Crônicas do Serviço Público:

Coletânea de crônicas reunidas ao longo de quase vinte anos de atuação na Rede Pública Municipal de Educação de Campinas


Crônica geriátrica:

A velha se equilibra sobre seus saltos altos... Já não são mais os saltos “ponta de agulha” de sua juventude – que de tão longe no tempo e no espaço já se tornou lenda – mas ainda são altos.

As costas estão arqueadas, mas a crista continua erguida, no esforço vão de se fazer reconhecer enquanto membro de uma elite há muito falida, com valores já esquecidos ou ultrapassados... Ela exige silêncio, quer que se fale baixo e pausado, come pouco ... Ela anda devagar, põe e tira os óculos o tempo todo ...

A velha é a própria imagem do comedimento, da repressão, da não-emoção. Ela é espartana nos seus hábitos e exigente em relação aos que a cercam, é taciturna, severa, arrogante...

Dizem que a velha tem marido, mas ao mesmo tempo “desdizem”, pois semelhante mal humor, constante e contínuo, só pode ser fruto de uma libido há muito irrealizada, castrada, domesticada.

Eu sei que a velha tem um filho, que ficou velho e careca antes do tempo, talvez por ser filho da velha. É como dizia uma amiga, “um pé de jabuticaba não pode produzir melancias; o fruto nunca cai muito longe da árvore que o gerou”...

A velha continua a se equilibrar sobre seus altos saltos, e a andar titubeante nos seus passinhos curtos, o seu andar lento e pausado. É um andar antigo, moroso, que já não combina mais com a rapidez e agilidade da nossa época.

A velha está alheia ao próprio tempo e à própria velhice. Ela é a própria imagem de uma época, onde o mundo antigo teima em se perpetuar, mesmo estando capenga, e as velhas idéias, conceitos e preconceitos cismam em permanecer, ainda que trôpegos sobre seus saltos.

Crônica CRÔNICA GERIÁTRICA ; in: COPPE (Coordenadoria de Programas e Projetos Especiais, Secretaria Municipal de Educação de Campinas-SP) Informativo COPPE EM MOVIMENTO , ano I, nº 1, 1º semestre de 2000, p. 5.


O apagar das luzes

Era final de dezembro, um dos últimos dias da gestão do velhinho, aquele que bebia...

A coordenadora do Departamento organizou uma reunião para a qual convidou também membros da equipe de transição. Fui, com minha coordenadora, para, na prática, entregarmos a coordenadoria a qual nós havíamos pertencido, ela por alguns anos e eu por alguns meses.

Logo ao chegarmos ao nono andar fiquei surpreso pelo clima reinante; algo apocalíptico, onde a “velha ordem”, elegante nas suas rendas, sedas, linhos e saltos altos, começava a conviver com a “nova ordem”, algo um pouco “hipponga”, arrastando seus chinelinhos de dedos e rodando suas saias indianas...O nono andar tornara-se, repentinamente, cosmopolita e democrático, ao menos no aspecto visual.

A “quase-ex-secretária” – que entrará para a história não como a melhor secretária da educação mas sim como a melhor doceira que já passou pelo nono andar , capaz de fazer um bolo imenso e confeitá-lo, caprichosamente, com folhas e borboletas de chocolate – havia tido, há pouco, uma discussão na imprensa com a “quase-secretária”. Ninguém lembra hoje o motivo. Certamente não era nada muito importante, porque também passou absolutamente despercebido na época, mas, não deixou de ser o “canto do cisne”, o último suspiro da “velha ordem” da secretaria municipal de educação.

Bem, voltemos à reunião...

Lá estávamos nós para, metaforicamente, entregarmos a nossa coordenadoria e, na sala de reuniões onde havia cadeiras da época dos barões do café, entalhadas, de espaldar alto e forradas de veludo verde, a coordenadora do Departamento disse: “estamos no apagar das luzes”...

Uma frase de efeito certamente e que teria tido um tom poético, algo melancólico, se ela não tivesse completado, logo à seguir: “...não sabemos se estamos deixando algo que será utilizado pelos que vem depois de nós, para uma iluminação maior, ou se só haverá trevas daqui por diante...”

Ela nunca mais ocupou nenhum cargo de confiança.

Eu sei que ela não desejava mesmo que isto acontecesse.

Ter estado em um cargo de chefia naqueles anos caóticos, na época do “velhinho que bebia”, era algo para heróis ou para alienados...Conheci pessoas, e não foram poucas, tanto da primeira quanto da segunda categoria apresentada...


