O DOENTE TERMINAL ENTRE

O ABANDONO E O DESESPERO

António Lourenço Marques

 I

Todos nós teremos um dia o fim, a nossa morte, a enfrentar talvez de forma desconhecida: violentamente ou em paz, em agonia quase interminável ou subitamente, imersos no maior sofrimento ou sem dor, sós ou acompanhados pela família e pelos amigos, em casa, no hospital ou saberemos lá onde?

Por vezes, o cenário da morte antecipa-se e há quem o viva em jeito de acontecimento prenunciado. Há doenças que se inscrevem nos corpos, com o selo fatídico da morte, demorando-se tempos que, mesmo que sejam curtos, não deixam de ser sofridos com duração redundante. São os doentes terminais, com doenças crónicas que os vão consumindo inexoravelmente até à morte, permanentemente anunciada.

O caso do Casal da Serra é de um dramatismo atroz. Num homem, na força da idade, o cancro partiu do pavimento da boca, com uma fúria desatinada, corroendo tudo à sua volta. É uma forma terebrante, actuando como essas máquinas de guerra, as
térebras, que abatiam, sem apelo nem agravo, as muralhas inimigas. O queixo arrasou, restando apenas um resquício do osso da mandíbula, seco e esponjoso, em forma de boomerang espetado pelos bicos e prestes a saltar totalmente descarnado. A língua do paladar e das palavras, doces e amargas, e porque não do amor, extinta que foi pela raiz, deixou soltos os sons guturais, subterrâneos, definitivamente animalescos e impedidos do prodígio da voz clara.

Um tubo de plástico aflora na caverna da garganta. É um fio umbilical que vem do estômago, a única via de acesso aos alimentos líquidos que mantêm a vida deste corpo invulgarmente mutilado. Para baixo do buço desalinhado não há mais nada a não
ser a ferida aberta a escorrer um suco amarelo-esverdeado, com o cheiro nauseabundo dos tecidos pútridos e infectados. E pairando à volta, as moscas, zumbindo, atraídas ao repasto.

E o que é mais espantoso é saber que este doente, tão gravemente doente, foi enviado dos hospitais, «despedido», e ali em casa, há muito, não recebe qualquer assistência do médico, da enfermeira ou de assistente social, abandonado apenas aos cuidados da mulher, que também trata dos filhos à mistura com a labuta dos campos. Macabro exemplo de qualidade de assistência portuguesa, em tempos de sucesso, no final do século XX!

Está ali um homem dócil, com quem se pode comunicar. Que tem uma alma ou, se quisermos, algo mais do que o corpo irremediavelmente condenado. Quando os dois filhos entram por ali, o de meses ao colo da mãe e o rapazito, com um pássaro na mão, como eu vi nesta visita, a emoção estala nos olhos ainda não consumidos e funde-se em lágrimas que brilham como gotas orvalhadas. É o reflexo da luz opalescente vinda das cercanias da serra, através da larga janela do quarto, que o observador retém na memória a assinalar contacto tão intenso, vivido numa tarde destas de Maio, na aldeia rarefeita, mas de paisagens vetustas. Experiência invulgar que o jornalista Fernando Paulouro Neves, com a sua escrita purificada, deposita, aqui ao lado, para sempre nestas páginas de memória.

 

II

Nas longíquas e geladas paragens da Estónia, os esquimós, gravemente doentes ou velhos, depois de uma cerimónia breve, eram abandonados na solidão das estepes, para que as intempéries e o esgotamento pusessem rapidamente fim aos seus dias. Em várias civilizações, e durante séculos, o abandono do doente terminal tem sido uma realidade. No entanto, o desenvolvimento da medicina veio afastando progressivamente tal prática desumana. Também o moribundo tem tratamento e é seguramente nesta situação tão intensa que os cuidados médicos ou outros têm a sua maior expressão e significado. Ajudar um ser humano a morrer, isto é a viver quando a morte vem, é uma obrigação de todos, em especial dos profissionais que têm o dever social de zelar pela saúde dos cidadãos.

