Resumo: Trata-se de uma reflexão sobre a ideologização do conhecimento científico, tornado único modelo de produção da verdade, e das consequências para a vida humana desse tipo de ideologização. Discute-se a cisão produzida pela ideologização do conhecimento científico entre saber e cultura. Relaciona-se a ideologização do conhecimento científico com as práticas e, portanto, com a ética que resulta de tal ideologia.

Palavras-chave: Subjetividade; Vida; Ciência; Ideologia; Barbárie.

            A razão insensível é aquela dominada por uma lógica monista de produção da verdade: a ideologização do discurso científico. Não se trata, aqui, de demonizar o conhecimento científico, nem de acusar a ciência e os cientistas de provocarem a insensibilidade ora criticada. A ciência, a técnica e a tecnologia, sem dúvida, trouxeram avanços significativos à experiência humana neste planeta. Basta considerar qual teria sido o efeito do uso de antibióticos – tão comuns hoje em dia – durante a peste negra que assolou a Europa no século XIV, dizimando um terço da sua população.

            O que nos preocupa é o uso ideológico do discurso científico como princípio único para o estabelecimento do “conhecimento verdadeiro”. Como bem percebeu o filósofo francês Michel Henry (2012: 13), “pela primeira vez na história da humanidade, o saber e a cultura divergem, a ponto de se contraporem em um enfrentamento gigantesco – uma luta até a morte, a crer que o triunfo do primeiro acarrete o desaparecimento da segunda”.

            Henry localiza o começo dessa cisão entre saber e cultura justamente na aurora da ciência moderna, com Galileu e Descartes e suas críticas ao conhecimento sensível. Para Henry, a característica mais marcante da modernidade é a primazia da razão sobre a sensibilidade. Diríamos nós, da razão lógica sobre a razão sensível.

            Desde então, o conhecimento científico desenvolveu-se quase que exclusivamente pelo avanço da razão lógica, relegando a sensibilidade a um papel secundário. A modernidade nasce sob a égide do racionalismo. O sociólogo francês Michel Maffesoli afirma que

de início, para se afirmar, em seguida, para se consolidar, enfim, para reivindicar a sua hegemonia, o racionalismo inventa um fantoche, um duplo obscuro: o irracionalismo, que sob diversos nomes – obscurantismo, reação, tradição, pensamento orgânico – permitirá ao racionalismo exibir-se como o discurso de referência em torno do qual se vai organizar a vida em sociedade (1996: 32-33).

            Uma das representações desse “fantoche” é o conhecimento sensível, resultado das experiências acumuladas pelas sensações, oriundas das vivências humanas no mundo circundante. Juntamente com o conhecimento científico, o conhecimento sensível compõe a totalidade do conhecimento humano.

            Uma atividade especificamente humana ligada, sobretudo, ao conhecimento sensível é a arte. Não há arte sem sensibilidade. Contudo, também a arte sucumbe ao domínio da razão lógica e do conhecimento científico. Ela perde o seu caráter primordial de ressignificação do mundo pela sensibilidade para se tornar apenas produto. Noutras palavras, a arte se objetifica. Como produto, a arte encontra-se imersa no mundo do consumo. Torna-se entretenimento. Walter Benjamin (2012) mostrou que a técnica colabora para a destruição da aura[1] da obra de arte ao torná-la serial.

            Transformada em bem de consumo, frequentando os cadernos de cultura dos jornais diários, a arte deixa de pertencer ao rol das produções perenes do espírito, reduzindo-se à experiência efêmera da fruição instantânea. Nesse aspecto, observa-se claramente uma desvalorização da arte como educadora da sensibilidade. Esta, cada vez mais, é alimentada por fragmentos que jamais chegam a formar uma totalidade. Eis como é construída a razão insensível.

             Não devemos confundir a razão lógica com a razão insensível. Esta é a razão cuja sensibilidade encontra-se atrofiada. Aquela é apenas uma das partes que formam o ser humano racional, juntamente com a razão sensível. Assim como não se deve confundir o conhecimento científico com a ideologia que se desenvolve à sua volta. Há muito tempo já está esclarecido que não existe neutralidade científica, que a ciência sempre serve a um senhor. A ideologização do saber científico depende do senhor que se apropria dele.

            Hoje em dia, há poderosos interesses comerciais e empresariais por detrás do financiamento da pesquisa científica. Assim sendo, com tantos recursos despendidos, obviamente a ciência torna-se, ela mesma, um produto a ser vendido. Todos nós somos consumidores potenciais dos produtos elaborados pela indústria da tecnologia. Vivemos cada vez mais atrelados a tais produtos, de maneira que a nossa vida cotidiana passa a ser inteiramente dependente dos aparatos tecnológicos.

            Em meio à necessidade do consumo da tecnologia constrói-se um discurso monista a respeito da produção da verdade. A nenhum outro saber é dado o privilégio de ser considerado o único saber verdadeiro como ao científico. Destarte, a produção técnica ligada à ciência assume o posto de único procedimento verdadeiramente útil à sociedade, por deter a exclusividade da produção tecnológica.

