as suas percepções e sensações sobre o mundo que o circunda.

Outro momento marcante foi o nosso encontro com o Sr. José Antonio Alves, conhecido em Andaraí como “Dedé Peixeiro”. Está com 62 anos, trabalha como pescador desde os 14 anos e começou a fazer poesia aos 35 anos. É analfabeto,  mal sabe assinar o seu nome, mas faz muitas poesias contando as histórias de sua vida e da vida alheia. Já teve problemas devido a veracidade dos seu cantos, mas depois todos o perdoam, afinal sua poesia “aumenta mas não inventa”. “A poesia não se sente: diz-se. Ou melhor: a maneira própria de sentir a poesia é dizê-la. Ora, todo dizer é sempre um dizer de algo, um falar de isto e aquilo. (...) O poeta fala das coisas que são suas e de seu mundo”, Octávio Paz (1976) define bem o que é o dizer poético, seja ele o do sr. Dedé, poeta oral e do povo, ou o  daqueles que são  letrados.

Saindo do centro de Andaraí, fomos para Ubiraitá, zona rural da cidade, e encontramos o Sr. Epifânio Pereira da Invenção. Nascido em 1971, fez o antigo Mobral e sabe escrever apenas o seu nome. Desde muito jovem faz versos  e segundo ele, só os deixará de fazer quando morrer. Talvez, o nosso poeta   não saiba  que a sua arte o tornará atemporal. Todos os seus poemas são compostos por sete versos (uma sétima), e segundo ele, este  artifício o ajuda na rima poética. Abusa de vários temas, tais como, a política, a modernidade e a juventude. Num próximo encontro apresentaremos as suas produções literárias. A poesia oral é um documento vivo, expressivo, de estado de espírito libertário; o poeta não é mais um homem comum; ele consegue transformar a realidade que o circunda, transformando assim, a vida daqueles que o cercam. A poesia é indispensável para a evolução do homem. 

No estudo do texto oral, a ausência da globalidade textual impõe a obrigatoriedade da transcrição mesmo tendo-se consciência da perda de certos elementos expressivos na sua passagem para modalidade escrita. Assim, o registro escrito desses textos engloba não apenas a fala do transmissor, mas também as inferências do público presente à performance. Essas intervenções, por vezes através de gestos, as onomatopéias e outros aspectos paralinguísticos devem ser esclarecidos em notas, sempre que necessário, bem como ocorrências consencionais.

 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 Cultura e oralidade, enfim estão destinadas a uma parceria que envolve intermináveis e múltiplas possibilidades. A oralidade enquanto ‘forma de expressão’ será sempre uma riquíssima fonte para compreender a realidade que a produz, e neste sentido um campo promissor para a História. Como ‘meio de representação’, a poesia oral abre possibilidades únicas àqueles que só com ela podem contar. A ideologia, por exemplo, está sempre a escapar através desta fonte privilegiada e expressiva do homem iletrado.

Por fim, agora considerando a Cultura como um vasto universo dos acontecimentos que afetam os homens ou que são por eles impulsionados, a poesia oral apresenta-se certamente como um dos grandes agentes históricos desde os tempos mais remotos. Esta poesia  interfere na cultura, que interfere na história, e com elas se entrelaça inevitavelmente.

 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 AMORA, Antonio Soares. Introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Cultrix, 1970.

BERND, Zilá; MIGOZZI, Jacques (org.). Fronteiras do Literário: Literatura Oral e Popular. Brasil/França. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 1995, (Coleção Ensaios CPG – Letras 1).

FAUSTINO, Mário. “Poética: diálogos de oficina”. In: id.Poesia – experiência. São Paulo: Perspectiva, 1976.

FERREIRA, Marieta de Morais Ferreira; AMADO, Janaína.  Usos e Abusos da História Oral. Fundação Getúlio Vargas, 1996.

FISCHER, Ernest: “A função da arte. In:id. A necessidade da arte. Trad. de Leandro Konder, Rio de Janeiro:Zahar, 1983.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

----------------------.Introdução à Poesia Oral. São Paulo: Hucitec, 1996.

----------------------.Tradicão e Esquecimento. São Paulo: Hucitec, 1997.

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