CRUZ E SOUSA: ENTRE O ATO HUMANO E DESUMANO DE CRITICAR


Alessandra Pereira GARUZZI (UEPA)
Denise Barros da SILVA (UEPA)


"É ele o Assinalado, o Cavador do Infinito, o Invulnerável, provavelmente o Ser dos Seres" (Col. Fortuna Crítica, 1979: 224).



RESUMO

Pretende-se, neste trabalho, refletir sobre pontos de vista divergentes a respeito da obra e do enigmático poeta João da Cruz e Sousa, afrodescendente nascido ao Sul deste País em pleno século XIX. A divergência dos críticos sobre as obras do poeta é marcada pelo distanciamento de épocas. Os mais implacáveis com Cruz e Sousa são coetâneos dele e produzem uma crítica carregada de ideologias sociais, raciais, étnicas e biológicas do final de um século marcado por revoluções industriais e científicas. Os críticos atuais, no entanto, reconheceram em Cruz e Sousa o nome mais importante do Simbolismo no Brasil. No entanto, nossa pesquisa consiste em observar se há a hipótese dessa hostilidade em relação ao poeta ocorrer apenas em críticas escritas em sua época, ou se, por infelicidade, ainda continuou ocorrendo no século seguinte.


Palavras-chave: Preconceito racial, Simbolismo, Cruz e Sousa, crítica.




INTRODUÇÃO

Em meio às agitações e modificações que tomavam conta do povo brasileiro em formação, numa época em que as intransigências, no que se refere à aceitação das diferenças raciais, eram um tanto quanto mais elevadas que nos tempos de hoje, no final de um século em que uma nova ordem social está sendo construída a partir das revoluções européias, num período no qual a sociedade escravista está em crise, João da Cruz e Sousa teria sido só mais um afrodescendente a sofrer as consequências das atrocidades passadas pelo povo africano escravizado, caso não tivesse ousado expor todas as suas inquietações, sofrimentos e angústias em forma de poesia.

Aqueles que viveram na mesma época que Cruz e Sousa foram altamente severos com sua obra, o que não é de estranhar levando em consideração o contexto histórico e intelectual daquele período. Já os críticos contemporâneos não possuem arraigada em suas ideologias a ideia de raça inferior com relação aos afrodescendentes. Em virtude disso, levantamos a hipótese desses críticos terem uma outra visão a respeito das obras de Cruz e Souza.

No entanto, o rótulo de "Poeta Negro" é usado frequentemente, mesmo em críticas atuais. De qualquer forma, o poeta que sofreu duras críticas no passado, recebe nos dias de hoje a atenção e admiração de muitos estudiosos literários e, não raras vezes, considerado o maior representante do Simbolismo no Brasil.



CONTEXTUALIZANDO O PROBLEMA

A ideia deste artigo surgiu no decorrer do Curso de Licenciatura Plena em Letras, na disciplina de Literatura Brasileira quando, ao estudarmos o Simbolismo, tivemos a bela oportunidade de ter a história de Cruz e Souza oralizada pelo Mestre Elielson Figueiredo.

Além do encantamento pelas obras, sentimos também indignação em relação às críticas feitas ao poeta. Desta forma, levantamos a hipótese de encontrar críticos que não julgasse Cruz e Souza pela cor de sua pele, e sim pelo ser humano e pelo artista que ele foi.

Fizemos, neste trabalho, uma pesquisa exploratória sobre o Simbolismo ocorrido no Brasil e a visão dos críticos coetâneos de Cruz e Souza e de outros nascidos no século XX, visando observar a diferença ? se há ? entre as suas opiniões. Para tanto, utilizamos obras do próprio Cruz e Souza, de Afrânio Coutinho, de Estêvão Cruz, um escritor português nascido no início do século XX, entre outros.



DADOS BIOGRÁFICOS

Filho de escravos alforriados e alvo de cruel preconceito racial, João da Cruz e Sousa nasceu em 24 de novembro de 1861 no berço da colonização europeia, na cidade de Nossa Senhora do Desterro, atualmente Florianópolis.