O motorista de mamãe

Qualquer pessoa que conheça uma escola pública de Campinas – especialmente aquelas situadas na periferia da cidade – sabe como elas se constituem no mais autêntico e democrático espaço de circulação e de expressão das camadas populares. São meninos barrigudos e remelentos, que convivem com outros fortes, crianças altas, baixas, gordas, magras, de todas as cores e de todos os naipes... Gritam muito, correm, se agitam...

Décadas antes de sabermos o que eram “crianças hiperativas” já vivenciávamos, na prática, a ilustração deste conceito.

Os professores, direção e demais funcionários da escola, de tanto conviverem com as crianças e as comunidades – igualmente coloridas, agitadas e barulhentas – acabam incorporando o comportamento e os valores do meio no qual trabalham, de maneira que não é muito incomum vermos diretora falando palavrão, professora mascando chicletes, professor jogando bola com os alunos...Não digo isso em tom de crítica não, mas sim no sentido de demonstrar a construção do multiculturalismo, na prática cotidiana de cada Unidade Escolar, a construção diuturna da democracia.

Há algumas exceções à regra.

Uma certa aristocrata, de família mais que tradicional de nome pomposo e portentoso, não se sabe muito bem o porquê, decidiu fazer carreira na rede pública de Campinas.

Numa das escolas em que trabalhou se celebrizou pela tentativa vã de se parecer com os outros professores. Embora visivelmente ela fosse diferente, usava botinhas velhas – da marca Samelo, mas velhas – usava suas roupinhas de grife mais surradinhas e, desta maneira, pensava estar conseguindo algum grau de identificação com a comunidade com a qual ela trabalhava.

Certa feita, porém, toda esta tentativa de identificação naufragou fragorosamente.

A figura se submeteu a uma pequena reforma, na verdade uma cirurgia plástica, e retornou antes do tempo proposto para a escola.

Pensava ela certamente em não onerar os cofres públicos e, ao mesmo tempo, em não tornar público que ela de fato não precisava trabalhar.

Os colegas ficaram muito preocupados com o fato dela não poder dirigir ela mesma o seu carro.

Mais do que depressa, porém, ela explicou que eles não deveriam se preocupar, pois ela estava recorrendo ao “motorista de mamãe” .

Naquele dia, os colegas foram observa-la ir para casa e assistiram atônitos ao acontecimento único, algo ao mesmo tempo surreal e fora de contexto, o motorista vestido com paletó e gravata, no meio da rua de terra batida, a abrir e fechar a porta de trás do automóvel importado, pra dona pomposa entrar...


Crônica de refeitório

Esta aconteceu há tanto tempo que a EMEF ainda se chamava EMPG... Foi muito antes da época do velhinho que bebia, apesar que o prefeito daquela época, que ficou muito conhecido por ter mudado de partido no meio do mandato - dizem as más línguas - também era chegado na “manguassa”.

Bem, a diretora da escola, que hoje ocupa um cargo mais alto, era uma senhora muito fina e muito elegante. Usava sempre saltos altos, vestia-se com esmero, cabelo sempre arrumado, maquiagem...Falava “questã” ao invés de “questão” por julgar o som da primeira palavra mais delicado do que o da segunda e, desta maneira, priorizava sempre a estética em relação à fonética ou à gramática...

Todos os dias, às dezessete horas, pontualmente, ela realizava um pequeno ritual: abria sua bolsa, passava batom, escovava os cabelos e depois de ter guardado de volta o batom, o espelho de mão e a escova, andava pelo corredor central da escola até o fundo, fazendo barulho com seus tamancos de salto alto. Após ter feito o seu desfile particular, dizia á vice-diretora que ela estava com a responsabilidade em relação á escola dali por diante e, sem mais delongas, ia para casa.

Se o desfile particular era para se fazer presente – uma vez que todos, tanto alunos quanto professores, escutavam seus tamancos batendo no pavimento – ou para avisar que estava indo, jamais saberemos.

Certa feita a Sra. Diretora mandou reunir no refeitório todas as meninas que estavam, a seu ver, com a saia muito curta.

Começou por proferir uma espécie de palestra, sobre limites, e função da escola pública...Falou muito bem!

Fazendo um parêntesis, preciso contar que uma aluna ficou muito famosa na época porque, num teatrinho organizado para o sr. Prefeito, quando ele lá esteve para reinaugurar a escola, usou uma calcinha marrom escura. Nada de mais, não fosse o fato do teatrinho ser de orientação sexual e a menina ser negra... Em determinada cena, um suposto estuprador arrancou sua saia e...O prefeito ficou vermelho...Jurava que a menina, uma bela adolescente de uns 13 anos, estava nua!

