Ianna Arruda[1]

Rômulo Alves Dias[2]

Sumário: 1Introdução; 2 A busca do sentido do ser, 2.1 A busca do sentido no direito; 3 A redução do direito às sentenças judiciais, 3.1 As supremas interpretações; 4 Considerações finais; Referências.

RESUMO

Apresenta as transformações da busca do sentido na hermenêutica filosófica e seus reflexos na hermenêutica jurídica. Aborda os aspectos metafísicos propostos por Platão e Kant para a extração do sentido das coisas. Mostra os giros hermenêutico e linguístico propostos por Heidegger e Gadamer. Apresenta a crise da dogmática jurídica no Judiciário brasileiro e a tentativa de superá-la gerando a crise do realismo jurídico. Aborda como o STF tem decidido nesse contexto de crise de legitimidade.

Palavras-chave: Hermenêutica. Crise do direito. STF. Dogmática jurídica. Realismo jurídico.

1 INTRODUÇÃO

A atividade de julgar é dura. O juiz brasileiro trabalha envolto em uma série de balizas internas e externas ao Direito que perpassam pelo princípio da legalidade, do atendimento às necessidades sociais, do clamor midiático, das metas do CNJ, dos seus próprios valores éticos e morais etc. Além disso, o amontoado de processos que assola o Judiciário pressiona os magistrados a atuarem como em uma linha de produção. E para "facilitar" o juiz em seu livre convencimento, o STF sedimenta entendimentos, mandatórios ou não, que se traduzem em verdadeiras amarras abstratas de julgamento (súmulas e súmulas vinculantes).

Pois bem, este cenário em que se encontra a emanação das nossas sentenças judiciais leva a perguntar se o que se está exercitando realmente é o Direito. É cediço que a definição de Direito já conduziu a inúmeras teses e discussões (LYRA FILHO, 1999). Nesse trabalho investiga-se como que as sentenças na prática o estão materializando e procura-se analisar criticamente a direção que está sendo seguida. Para isso se utilizará dos caminhos percorridos por diversos pensadores pela busca do sentido, tarefa que se incumbiu a hermenêutica filosófica. Em seguida verifica-se como que essa busca do sentido influenciou na hermenêutica jurídica, tendo em perspectiva de que o andar por estas trilhas está longe do fim.

2 A BUSCA DO SENTIDO DO SER

Será que as coisas têm um sentido em si? Encontra-se na excelente tese de Alexandre Araújo Costa um apanhado do caminhar histórico da busca pelo sentido do ser (COSTA, 2008). A seguir descreve-se em síntese apertada tal percorrer tratado pelo insigne autor.

Platão respondeu a pergunta pelo sentido do ser criando um dualismo. Propôs que a essência não estaria no objeto físico e imperfeito, mas na ideia paradigmática, perfeita e imutável deste objeto. Ou seja, existiria um mundo físico e um mundo das ideias. Mas de qualquer forma, para o filósofo grego o sentido estaria no mundo, independente do homem.

Na modernidade, Kant também afirmava que o sentido não estava nas coisas físicas e sim era oriundo do olhar do homem, mediado pela racionalidade universal. Entretanto, os modernistas ainda defendiam que o sentido já estava na natureza e precisava apenas ser revelado.

Oliveira (1989) se debruça sobre a reviravolta proposta por Martin Heidegger. Assevera que Heidegger se ocupou de analisar quais seriam os fundamentos dos estudos de Kant, mas se encontrou em uma encruzilhada ao verificar que havia uma incompatibilidade insuperável entre a característica finita e histórica do homem e qualquer tentativa de encontrar uma essência imutável e universal, seja nos objetos em si ou pela via de uma razão universal. Deduz então que é o homem em suas vivências (dasein) que pode compreender os outros entes e que é dentro de suas práticas que se pode falar em significados. A compreensão se daria em conjunto com a prática, jamais a priori e em abstrato. Noutras palavras, é uma falácia a pretensão de entender o mundo como se nele não se estivesse, ou seja, a compreensão é prática. É preciso viver para compreender e atribuir sentidos.