Ter nascido um afrodescendente numa região cuja predominância era de povos de ascendência européia marcaria para sempre não somente sua vida, mas também a aceitação e o julgamento das obras desse poeta que, apesar de possuir uma formação parnasiana, da qual nunca afastou-se totalmente, conseguiu aliar sua habilidade com a escrita à musicalidade e também às inquietações espirituais.

Tais características, bem como sua ânsia de infinito e verdade, seu agudo senso estético, levaram Cruz e Souza a uma poesia original e profunda, e o incluiu entre os grandes poetas simbolistas.

Cruz e Souza foi um dos primeiros a se dedicar à prosa poética na Literatura brasileira e foi considerado pelo sociólogo Roger Bastide como um grande poeta simbolista, comparável aos franceses, exceto pelo seu expressar da raça.

Tendo sido criado pelos antigos senhores de seus pais, Cruz e Souza, que ficou conhecido por "poeta negro", teve, como poucos de seu povo em sua época, a chance de estudar. Começou a sua vida de escritor publicando em jornais e aderiu ao simbolismo na mesma época em que fixou-se no Rio de Janeiro.

Seu livro Broquéis, de 1893, deu início ao Simbolismo no Brasil, entretanto, nele ainda havia traços do formalismo parnasiano. Em Faróis, de 1900, ele passa pela sua segunda fase, na qual abandona o esteticismo acrescentando aos seus poemas toda a sua revolta. Em Últimos Sonetos, em 1905, explorando o poder pleno das palavras, cumpriu o ideal simbolista. Sendo que as duas últimas obras são póstumas.

O grande representante do Simbolismo no Brasil passou seus poucos trinta e seis anos de vida sentindo-se incompreendido e marginalizado, sendo que os últimos, ele os passou imerso em angústia, miséria e infortúnios que acabaram por marcar profundamente suas obras. Atingido pela tuberculose, Cruz e Souza faleceu em Minas Gerais, no dia 19 de março de 1898.



FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Estudar Literatura implica em nos acostumarmos com o apogeu e a decadência de suas várias escolas, que estão sempre surgindo e desaparecendo. Contudo, estas nunca somem por completo, pois, mesmo após o declínio de um estilo literário, é possível notar sua influência em obras criadas posteriormente a ele.

Segundo Afrânio Coutinho (2004: 399-400), foi em 1893 que "o paredão maciço de mármore neo-helênico do Parnasianismo entreabriu-se. Formou-se como um alto vitral em ogiva e por ele passou uma luz diferente". Deste modo, como todos os outros movimentos literários, o Simbolismo surge dentro da Literatura findando uma era e iniciando outra. Aos poucos dá um basta ao gélido Parnasianismo para, inspirado na fase romântica, trazer de volta a tão conhecida tragédia. Entretanto, desta vez para dar evasão a toda dor do existencialismo humano, não mais a dores de amor.

Tendo surgido na França opondo-se ao Realismo, ao Naturalismo e, logo em seguida, ao Parnasianismo, o Simbolismo teve seu início através de Flores do Mal, de Charles Baudelaire, em torno de 1857. Como todo novo estilo literário, este também encontrou resistência nos artistas da época, que teve como uma de suas características básicas o papel representado pelo inconsciente na atividade criadora. Este fato fez com que os poetas do movimento simbolista buscassem motivação no misticismo e nas doutrinas esotéricas, opondo-se ao cientificismo e ao materialismo, dedicando-se ao subjetivismo e às sensações.

De acordo com Oto Maria Carpeaux (apud COUTINHO, 2004: 323) "o Simbolismo, apesar de ter produzido um Cruz e Sousa e um Alphonsus de Guimaraens, foi estrangulado". Mais adiante o autor também afirma que "o Simbolismo brasileiro recebe só hoje a devida consideração, negligenciado como era sob o regime artificialmente prolongado do Parnasianismo, que significou a retirada da poesia do mundo do colonialismo artificialmente prolongado. O Modernismo, Simbolismo inconsciente a meu ver, possibilitou a transformação do Simbolismo privado em poesia pública".