Bem, voltando á “palestra” da diretora.

Após ter falado muito bem sobre limites e a função da escola pública, ela foi menos feliz ao falar sobre o comprimento da saia das meninas...

Naquele exato momento, uma menina, aquela mesma que o prefeito pensou que havia ficado nua em cena, falou em tom alto, e com autoridade:

- Sabe dona...Acho muito engraçado a senhora ficar falando sobre o comprimento da nossa saia...A senhora vem todo dia na escola com os peitos de fora!

A diretora enrubesceu (digo, sem pudor, que o prefeito ficou vermelho, mas ela, como é fina, diz-se que enrubesceu) e imediatamente as meninas voltaram para suas classes, sem maiores comentários.

A diretora continuou a ir decotada para a escola (com “os peitos de fora” como disse a aluna) e as alunas continuaram a ir de mini-saia, bem curtinha...


O poder dos tamanquinhos

Esta aconteceu comigo mesmo, na época do “velhinho que bebia”.

Aqueles eram tempos folclóricos, em que quase tudo era possível. A ordem natural das coisas havia sido momentaneamente subvertida, de maneira que professores saíam diretamente das salas de aula para a direção de escolas, ou para a orientação pedagógica...As pessoas não mais se referiam a si mesmas como fazendo parte da categoria profissional para a qual haviam ingressado, através de concurso público, pois, tal como na era barroca, a aparência tornara-se mais importante do que a essência e o “estar” tornara-se preponderante em relação ao “ser”.

Num destes felizes acasos do destino, acabei me tornando diretor de escola, sem nunca jamais sequer ter atuado como vice-diretor. Inscrevi-me para substituir vice-direção mas, havia uma escola especialmente grande e problemática, que ninguém queria assumir...Eu, um dos últimos colocados na lista de substituição de vice-diretores, acabei assumindo a direção desta escola!

Era uma escola enorme...Nunca me esquecerei de certas cifras, eram 1886 alunos, 52 classes...

Estávamos em reformas e 3 novas salas de aula estavam sendo construídas, dando a escola um aspecto um pouco “versaillesco”, em forma de U.

Havia uma oitava série que funciona, de forma provisória, no refeitório, sem lousa, o que obrigava os professores a ditarem, tanto conteúdos escolares quanto bilhetes aos pais e responsáveis.

Os alunos menos comprometidos, ou mais estressados, faziam então a censura prévia dos conteúdos, e se abstinham de copiar aquilo que julgavam desnecessário ou menos importante...

Eu havia realizado a eleição do Conselho de Escola e realizara também, de forma concomitante, a eleição da Associação de Amigos da Escola, numa grande assembléia onde – acreditava eu – haviam participado todos os interessados. Na reunião seguinte, estava eu dando posse aos eleitos quando a reunião foi subitamente interrompida pelo trote retumbante de tamanquinhos, ressoando pelo pavimento...

Fazendo um parêntesis, direi que este dia mudou minha vida. Pois o trabalho com o Conselho desta escola pautaria desde então minha atuação profissional...E o barulho de tamanquinhos sapateando pelo pavimento causaria em mim uma mistura de alívio e prontidão, e em minhas funcionárias algo como pânico ou estado de alerta!

Bem, voltando àquela tarde...Era uma tarde muito quente e a minha desidrose estava atacada (desidrose é uma espécie de hiper ressecamento alérgico da pele das mãos, que, na ocasião, chegavam a rachar), razão pela qual não é figura de linguagem dizer que a ata foi lavrada em meio ao meu sangue...

Ouvi o trotar dos tamanquinhos, o qual logo foi acompanhado de uma voz, audível a quilômetros de distância, e forte como um trovão...

Existia uma autoridade gutural naquela fala.

Aquela senhora questionou a eleição do conselho, pois, disse que não havia sido informada da data da assembléia. Ao que corroborou a fala do marido, que falou com tanta autoridade quanto ela, e me chamou de “ditador”...

De nada adiantou a colega de sala do filho do casal dizer que ele não havia copiado o bilhete, que tivera preguiça...De nada adiantou a professora da sala afirmar que ditara o bilhete...

O irado casal decidira transformar minha humilde primeira reunião de conselho, minha estréia, em palanque... Decidira também que existia mais semelhança entre a minha pessoa e Luís XVI, de desditosa memória, do que simplesmente o nome e, sendo assim, além de palanque, transformariam também a minha reunião em patíbulo!