            Devemos admitir que a disseminação da técnica no mundo do conhecimento é necessária. Vivemos uma época em que o domínio da técnica e o desenvolvimento da tecnologia decidem o papel que cada país desempenha no concerto das nações. A ciência de base deve ser fomentada e estimulada. Mas ainda assim é preciso ter cuidado com o modelo de difusão do conhecimento científico adotado, pois é nele que se esconde a armadilha que Michel Henry soube tão bem escrutinar. É a partir da maneira pela qual o conhecimento científico se consolida como ferramenta importante para a evolução da vida humana no planeta, que a cisão entre saber e cultura pode ocorrer de maneira insidiosa, na forma de uma ideologia “limpa”, amparada no desejo baconiano de “melhorar a vida humana”.

            Cabe-nos, nesse ponto, interrogarmo-nos sobre o que se entende por vida humana. Certamente referimo-nos, neste caso, à produção material da vida. O que precisa ser melhorada é a condição material em que os humanos vivem: saúde, moradia, transporte, enfim, tudo que diz respeito diretamente ao bem estar material do homem.

            No entanto, essa nossa compreensão de vida, concernida apenas ao que é material, não corresponde à totalidade das vivências que nos constituem como humanos. De acordo com o filósofo espanhol José Ortega Y Gasset (1957: 100), “a vida humana não é apenas luta com a matéria, mas também luta do homem com sua alma”. Ou seja, não basta apenas criar as condições materiais da existência, é preciso também lidar com aquilo que transcende a matéria, com as tonalidades que somente o espírito consegue apreender e discernir.

            Michel Henry (2012: 105) chama de “doença da vida” a autonegação da vida provocada pelo conhecimento científico, ao se autoproclamar a única cultura verdadeira. Para o filósofo francês,

A autonegação da vida não se reduz a uma proposição abstrata, a qualquer princípio geral de análise, a uma hipótese de trabalho que possa iluminar um grupo de fenômenos, tendo de resto sua especificidade e teleologia próprias. Trata-se antes de um processo concreto, imanente a cada fase da atividade científica. Não levar em consideração uma qualidade sensível enquanto tal é subentender que ela não conta, que ela não tem nem valor de ser nem valor de verdade, e isso porque o que constitui a sua natureza própria, o fato de ser sentida e, assim, a subjetividade como tal, isso tampouco conta (HENRY, 2012: 105).

            Esse expediente é comum quando nos deparamos com a ideologização do conhecimento científico. A crítica à subjetividade e o elogio da objetividade científica encontram-se presentes o tempo todo no âmbito escolar, quando a “educação” científica se converte na pedra de toque do currículo. Às disciplinas “científicas” sempre se destinam mais horas-aulas do que às chamadas “humanidades”, numa clara escolha de que tipo de formação se deseja do aluno. Até mesmo a nomenclatura usada pelo Ministério da Educação no exame nacional do ensino médio, ao se referir às grandes áreas do conhecimento, contemplam a palavra “tecnologia”, como em “linguagens, códigos e suas tecnologias”, numa clara alusão à cientificidade como princípio ordenador de todo conhecimento.

            Além disso, como bem salienta Edgar Morin (2004), a disciplinaridade escolar é fragmentária. Como se já não bastasse a promoção da cisão entre saber e cultura, a escola também promove a partição da compreensão do próprio saber. As várias disciplinas ensinadas dão conta apenas de uma parcela da realidade, sem sequer esboçarem um entendimento da totalidade. A complexidade do conhecimento humano, que é a própria complexidade da condição humana, passa ao largo da disciplinaridade escolar.

            Se, por um lado, o conhecimento científico é estimulado, por outro, um saber que ressalte a subjetividade é completamente ignorado. Como afirma Morin (2004: 90), “o conhecimento da condição humana não se resume às ciências, contrariamente ao que se diz”. Contudo, continua-se mutilando a concepção do ser humano. A razão lógica é superdimensionada em detrimento da razão sensível.

O ser humano sempre foi concebido de modo mutilado. Diz-se homo sapiens, dotado de razão, mas o homem é também delirante. Castoriadis adorava dizer que o homem é este animal louco, cuja loucura criou a razão. Homo é sapiens e demens. Vê-se nessas duas polaridades que não há fronteiras nítidas entre o delírio e a razão. Frequentemente, no limite da loucura existe a genialidade como em Nietzsche. O homem não é apenas faber, fabricador de instrumentos. É também um ser lúdico, homo ludens, como escreveu o pensador holandês Huizinga. O jogo não se resume ao jogo das crianças. Amamos também o futebol, os jogos de azar, as corridas, a loto. O sentimento lúdico nos acompanha em toda nossa vida e aqueles que não o possuem têm uma vida incrivelmente triste. O homem não é apenas homo economicus, mas também homo mythologicus. Vivemos de mitologia, sonhos, imaginário. Essa é a concepção complexa do ser humano (MORIN, 2004: 91-92).