Ao contrário do que ocorreu na Europa e em alguns países da América Latina, o Simbolismo no Brasil antecedeu ao neoparnasianismo e por ele foi rapidamente absorvido, pois o último foi consagrado pela crítica e pelo gosto popular. Ao tentar renovar-se com o declínio do neoparnasianismo, o Simbolismo brasileiro foi marginalizado pelos primeiros modernistas.
Como todas as eras literárias, o Simbolismo também possui um autor que o representa melhor que os demais. No caso do Brasil, João da Cruz e Sousa, que, insubordinado em relação à sintaxe tradicional portuguesa, fez uso em suas obras das conquistas estilísticas da escola francesa. Obras essas que, juntamente com seu autor, compõem o tema deste artigo que, a partir daqui pretende analisar o que escreveram alguns críticos sobre esse grande poeta também chamado de "Cavador do infinito".



PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

CRÍTICAS QUE INTRIGAM

Sendo um afrodescendente sem misturas genéticas em meio a europeus, em pleno século XIX, não causa admiração alguma a forma como, naquela época, viam ou retratavam Cruz e Sousa. Nascido escravo, tendo sido libertado aos quatro anos quando seu pai foi alforriado pelo então Marechal Guilherme Xavier de Sousa ? de quem o poeta herdou o sobrenome ?, este sofrido poeta passou de um negro escravo rejeitado, desprezado, discriminado, a um negro livre rejeitado, desprezado, discriminado.

Aquele que, sem dúvidas, pode ser considerado o maior autor do Simbolismo brasileiro, viu-se obrigado a submeter sua existência ao estigma do preconceito racial ainda que tenha recebido uma excelente educação, tenha sido dotado de grande capacidade intelectual, noção de arte, política, humanidades, línguas, etc.

O desajuste social causado pelo preconceito de cor e as incompreensões do meio literário, as eventualidades financeiras a perturbar-lhe o espírito, a frustração pela impossibilidade de realizar suas aspirações, nos deram como herança obras fantásticas, entretanto, à custa do sofrimento incomensurável de um ser humano de extrema sensibilidade, completamente submetido às intolerâncias da humanidade.

Sobre Cruz e Sousa e sua obra, Ronald de Carvalho (apud CRUZ, 1942: 425), poeta nascido ao final do século XIX, emitiu a opinião seguinte:

A obra de Cruz e Sousa não é simplesmente um grande ensaio falhado como já se tem dito, nem tampouco a maior expressão da poesia lírica no Brasil, como já se escreveu. O satanismo de Baudelaire se mistura, na sua poesia, ao cepticismo melancólico ao misticismo mórbido de Antero de Quental. O mundo girava em torno de sua dor e de tal maneira lhe pesava sobre a alma insatisfeita e sofredora, que ele não soube traduzi-lo senão com imprecações desesperadas e alucinantes. Não há quase um verso seu que não seja um grito contra a opressão do ambiente que o cercava, grito nascido mais do instinto da raça que da consciência da vida.

A poesia de Cruz e Sousa transparece uma época marcada pelas transições sociais e políticas, também pelas muitas desavenças em virtude da não aceitação das diferenças entre os povos que começavam a formar a população brasileira. Como consequência de uma vida sofrida ao extremo, o poeta nos concede uma obra num tom geralmente lamentoso ? elegíaco ?, cheia de aspirações, sonhos, visões vagas, resplandecências súbitas, nebulosidades. São como vozes de um Emparedado (SOUSA, 2009):