Houve uma comoção geral e um constrangimento muito grande.

Entre a fala dos professores, funcionários e alguns alunos da escola, que queriam que eu mantivesse o resultado da eleição, e a fala do casal e de alguns pais que a julgavam impugnada, hesitei um segundo...

Foi então que olhei para a meia dúzia de pais que eu tentara há pouco empossar...

Pareciam crianças assustadas! Estavam visivelmente acuados e temerosos diante do casal, que falava com tanta autoridade.

Não haveria chance alguma de trabalhar com aquele conselho!

Tive uma inspiração divina e, eu mesmo, declarei que a primeira eleição estava impugnada. Convoquei uma nova assembléia para a semana seguinte e convidei a supervisão escolar a se fazer presente.

Nunca em minha vida tomei decisão tão acertada!

Aquele casal, que me tratara como Luís XVI ou Nicolau II e que tentara plantar o gérmen da minha decapitação metafórica, tornou-se desde então meu esteio, alicerce sólido sobre o qual construí toda a ação pedagógico-administrativa da gestão colegiada da escola naquele ano.

Este conselho foi atuante e participativo, parceiro e não rival da direção da escola. Ele avalizou muitas atitudes que foram necessárias num ano em que houve três greves e serviu de retaguarda aos profissionais.

Por várias vezes os tamanquinhos reverberaram, sonantes, pelo alpendre e escadarias da Prefeitura Municipal de Campinas. Igualmente se fizeram ouvir pelas avenidas centrais da cidade, por ocasião das nossas greves.

Por isso digo, que durante todo aquele ano, quando ouvi os tamanquinhos trotando vigorosamente no meu refeitório, me senti amparado. Sabia que era uma amiga que caminhava sobre eles.

Esta mesma amiga, dois anos depois, em parte devido ao nosso trabalho e atuação conjunta durante aquele ano no Conselho de Escola, ganhou assento na Câmara Municipal de Campinas.

Os tamanquinhos foram então substituídos por elegantes sapatos fechados de salto alto. Mas o discurso e a postura não mudaram. Continuou a ser sempre a mesma pessoa, comprometida com a causa da participação popular e da democracia.


Mãe Beverly

Certa vez, tendo eu ido prestar serviços numa Assessoria, ligada à Secretaria Municipal de Educação, notei que todas as pessoas que lá trabalhavam falavam o tempo todo em “entidades”, para se referir às instituições privadas e Ongs que trabalham ligadas á educação.

Desde os primeiros momentos ouvi falar em “entidades” para cá, “entidades” para lá, problemas envolvendo “entidades”, credenciamento e descredenciamento de “entidades”, repasse ou suspensão de repasse de verbas para “entidades”, “entidades”, “entidades”...

Uma em particular, dada a quantidade de vezes em que era citada (uma média de cinco citações a cada vinte minutos, e umas oitocentas alusões, diretas ou indiretas, diárias) me deixou bastante estressado.

Bem, acontece que qualquer pessoa que tenha tido o mínimo de contato com a cultura dos afrodescendentes sabe que “entidades” é o nome genérico pelo qual chamamos tanto os guias da Umbanda quanto todo o panteão ligado ao Candomblé. E, como todos sabem, sou professor de história!

Achava algo pitoresco, até anedótico, tantas mulheres brancas, sem nenhuma ligação aparente ou dedutível com à cultura afro, falarem o tempo todo em “entidades”.

Pelo tumulto que estas tais “entidades” causavam, elas bem poderiam ser identificadas com exus, pombas-gira, etc...

Bem, como todos sabem que eu costumo dizer que “eu perco o amigo mas não perco a piada”, confeccionei, utilizando-me de materiais diversos (madeira, pano, massa epóxi) uma boneca étnica, a qual batizei inicialmente de “Mãe Mocinha do Babado Forte” e a chefia rebatizou depois de “Mãe Beverly das causas impossíveis”.

A razão do rebatismo é simples: uma das referidas moças brancas (aliás, loira) que ficavam todo o tempo envolvidas em “trabalhos com entidades” (e não me refiro a trabalhos espirituais), tinha a alcunha de “Beverly”, em razão da identificação fenotípica da mesma com as personagens do seriado televisivo “As patricinhas de Beverly Hills”.

Mãe Bervely, já devidamente rebatizada, foi dada de presente à Beverly.

Consta que após ela ter recebido este presente, seus problemas com “entidades” diminuíram e, inclusive, quase não escutei mais falar daquela entidade específica, a qual teve seu registro nos conselhos cancelado.