            Devemos questionar se a ideologização do discurso científico leva em conta a complexidade humana. As ciências, sejam as naturais, sejam as sociais, objetificam o homem apoderando-se de uma parcela do seu ser: biológico, psicológico, histórico, social. Nenhuma disciplina científica consegue dar conta da inteireza da existência humana. Ademais, ao se objetificar o homem, relega-se a subjetividade a um plano secundário, como se a própria ciência não fosse uma atividade originariamente desenvolvida pela vida subjetiva.

            Michel Henry aborda esse tema de maneira extraordinária, demonstrando como a subjetividade cria até mesmo as idealidades matemáticas, aparentemente isoladas do mundo da vida, mas cuja origem encontra-se na própria vida:

Não se trata somente das intenções dirigidas às idealidades, suas regulações e implicações, essas intencionalidades científicas se afetam a si mesmas e só são possíveis como tais uma vez que o ver que nelas vive e que conhece é um ver que se sente ver, uma visão que experimenta a si mesma enquanto visão e só vê sob essa condição e dessa forma. Falar de uma vida científica, de uma vida do cientista enquanto tal, não é portanto uma metáfora, uma alusão ao que não passaria de simples acompanhamento empírico da ciência, um acréscimo a seu ser próprio – como todo saber e todo ver – só é possível como vida, ela não se resume, de modo algum, à empiria objetiva de seus objetos e de suas teorias: todas as suas produções, a despeito de sua objetividade e de sua universalidade, são produções no sentido estrito da palavra, remetem a uma vida transcendental, sem a qual não existiriam (HENRY, 2012: 99).

           

Não obstante o papel decisivo da subjetividade na produção do conhecimento científico, este, ou melhor, uma forma de apropriação deste conhecimento, insiste em ignorar a matriz de sua própria existência, ou seja, a subjetividade. Essa apropriação do conhecimento científico realiza uma “assepsia” do fundo afetivo que o gerou, apagando dos seus registros de nascimento afetos que se apresentam contrários à pureza da razão lógica. Nenhuma paixão, nenhuma insensatez, nenhum resquício de irracionalidade, nenhuma ὕϐρις (hybris). Apenas o  μέτρον (metron) da racionalidade lógica.

À forma de apropriação do conhecimento científico que se autoproclama o único conhecimento verdadeiro Michel Henry denomina “ideologia da barbárie”. Ela consiste na preocupação exclusiva com o ser objetivo, isto é, com aquilo que ela pode medir, esquadrinhar, manipular com o seu procedimento técnico.

A “ideologia da barbárie” é o cientificismo que grassa em nosso mundo desde meados do século XIX. Ela carrega em seu interior a enorme contradição entre o acréscimo do conhecimento técnico e o definhamento das práticas humanas. Delineiam-se, pois, as “praticas da barbárie”. Estas, concernindo à práxis, estendem-se consequentemente ao campo da ética. Mas a ética deve ser entendida, inicialmente, em sua própria constituição subjetiva. Ela não é somente um conjunto de regras e valores exteriores, que pautam os comportamentos externos dos indivíduos. A ética nasce da autoafecção subjetiva, isto é, da capacidade de uma subjetividade viva sensibilizar-se enquanto faz a experiência de si mesma.

Chegamos ao ponto crucial de nossa crítica da razão insensível: a subjetividade viva perdeu, ou teve bastante diminuída, a capacidade de se autoafetar. Vimos que a razão sensível foi deliberadamente atrofiada. A arte, princípio e fim do desenvolvimento da sensibilidade, transformou-se em simples produto, desde a sua reprodução serial. Sem autoafecção e sem sensibilidade, a subjetividade humana fica capenga. Incapaz de sensibilizar-se a si mesma, a subjetividade perde a sua capacidade de empatia, qualidade essencial para a vida intersubjetiva que caracteriza a nossa experiência no mundo.

A barbárie está novamente às nossas portas. Mais do que isso: a barbárie invadiu e se estabeleceu no coração “culto” da modernidade produzindo a razão insensível. Resta-nos ainda uma tentativa de restituir ao conhecimento sua pluralidade e complexidade. Está em nossas mãos restituir à subjetividade a sua inteireza, reestruturando os saberes de acordo com a compreensão holística da vida e abandonando a “ideologia da barbárie”, o cientificismo, sem abandonar jamais a ciência, como forma de pensamento sobre o homem e sua natureza subjetiva.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Tradução de Francisco De Ambrosis Pinheiro Machado. Porto Alegre: Zouk Editora, 2012.

GASSET, José Ortega Y. Meditación de la técnica. Madrid: Revista de Occidente, 1957.

HENRY, Michel. A Barbárie. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: É Realizações Editora, 2012.

MORIN, Edgar. Educação e complexidade: Os setes saberes e outros ensaios. Orgs. Maria da Conceição de Almeida e Edgard de Assis Carvalho. Tradução de Edgard de Assis Carvalho. São Paulo: Cortez, 2007.



[1] Benjamin define a aura como uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante por mais perto que ela esteja.