Almas tristes, afinal, que se diluem, que se acabam, num silêncio amargo, numa dolorosa desolação, murchas e doentias, na febre fatal das desorganizações, melancolicamente, melancolicamente, como a decomposição de tecidos que gangrenaram, de corpos que apodreceram de um modo irremediável e não podem mais viçar e florir sob as refulgências e sonoridades dos finíssimos ouros e cristais e safiras e rubis incendiados do Sol... Almas lassas, debochadamente relaxadas, verdadeiras casernas onde a mais rasgada libertinagem não encontra fundo; almas que vão cultivando com cuidado delicadas infamiazinhas como áspides galantes e curiosas e que de tão baixas, de tão rasas que são nem merecem a magnificência, a majestade do Inferno! Almas, afinal, sem as chamas misteriosas, sem as névoas, sem as sombras, sem os largos e irisados resplendores do Sonho ? supremo Redentor eterno!

É a primeira vez que, na Literatura brasileira, um escritor, na condição de "raça inferior", revela seu juízo crítico diante de uma sociedade abarrotada de preconceitos. No poema Emparedado, Cruz e Sousa revela-se, segundo Bernd (1992: 30):

(?) oprimido entre quatro paredes; a primeira constituída pelo Egoísmo e pelos Preconceitos; a segunda, pela Ciência e pelas Críticas; a terceira, pelos Despeitos e pela Impotência, enquanto a última, pela Imbecilidade e pela Ignorância.

Tudo isso nos revela um triste panorama de discriminação de uma sociedade que, através de suas atitudes, vetava ao povo africano ? e mesmo ao índio, ao mestiço ? o acesso à cidadania, subestimando-o a ponto de considerar apenas os povos de origem branca dotados de fato da capacidade de realização artística.

Do mesmo modo pensava José Veríssimo, um conservador e desconfiado de inovações, o qual acreditava que a única contribuição esperada do índio e do negro era no sentido de variar a etnia brasileira (BOSI, 2006: 254). Por não compreender o Simbolismo, em sua obra História da Literatura Brasileira, foi extremamente injusto com Cruz e Sousa ao afirmar que:

O seu livro de versos Broquéis é apenas de um parnasiano que leu Verlaine, sem possuir deste, em grau algum, nem a facilidade poética, nem a sinceridade da emoção artística, nem a ciência inata da língua nem a plasticidade das formas métricas. Não há nessa reunião de poemas, na maioria sonetos, nada, senão talvez a intenção gorada, que a faça classificar na poesia simbolista. São uma imitação falha de Baudelaire, modificado pelo poeta das Fêtes Galantes. E a falta de emoção real, acaso o traço característico desses versos, é tal que surpreende. O livro de prosa do mesmo, Missal, tem ainda menos valor que os Broquéis. É um amontoado de palavras, que dir-se-ia tiradas ao acaso, como papelinhos de sortes, e colocadas uma após outras na ordem em que vão saindo, como raro desdém da língua, da gramática e superabundante uso de maiúsculas. Uma ingênua presunção, nenhum pudor em elogiar-se e sobretudo nenhuma compreensão, ou sequer intuição, do movimento artístico que pretende seguir, completam a impressão que deixa este livro em que as palavras servem para não dizer nada (VERÍSSIMO apud CRUZ, 1942: 430-431).

Entretanto, mesmo coevo de Veríssimo, Sílvio Romero pensa de modo muito diferente. Como professor, crítico, filósofo, etnólogo e historiador literário que pretendia fazer com que sua análise crítica se estendesse a toda e qualquer produção escrita que fosse considerada literatura, Romero (apud CARNEIRO, 2005: 434) afirmou que "a poesia de Cruz e Sousa é a de um triste, mas um triste rebelado; é o pessimismo, última flor da civilização humana". Para ele, trata-se do único afrodescendente puro que contribuiu com a ampliação da cultura brasileira, pois "mestiços notáveis temos tido muitos; negros não, só ele".

Outro coetâneo e também amigo de Cruz e Sousa, Nestor Victor, ao vê-lo pela primeira vez, teve "a impressão de um preto estrangeiro, moço chegado de grandes viagens, bem-posto, com uma pontazinha de insolência, que achei, contudo, antes simpática do que irritante, por vir-nos não sei que prestigiosos fluido, não sei que vaga eletricidade de todo o seu ser" (COUTINHO, 2004: 404).