Causos” da EMPG

Ingressei na Prefeitura na época das “inhas”...Eu explico: todas as pessoas que ocupavam altos cargos na Secretaria Municipal de Educação haviam sido professoras de educação infantil ou, quando muito de 1ª a 4ª série, numa época em que a rede era ainda muito pequena e as soluções eram muito “domésticas” então, dada a intimidade que existia entre elas, tratavam-se todas no diminutivo.

Como já disse, em outra crônica, as EMEFs ainda se chamavam EMPGs e eram poucas...

Minha primeira diretora era uma das “inhas”. Muito conhecida na rede.

Não havia linha telefônica independente nas EMPGs, apenas ramais do telefone da SME, e as “inhas” se conversavam através deles.

A minha diretora, em especial, não se acanhava em se comunicar a todo instante com a “inha” lá da SME, cada vez que ela tinha uma pequena dúvida, ou cada vez que tinha de preencher um simples formulário.

Os pais da escola diziam:

-Como é possível alguém tão pequenininha ser diretora de escola? Parece uma criança!

E a vice diretora completava:

-(...)inha, você não deveria usar abrigo nunca! Fica parecendo uma criança de creche usando uniforme!

Por este motivo, quando ela teve de compor o seu primeiro Conselho de Escola, dias após a aprovação da lei dos Conselhos, subiu em cima de um caixotinho, atrás de uma mesa e escondeu o seu artifício colocando uma toalha muito comprida sobre a mesa, de maneira que chegasse ao chão, escondendo a caixinha.

Ela era muito medrosa também, de maneira que quando os próprios alunos alardeavam a notícia de que o “bandido barriguinha” estava rondando a escola, trancava-se a chave na diretoria e fazia com que nós trancássemos as portas das classes também. Éramos avisados que quando fosse informada que o “bandido barriguinha” tivesse ido embora, acionaria o sinal e poderíamos então abrir a porta das salas.

No ano seguinte, a “inha” já havia se removido para uma escola ainda menor e mais próxima da casa dela, e eu conheci o tal “bandido barriguinha”, frente a frente.

Eu estava esperando ônibus e ele passou. As velhas que também estavam no ponto falaram:

-Esse é o “barriguinha”!

Vocês acreditam que ele era apenas um adolescente, de uns 14 anos, bem mirrado, com uma barriga inchada (o que justificava o seu apelido). Não entendi o porquê de tanto medo...Mas, fazer o quê? Era a época das “inhas”!


Mas é esse véio, zinfia?”

 

Há muitos anos, trabalhava conosco na escola uma professora que, apesar de já ter sessenta e poucos anos, era muito vistosa e “bem produzida”. Esta senhora costumava atrair a atenção de vários rapazes, obviamente muito mais jovens do que ela, o que levava as alunas adolescentes a procurá-la para pedir conselhos, para desabafos ou mesmo para rirem juntas, já que ela era muito querida por todos.

Certo dia algumas alunas da oitava série estavam animadas, conversando com esta nossa colega, quando uma delas deteve sua atenção nos dentes da professora:

-Muito bonitos os seus dentes! São seus mesmo?

-Claro que são meus... Paguei por eles!

Esta senhora era “ex-sogra” do comandante de uma famosa esquadrilha.

Apesar de ter 40 e poucos anos, ele aparentava bem mais. Pra ser sincero, ele parecia muito mais velho do que a ex-sogra. Era já um senhor grisalho e muito sisudo, mas isto não impediu que chamasse a atenção de uma amiga minha, que trabalhava conosco na escola e que o conheceu numa festa na casa do irmão dele.

O cúmulo da coincidência foi a ex-sogra me contar que o ex-genro era o comandante da esquadrilha, e que estava de visita em Campinas e, quase no mesmo instante, a minha amiga me contar que estava namorando o comandante da esquadrilha.

A minha dedução não demorou a acontecer.

Cruzei os dados e comuniquei à minha amiga que ela estava namorando o genro da colega. Comuniquei também à colega, e sua resposta não tardou em ser ouvida;

-Meu genro é um homem livre e desimpedido! Não tenho nada contra o namoro deles!

Pois bem, minha amiga estava envolvida - há pouco tempo na ocasião - com a umbanda e o candomblé e o comandante era um homem cobiçado (mais pela posição do que pela aparência) então ela decidiu se precaver.

Num trabalho em que a mãe de santo estava incorporando a “Vó Benedita” (ao que consta, uma negra velha que morreu com mais de cem anos, e há séculos), minha amiga apresentou a ela a foto do comandante, para ela benzer.