Costa (2008) também traça as contribuições de Gadamer que ao partir da hermenêutica fenomenológica heideggeriana acrescenta com vigor a dinamicidade histórica e a força da linguagem na busca do sentido. Para Gadamer, assim como para Heidegger, o sentido é construído e não algo a ser revelado e dado. Não estaria na coisa em si, nem tampouco na intenção originária da pessoa que criou a coisa. O sentido seria forjado do encontro do objeto com o homem e suas pré-compreensões. O caráter histórico se dá justamente pela retroalimentação (giro hermenêutico/linguístico) que a produção de sentido acrescenta na bagagem de pré-compreensão, o que faz com que cada contato com a coisa seja feita por um novo "eu". Nessa perspectiva, ninguém será o mesmo depois de uma nova experiência. O sentido seria construído em cada etapa histórica e as experiências passadas seriam ressignificadas por cada retroalimentação. Cada parte só tem seu sentido na rede de significados do todo e o sentido do todo depende do significado de cada parte.

Em linhas gerais, é nesse terreno que se discute os sentidos na pós-modernidade. Repisando que é na linguagem que se deve fazer o estudo reflexivo de compreender a compreensão e que o sentido é algo a ser construído nas vivências históricas, já que, de acordo com a concepção heideggeriana, o homem é um ser especial que compreende os outros seres de modo prático. Não há que se falar em sentido extraído da natureza; sentido é algo que o homem constrói.

 

2.1 A busca do sentido no Direito

O que impõe a obediência a um conjunto de regras para viver em sociedade? Majoritariamente as explicações para esta pergunta passaram pela ideia de um pacto ficto firmado entre as pessoas, dando origem ao Estado Moderno (ARANHA; MARTINS, 1993). Cada indivíduo doaria uma parcela de sua liberdade para que o Estado fosse seu protetor e garantisse a harmonia e a segurança da comunidade. Foi esse regramento, o embrião do que hoje se chama Direito, que permitiu a manutenção da unidade de um grupo humano pautado no poder coercitivo estatal.

Também na modernidade houve um estrondoso avanço das ciências particulares ou ciências naturais (física, matemática, biologia etc.). A velocidade científica, o discurso de objetividade e a propalada capacidade de reproduzir/universalizar resultados, por meio de um método neutro e imparcial, criaram uma imagem sedutora para a ciência. Tratava-se do triunfo da razão. O Direito não ficou de fora dessa onda.

Kelsen defendia que o regramento estatal de conduta deveria ter um caráter científico, pois o direito precisava se despir de quaisquer valores éticos ou morais para transmitir segurança e estabilidade (FERNANDES, 2014). Em suma, o Direito se resumiria ao ordenamento jurídico. Ferraz Júnior (2008) explica que essa vertente do Direito como tecnologia foi cunhada de dogmática jurídica. Dogmática porque baseada em um dogma, em uma verdade fundamental e inquestionável sobre a qual se montaria todo um discurso logicamente amarrado. A lei seria essa tautologia com base na qual o juiz construiria silogismos lógicos para deduzir a decisão de um caso concreto. Como a dogmática jurídica é comprometida com a decidibilidade de conflitos, encarnou fácil como ferramenta do magistrado em sua tarefa rotineira de julgar.

Entretanto, a dogmática jurídica não passou incólume ao teste da história. Na tentativa de se apartar de conceitos imprecisos, como moral e ética, o Direito se distanciou de tentar atender as necessidades sociais (COSTA, 2008). Isso fez com que houvesse uma cisão entre o que os juízes decidiam e o sentimento de justiça de um determinado contexto social. Aí reside uma das crises do Direito.

Diante desse impasse, o lidar com o Direito novamente de transformou. Verificou-se que padecia de legitimidade seguir sempre e de forma absoluta a letra da norma. Por isso, o juiz deixou de ser exclusivamente a “boca da lei” (FERNANDES, 2014) e enalteceu-se o protagonismo judicial. Mas ainda ficou uma questão no ar: em que bases e em que casos o juiz poderia decidir sem aferrar-se a gramaticalidade da norma?