Cruz e Sousa foi educado pelos patrões, era considerado genial e vestia-se de forma europeia e, como afirmou Virgílio Várzea (apud AMARAL, 1996: 234-235):

Cruz, como seus pais não precisassem de seu auxílio para viver, gastava tudo o que ganhava, nas lições particulares que tinha, em trajes variados, finos e bem feitos, pelo que andava sempre muito asseado e bem vestido, despertando ainda, por esse lado, maiores odiosidades e invejas.

Tais características, acrescentadas ao fato dele ser afrodescendente, ccontribuíram para criar a ideia de uma pretensão do autor em ter menos melanina na epiderme. Desta forma, um estudioso da cultura afrobrasileira, o francês Roger Bastide, interpretou a constante presença da cor branca em Broquéis como uma vontade do poeta de ser branco, como se ele negasse as próprias origens.

No primeiro quarteto do soneto Braços, escrito por Cruz e Sousa, no livro Broquéis (1994: 27), contém uma das grandes causas de equívoco entre os críticos do poeta, a questão da cor branca:

Braços nervosos, brancas opulências,
Brumais brancuras, fúlgidas brancuras,
Alvuras castas, virginais alvuras,
Lactescências das raras lactescências.

Broquéis é composto por 54 poemas, demarcados com a presença da cor branca em variados jogos e matizes ? seja a presença da luminosidade do luar, da neblina; seja a presença da neve, das imagens vaporosas, dos cristais, como no belíssimo poema Antífona (SOUSA, 1994: 7), de abertura da obra:

Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...

Em virtude do mencionar constante da cor branca em seus poemas, a perspectiva crítica atribuiu a Cruz e Sousa uma negação de sua origem africana. Fato contestado por Selma Maria da silva (apud NASCIMENTO et AL 2008: 83), quando esta afirma que, se acaso analisássemos a obra de Cruz e Sousa de forma contextualizada, ou seja, a partir de seu tempo, veríamos que:

O poeta maior do simbolismo em nenhum momento negou sua ascentralidade. Assim sendo, reduzir sua "excepcionalidade" a um único poema, neste caso "Antífona", estabelece uma lógica redutora e simplista do homem obcecado pela cor branca, como se fosse possível, através de único exemplo, termos a noção do conjunto de toda uma obra.

E cita como exemplo o poema "meu Filho", no qual o poeta demonstra a alegria do nascimento de um filho, seguida pela angústia diante de seu futuro em meio a uma sociedade que, certamente, irá diminuí-lo como pessoa em virtude da cor de sua pele.

Ao citar tantas vezes a cor branca em seus escritos, acreditamos que Cruz e Sousa esboçasse um pensamento muito mais de ordem Física que desejoso de pertencer a uma raça considerada superior. Todos que tiveram a oportunidade de estudar Física Óptica têm conhecimento de que a cor branca na realidade é o reflexo de todas as cores. Portanto, a mistura de todas as cores gera a o branco.

Tal conhecimento da Física já existia no século XIX. Desse modo, sendo muito provável que, ao insistir em dar ênfase ao branco em suas poesias, Cruz e Sousa estivesse na realidade apregoando o igualitarismo entre as raças, inclusive intuindo a aceitação da sua, ao invés de desejar modificá-la.

Nascido numa época bem posterior, Ivan Junqueira (1998: 53) acredita que a presença constante do branco na poesia de Cruz e Sousa seja, no mínimo, curioso, pois:

São poucos os poemas em que o autor não faz referência à cor branca, que irradia, afinal, a luz de todas as cores. Estaria essa obsidiante procura da pureza vinculada de alguma forma à sua condição de homem de cor? Não cremos.

Para tanto, na mesma obra Broquéis, no poema Acrobata da Dor (SOUSA, 2009), é possível perceber a tematização do negro, mostrando sua preocupação com a situação de seu povo neste país.