Ela olhou a foto, olhou para minha amiga, olhou a foto, minha amiga...Ficou perplexa. Acrescentou com um tom inconformado, se recusando a benzer a foto:

  • Mas é esse “véio”, “zinfia”?

Daí eu digo: imaginem vocês o “estado de conservação” do comandante, já que uma negra velha, desencarnada há já mais de cem anos, o julgou velho demais pra minha amiga!

Falando na “Vó Benedita”...

A velha diretora de uma escola da rede, já na época das EMEFs, comparecia sempre aos trabalhos no cemitério, levando a lista dos seus desafetos, ou seja, as pessoas que – segundo ela – “atrapalhavam a sua vida”.

Certa vez ela compareceu com uma lista tão grande que parecia lista de compras de supermercado. Ela havia organizado os “itens”, ou seja, as pessoas, em ordem hierárquica, de maneira que começava com a secretária da educação (aquela mesma que confeitava bolos divinos, e que era muito simpática) e terminava com a sua própria secretária (uma boa moça, tão solícita que não se incomodava nem mesmo em lavar a dentadura da diretora).

Mas, como dizia minha avó, “quem nesta terra faz, nesta terra paga”. Anos depois, esta mesma diretora foi exonerada, “a bem do serviço público”, por desvio de verba!

Mas isto já é uma outra história.


Professor Fujão:

Foi nos primórdios da EJA em nossa escola que aquele professor chegou, para lecionar matemática.

Ele era falante e bem apessoado, esguio e com um grande bigode. Conversava com todos e parecia ser bem aceito pelos alunos.

Ninguém entendeu, a princípio, a antipatia “gratuita” que o inspetor de alunos do noturno – que também acumulava as funções de guarda – nutria em relação ao novo professor. Em grande parte, estranhávamos a postura do inspetor porque, ao contrário do professor, ele nunca foi muito popular na escola, nem entre os alunos e nem entre os professores. Ele era tido como um grande “dedo duro”, que estava constantemente a vigiar tudo e todos, no sentido de delatar as mínimas ocorrências à direção da escola.

Só fomos entender o que de fato acontecia quando a questão se tornou do conhecimento público, após a saída do profissional em questão.

Todos os dias ele entrava na classe onde deveria ministrar a ultima aula, enchia a lousa de exercícios, exigia silêncio absoluto por parte dos alunos e, sorrateiramente, pulava o muro do fundo da escola, atrás da quadra, onde a esposa o esperava com o carro já ligado!


O prato de polenta

Na gestão do “velhinho que bebia” a merenda foi terceirizada e, no início, foi difícil a adaptação às novas normas e procedimentos, como por exemplo ter de admitir que na escola haveria funcionários que não eram da rede, nem da fundação, e nem contratados pela escola. Além disso, a cozinha tornara-se quase “território estrangeiro”, onde, de tempos em tempos, chegavam as supervisoras da firma terceirizada.

Entre as inúmeras situações constrangedoras que se criaram, como por exemplo a desconfiança mútua existente entre as nossas funcionárias (merendeiras) e as da terceirizada, a pior de todas era a obrigação da direção da escola estar fiscalizando se os professores ou funcionários estavam degustando a merenda!

Sentia-me, enquanto diretor de escola que eu estava sendo (já expliquei numa outra crônica como saí diretamente da sala de aula para a mesa do diretor) muito constrangido e incomodado em ter de fazer esse papel, ainda mais porque o próprio secretário da educação da época almoçava comigo às terças-feiras, quando vinha com seu assessor para observar o trabalho das “classes de aceleração”, que era uma experiência pedagógica que estava sendo realizada na escola.

Achava injusto eu, o secretário, e o assessor do secretário, podermos comer fartamente da merenda, sob o pretexto de estarmos “verificando a qualidade da comida oferecida pela terceirizada” (que era deliciosa!) e os professores e demais funcionários apenas observarem à distância.

O fato é que descumpri ordens, e assumo...Todos comiam da merenda! Inclusive os pais que vinham visitar a escola. Sempre achei mais louvável oferecer um prato de comida a quem tem fome do que deixar que o excedente fosse jogado no latão de lixo, como previa o contrato com a terceirizada.

Bem, houve a mudança de secretário e, neste momento, as regras tornaram-se mais rígidas neste particular, até porque a nova secretária não almoçava em escolas...

Um belo dia minha amiga, professora de português, estava na porta da minha sala com um prato de polenta com carne nas mãos. Eu também tinha um prato de polenta com carne sobre a mesa.