No doente que se aproxima inevitalvelmente da morte, cresce um sem número de necessidades nomeadamente de ordem básica, quer físicas quer psíquicas. A medicina de hoje tem soluções que permitem dar à maioria dos doentes uma morte mais tranquila. É pois legítimo exigir que essas soluções sejam disponibilizadas pela organização assistencial, quer na sua vertente técnica quer no apoio psicossocial.

O que se pretende, efectivamente, é uma sobrevivência ligada a uma qualidade de vida suportável. Este objectivo é particularmente desejável no doente canceroso, que habitualmente se conserva lúcido até bem perto do fim, que pode demorar tempos imprevisíveis e por vezes bem «longos».

Estes doentes precisam de cuidados que permitam uma sobrevivência que mereça ser vivida humanamente. São cuidados que envolvem meios multidisciplinares, materializados nas componentes médica, de enfermagem, de assistência social,
religiosa, familiar, dos amigos, etc. Só activando todas estas incidências, será possível obter as melhores condições de ordem física e psicológica, efectivamente suportáveis.

Problemas como a solidão, o desespero, a dificuldade em estabelecer relações familiares e humanas, outros obstáculos de cariz social ou mesmo financeiro, devem ser encarados pela equipe responsável pelo tratamento, não minimizando ou ignorando qualquer manifestação desconfortante, por mais discreta que pareça. Quase sempre os familiares necessitam também de apoio, o que se ignora com frequência. A gestão da verdade exige uma sabedoria própria, que sem ferir não traia nunca aquilo que não pode ser negado.

Os problemas de ordem orgânica são também vários, exigindo cuidados específicos destinados a suavisar as queixas que mais preocupam os doentes e a manter uma funcionalidade dos diferentes sistemas orgânicos, não prologando no entanto a vida a qualquer preço. Mas deve-se combater a infecção que alastre à árvore respiratória, evitando o colapso desta função, penosamente sentido pela dispneia, pela dor torácica, pela tosse ou pela febre; é preciso prevenir a obstrução das próprias vias aéreas, limpar as feridas e remover os tecidos mortos.

O tratamento da dor, que é um fenómeno psicossomático, com componentes orgânicos mas também emocionais e afectivos, exige uma abordagem complexa e multidisciplinar.

Uma plêiade de outros problemas pode estar presente, como as náuseas, os vómitos, a obstipação, a falta de apetite, etc, exigindo tratamentos adequados.

Pois bem, qual deve ser o local mais apropriado para prestar esta assistência ao doente terminal? O lugar ideal será aquele que corresponde à satisfação de vários factores, como o desejo manifestado pelo doente e seus familiares, susceptível de absorver o dramatismo psicosocial da doença e onde os cuidados a prestar, em cada caso ou situação, sejam exequíveis.

«O domicílio seria talvez o local desejável com o doente acompanhado pelos familiares e amigos, cuidado pelo seu médico de família a quem cabe um papel importante, devendo ser apoiado pelos serviços hospitalares especializados para cuidados que não poderão efectuar-se no domicílio. É necessário, contudo, que a satisfação de estar em casa não seja minada pela sensação de insegurança do doente e da família», assim sintetizou esta magna questão o dr. José Maçanita, no XXI Curso de Pneumologia para pós-graduados, da Faculdade de Medecina de Lisboa, em 1988.

Compreendemos que aos hospitais cabe uma grande responsabilidade no tratamento do doente terminal. Mas é uma realidade que entre nós é, em muitos casos, humilhante.

 (Texto que fez parte da reportagem “A morte dentro de casa num rosto a desfazer-se” de Fernando Paulouro Neves (fografias de Adelino Pereira), publicada no Jornal do Fundão, nº. 2388, de 29 de Maio de 1992. A Unidade de Tratamento da Dor, do Hospital Distrital do Fundão, que esteve na origem pioneira do Serviço de Medicina Paliativa do Centro Hospitalar Cova da Beira, foi criada em 20 de Novembro deste mesmo ano de 1992. A memória de um caso tão dramático pela falta de assistência, estava então absolutamente presente).