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! Retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente,
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.

Este e outros poemas, como, Canção Negra, Crianças Negras, Rir, Escravocratas e muitos outros, são a prova de que, sim, Cruz e Sousa aceitava o fato de ser um afrodescendente e que pagou um preço muito alto por isso. Ele via o mundo por dentro de si e o que passava a ideia de um desejo de tornar-se branco, era, na verdade, sua indignação por não ser tratado como igual e ter seu trabalho reconhecido como o de tantos outros. Sua maior agonia foi sentir-se ? vestir-se, falar, andar, sentir, pensar ? igual a todos os seres humanos e não receber deles tal reconhecimento.

Tendo sido acusado por Alberto de Oliveira (apud COUTINHO, 2004: 404) de agitar "chocalhos vazios", é de se admirar, caso haja veracidade em tal afirmativa, que tenha, então, Cruz e Sousa chamado a atenção de modo positivo de tantos escritores e críticos. No entanto, ainda que admirado, sua ascendência africana ainda se evidencia, como em escritos como os de Carlos Dante de Moraes (apud COUTINHO. 1989: 274):

Aquelas paredes negras e terríveis que sobem até o firmamento, deixando o poeta ?perdidamente alucinado e emparedado? dentro do sonho, traduzem uma situação causada pelo egoísmo, a mesquinhez, os preconceitos e a visão falsa dos outros. Para acusá-los e esmagá-los, a sua indignação se levanta imponente como a tromba marinha. Mas a situação é irremediável, porque do pelourinho que é a sua raça, ele não pode desprender-se. (...) A raça é um cárcere, uma funda prisão negra, onde se sente tolhido sem poder evadir-se... Por causa desse sinal infamante, é que sua poesia, medularmente ariana, é negada e vilipendiada.

Mas, atropelando as críticas e descrenças em seu talento, Cruz e Sousa continuou escrevendo. Não havia como parar, era uma necessidade inerente nele. E, desse modo, nos presenteou com poemas sinestésicos, nos ofertando através deles uma gama de cores, como neste trecho da obra Artista Sacro (SOUSA, 2009: 24):

O Altar-Mor está vistosamente ornado, deslumbrante, viçando de flores colocadas em jarras azuis e doiradas, numa frescura e colorido cromático de jardim, rodeado de grandes tocheiros arabescados que faíscam, flamejam com chamas ensanguentadas e amarelas.
Em cima, até onde os olhos sobem mais, num trono de luzes, entre uma pesada cortina de damasco vermelho, de tons profundos, caída para os lados em pregas longas e largas, vê-se o Cristo, na alegoria de Redivivo, com a chaga simbólica no flanco direito, tendo numa das mãos um ramo verde.

O também chamado Cisne Negro foi um poeta de emotivas explosões, de líricas descargas. Além do drama pessoal, há nele muito de atavismo africano. Sim, ele por vezes coloca-se como porta-voz de seu povo sofredor. Fala por incontáveis gerações de homens oprimidos e relegados.
Sua consciência a respeito dos dramas vividos por seus irmãos de cor está retratada em obras como Pandemonium (SOUSA, 2009: 11):

Em fundo de tristeza e de agonia
O teu perfil passa-me noite e dia.
Aflito, aflito, amargamente aflito,
Num gesto estranho que parece um grito.
E ondula e ondula e palpitando vaga,
Como profunda, como velha chaga.
E paira sobre ergástulos e abismos
Que abrem as bocas cheias de exorcismos.
Com os olhos vesgos, a flutuar de esguelha,
Segue-te atrás uma visão vermelha.
Uma visão gerada do teu sangue
Quando no Horror te debateste exangue,
Uma visão que é tua sombra pura
Rodando na mais trágica tortura.
A sombra dos supremos sofrimentos
Que te abalaram como negros ventos.
E a sombra as tuas voltas acompanha
Sangrenta, horrível, assombrosa, estranha.
E o teu perfil no vácuo perpassando
Vê rubros caracteres flamejando.