Antes de continuar, me permitam fazer uma breve reflexão sobre o tempo, as voltas que a vida dá. Em um determinado tempo, antes da época que esta crônica está narrando, eu e esta amiga fomos colegas de faculdade, quando cursamos Pedagogia. No momento seguinte, anos depois, estamos nós enquanto diretor e professora que atuam na mesma escola. Em outro determinado momento, no futuro, tornou-se minha chefia num cargo que ocupei em sendo novamente afastado da sala de aula. O que me leva a crer que devemos investir nos relacionamentos interpessoais e não nos cargos, pois os cargos passam mas as pessoas ficam!

Bem, voltando á nossa polenta com carne...

Conversávamos animadamente e nem demos pela chegada da diretora do departamento – que havia “sobrado” no cargo, quando da mudança de secretário, mas que num momento próximo, logo em seguida, daria a vaga a outra pessoa, fazendo a fila andar, como dizemos - e uma supervisora, que era apelidada de “Barbi” na rede, devido à sua elegância em tons de rosa.

Elas estavam ali para me advertir, já que haviam sido informadas – pela supervisora da terceirizada - de que na “minha” escola os professores comiam merenda... E todos sabemos – inclusive o leitor – que não era calúnia.

Não havia como disfarçar ou negar... Fato incontestável: contra a força dos fatos não há argumentos!

Estava lá a minha amiga, na porta da diretoria, uma pessoa que sempre exerceu sua cidadania de forma plena - tanto que foi a primeira aluna do Estado de São Paulo a ser eleita para o Conselho de Escola, quando do ressurgimento desta instituição, na década de 1980 - comendo polenta...

Nas mãos dela, o prato de polenta adquiria ares de metáfora: era quase um baluarte, já que representava a classe trabalhadora!

Eu explico: quando a mão de obra escrava foi substituída pela imigrante – especialmente italiana – a base da alimentação dos trabalhadores passou a ser a polenta, o que continuou a ser costume nos primeiros tempos da indústria.

Estava lá o prato de polenta sobre a minha mesa...

É claro que, na minha mesa, o prato de polenta não era uma metáfora. Era comida mesmo! E, se levarmos em conta que sou descendente de italianos (embora seja já a terceira geração nascida no Brasil), podemos afirmar que eu a comia com muito mais legitimidade do que minha amiga, descendente do bandeirante Anhanguera, e com o mesmo sobrenome.

As autoridades pediram licença para os demais presentes. A secretária retirou o meu prato de polenta, a minha amiga foi para a sala dos professores e ocorreu uma reunião na diretoria a portas fechadas.

Tenho de dizer algo em defesa da diretora do departamento – que faleceu poucos anos depois, devido a um câncer – tida como tremendamente autoritária: ela não era! Se ela quisesse, poderia ter me advertido naquele exato momento: estava lá o prato de polenta, a prova material de que eu descumprira as ordens da Secretaria. Ela não fez o que poderia e deveria fazer.

Ao invés disso, ela falou sobre a sua própria experiência. Falou que não nascera diretora de departamento. Que fora professora muitos anos, diretora...Falou sobre como há ordens que emanam das instâncias superiores e que, às vezes, nos parecem absurdas ou incompreensíveis quando se está na escola...

Foi neste dia que percebi que ela era uma “pequena grande mulher”, porque pude perceber a sua dimensão humana.

Ela encerrou a conversa me aconselhando a ser formalista: proibir por escrito, no livro de comunicados, e permitir “de boca”, pois “palavras o vento leva” e eu sempre teria a ordem, escrita no livro de comunicados, para me respaldar caso houvesse nova denúncia no futuro.

Não houve nova denúncia e nunca mais a supervisora da terceirizada “cantou de galo no meu galinheiro” porque, logo em seguida, ela produziu uma situação, em represália, e eu a resolvi de uma maneira inusitada.

Ela arquitetou, juntamente com as funcionárias terceirizadas, uma maneira de pegar uma de minhas funcionárias “subtraindo” um saco de 5kg de arroz.

Descumprindo, ela sim, a legislação vigente, vistoriou a bolsa e as sacolas da merendeira – uma funcionária publica, no exercício da função – e a acusou de estar “roubando” um saco de 5 kg de arroz.

Não vou entrar no mérito da questão, ou seja, se a funcionária havia ou não “subtraído” os 5kg de arroz...Se ela subtraia naquela época, ou subtrai ainda hoje gêneros alimentícios da escola. A verdade é que, da maneira como foi forjado o flagrante, era evidente que – ao menos daquela vez – se tratava de uma “armação”, uma impostura para pegar a funcionária.