Diante de críticos inexoráveis em relação à cor daquele que foi proclamado o responsável pela existência do Simbolismo no Brasil, após nos depararmos com tantas palavras doídas, temos como recompensa a possibilidade de contar com aqueles que conseguem enxergar e bendizer o talento de Cruz e Sousa.


Podemos considerar encantadoramente oportuno nos enlevar com a belíssima crítica de Henriqueta Lisboa (apud COUTINHO, 1989: 225), através da qual penetrou a pele do Poeta e encontrou no espírito dele a melhor análise de suas obras, afirmando que, ao contrário do que dizem seus estudiosos, "apesar de toda essa lenta agonia, Cruz e Sousa não foi um pessimista. (...) Não me parece que o seja, mormente em Últimos Sonetos, o que é ainda mais admirável. Pessimista é aquele que descrê das forças do espírito, é o desertor do campo moral, é o que no coração tem gelo ou brasa (...)".

Henriqueta dá como exemplos de pessimistas, Machado de Assis, Baudelaire entre outros e conclui:

Não Cruz e Sousa, a pugnar por mundos ideais com veemência de apóstolo, a levantar nos quatro horizontes as suas torres de vigia, a atribuir à dor uma purificadora missão, ao sonho um papel libertador, a encontrar na beleza os caminhos de Deus. Do vale do sofrimento se ergueu, em gigantesca ascensão, a sua ética. E é isto que imprime tanta grandeza e dramaticidade a sua obra.

De um modo geral, os autores coetâneos de Cruz e Sousa nos dão a entender que este jamais seria poeta não fosse sua dor de existir. Tal fato foi usado de forma espetacular para a criação de uma obra única. Mas até esta atitude foi vista como um grande defeito. Como se não pudesse um poeta nascer num corpo negro.

Para críticos hodiernos, as opiniões sobre a qualidade de sua obra ainda se dividem. Divergindo inclusive quando se trata de concordar com o fato de Cruz e Sousa haver sido influenciado ou não pelo Simbolismo.Já a questão de sua ascendência esta ainda se faz presente na maioria dos escritos a respeito dele.

No entanto, para nós que desenvolvemos este artigo, Cruz e Sousa foi, antes de tudo, um forte, que, ao invés de deixar-se abater pela incompreensão enorme que o rodeava, seguiu em frente com sua obra, de forma estupenda traduzindo nela seu grito interior.



CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algo praticamente impossível é não encontrar menções a sua cor nos escritos sobre vida e obra de Cruz e Sousa. Tal ato ecoa ainda em análises feitas por escritores contemporâneos. E, ao que tudo indica, ecoará por muito tempo ainda.

Para tanto, concluímos que as barreiras impostas por sua afrodescendência são o único ponto não divergente entre os autores. São contrários em elogios e opiniões sobre sua obra e capacidade, contudo concordam sempre quando o assunto é a quantidade de melanina em sua pele e todas as dificuldades que este fato pode desencadear na vida de uma pessoa. Fato que não ocorre apenas no Brasil escravocrata, mas que se arrasta ainda nos tempos de hoje, neste país cujos filhos, dificultosos em aceitar sua identidade cultural, carregam ainda o péssimo hábito da superficialidade, com algumas raras exceções.

Assim sendo, apesar das duras críticas recebidas ? e que muito provavelmente ainda receberá ?, é ao incompreendido Cruz e Sousa que devemos nossa participação, ainda que pequena, contudo gloriosa, na era Simbolista. Este estupendo poeta, talvez tenha pretendido apenas ser visto como igual a seus coevos, entretanto, superou as próprias expectativas tornando-se absurdamente melhor.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.
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GONÇALVES, Magaly Trindade. Antologia de Antologias. São Paulo, Musa, 2004.
JUNQUEIRA, Ivan. O Fio de Dédalo: ensaios. Rio de Janeiro: Record, 1998.
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