Eu poderia contar que a funcionária não era muito higiênica. Que desconfiavam da sua comida e muitos não tomavam nem o seu café...Poderia contar que foi vista pela minha secretária erguendo as calças dentro do banheiro, sem ter usado papel para secar “as partes” , e indo para a cozinha preparar os alimentos, logo em seguida, sem ter lavado as mãos...Poderia também dizer que muitas vezes eu mesmo reparei que sua dentadura tinha uma crosta de sujeira, denotando que não era lavada com freqüência...Poderia, poderia, poderia...

Poderia contar tudo isso, mas, pensando bem...talvez não seja boa idéia, para não indispor o leitor contra a funcionária.

Retomemos então a história de onde ela parou:

Chamei a funcionária, conversei com ela e com outras pessoas para ter idéias de como agir e qual postura tomar: ajudar na acusação, o que seria fácil, ou fazer o papel de “advogado do diabo” e tentar agir na sua defesa, o que seria muito difícil... Foi conversando com as minhas orientadoras pedagógicas que elas me alertaram para o fato de que a merendeira era uma funcionária pública, no exercício da função, e a terceirizada era “alienígena” dentro da escola. Além disso, por mais estranho que pudesse parecer, não havia provas de que ela de fato houvesse “subtraído” o arroz, o flagrante fora evidentemente forjado...Chamei a supervisora responsável pela escola e elaboramos um documento em defesa da funcionária, demonstrando como a “revista” havia sido irregular e arbitrária, como a chefia imediata – a direção da escola – não havia sido informada sobre o que estava acontecendo e como, em ultima instância, a firma terceirizada desrespeitava a escola, a direção, e os funcionários!

Nunca mais tivemos problemas com esta firma terceirizada e todos continuamos, alegremente, a comer merenda!

E os pratos de polenta sobre a minha mesa eram cada vez mais saborosos e mais fartos, preparados pela mesma funcionária – aquela que um dia quase foi mandada embora...Deus nos ajude!!!


Quem sou eu?

 

Existe uma piada corrente na qual, ao olhar uma fotografia a pessoa diria: “O velhinho de batina branca e chapéu de bispo eu não sei quem é, mas este ao lado dele é o Roberto Carlos...”

Se analisarmos a piada, poderíamos subentender que para os fãs mais ferrenhos seria mais fácil reconhecer o “rei” Roberto Carlos do que o papa. Não que o papa não fosse popular, mas sim que haja mais familiaridade com a figura do cantor, que todos os anos anima os especiais de natal de uma determinada rede de televisão.

Costumo sempre dizer que conheci de perto vários secretários e secretárias municipais de educação de Campinas. Cada um tinha uma personalidade diferente, mas apenas um secretário e uma secretária serão lembrados pela sua amabilidade, simpatia, cordialidade e por serem acessíveis a todos.

A secretária “confeiteira”, a qual já aludi em outras crônicas, apesar de ser uma grande dama da sociedade, extremamente elegante e fina, atendia a todos da mesma maneira e com a mesma afabilidade: desde a senhora que limpava a sua sala, ou a senhora do cafezinho, até a supervisora ou a Diretora do Departamento Pedagógico tinham o mesmo direito ao seu sorriso e recebiam o mesmo tratamento.

Anos depois, no mandato do “bom doutor”, tivemos um secretário igualmente simpático, agradável e acessível. Ousaria dizer que foi o mais simpático e acessível Secretário Municipal de Educação que passou pela rede.

Três episódios interessantes demonstram o grau de proximidade que este professor conseguiu atingir em relação à rede.

Soube, pela boca do próprio secretário, que em determinada ocasião, estando em visita a uma escola, ele estava na sala dos professores e foi surpreendido pela entrada da diretora que, afoita, disse aos presentes: “Gente! Gente! Precisamos nos organizar para a visita do Secretário!”

Ao que o professor teria respondido; “Mas...Minha senhora...Eu já estou aqui!”

De outra feita, a esposa do secretário teria telefonado e pedido para que o chamassem, mas, ao invés de pedir para chamar “o secretário”, o teria chamado pelo nome. O assessor, que atendeu ao telefone, irritado, teria dito: “a senhora sabe quem ele é?” E a esposa do secretário respondeu: “Sei sim. Ele é o meu marido!”

Para coroar este anedotário, colocaria a situação vivida na escola dirigida por uma amiga pessoal minha, na qual, estando em visita uma comitiva composta por diversas autoridades, ela teria dito, ao se despedir: “E o senhor? Quem é mesmo?”