Está-se diante da questão do sentido das coisas que a hermenêutica filosófica por diversas vezes pôs na mesa. Primeiramente pode-se pensar na autonomia da norma. O sentido estaria contido em seu cerne. Mas se desde Platão a hermenêutica filosófica desconstruiu a ideia de que as coisas tem um sentido em si, o que justificaria adotar o fetichismo normativo? Outra alternativa seria buscar a finalidade da lei. Então o sentido da norma seria proveniente do intento do legislador no processo típico de legiferar. Costa (2008) diz que buscar o sentido de um preceito legal na vontade do legislador é uma fábula, pois o que há na verdade é um Frankenstein de inúmeras vontades, por vezes contraditórias, oriundas de acordos partidários, econômicos, interesses pessoais e ideológicos etc. O problema em ambas vertentes (o sentido está na norma ou na vontade do legislador) foi ainda se basear na tentativa de extrair uma verdade oculta. Como visto, Heidegger e Gadamer desfazem essa corrente filosófica ao afirmar que os sentidos não são encontrados e sim atribuídos a partir de um processo de construção histórica dentro de vivências práticas. Contudo, o reconhecimento filosófico e doutrinário de que algo vai mal nas sentenças judiciais ainda não refletiu de forma adequada na atividade dos juízes, como se verá a seguir.

 

3 A REDUÇÃO DO DIREITO ÀS SENTENÇAS JUDICIAIS

As normas jurídicas se encontram no campo teórico. Tratam-se do dever-ser, de regramento geral e abstrato prescrito previamente à conduta. Quando um comportamento subsume-se de pronto à descrição do preceito legal, o juiz tem em tese uma margem de manobra para decidir, dentre as possíveis interpretações que o caso comporta, a alternativa que para ele seria adequada para a situação concreta em análise (moldura kelseniana). Se a norma atende ao critério de validade, ou seja, se emana da norma hipotética fundamental (foi criada conforme os procedimentos legais exigidos), então a decisão estaria investida de legitimidade. Como deduzido do que já foi explanado, este raciocínio, apesar de bem amarrado do ponto de vista lógico, pode conduzir a sentenças injustas.

Bem, o Direito é antes de tudo um exercício prático. O Judiciário não pode se afastar de apreciar e emanar uma decisão, pois isso é próprio da função jurisdicional do Estado. Assim a despeito das críticas, a dogmática jurídica continua sendo referência para as decisões judiciais brasileiras, devido a sua manta de cientificidade e garantia da proferição de um resultado. Entretanto, na corrente atual ganha muita força uma concepção de misturas metodológicas em que o juiz, para "atender" às necessidades sociais, pondera o ordenamento jurídico com o senso de justiça interno a sua consciência. Fique claro que não se trata da perspectiva gadameriana de construir o sentido da norma pela fusão de horizontes entre a pré-compreensão daquele que dialoga com a lei e o caso concreto. O direito acaba sendo reduzido aquilo que o Judiciário decide. O que para Fernandes (2014) nada mais é que outra faceta kelseniana.

Lênio Streck é um crítico ferrenho a discricionariedade dos juízes (STRECK, 2012). Em particular às decisões do STF que acabam tangendo muitas sentenças das outras instâncias.  É verdade que vivemos em um Estado Democrático de Direito que tem na força normativa da Constituição algo que em tese limita a arbitrariedade dos julgadores e os devaneios do legislador. Mas o ideário do livre convencimento do juiz e do posto do STF como o guardião e intérprete maior da Carta Magna trouxe para o Judiciário a palavra final sobre muitos conflitos, o que muitas vezes fere na partida o caráter democrático da construção do Direito.

Conforme Streck (2012, p. 200),

Direito não é moral. Direito não é sociologia. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucionais, e não na vontade do aplicador.

 

Ou seja, a resposta que o Judiciário encontrou para não ser um mero instrumento da lei foi aderir a um outro dogma metafísico: o sentido da norma está na cabeça do juiz. O problema avoluma-se quando estão em cena o conflito de direitos fundamentais. Entra-se numa controvérsia de difícil resolução, pois aparentemente a preponderência de uma regra válida irá destituir de validade outro preceito também derivado da norma hipotética fundamental. O princípio da proporcionalidade ou regra da ponderação é a ferramenta utilizada de praxe pelos julgadores para navegarem por essas lides. Fernandes (2014) critica em vários aspectos como a proporcionalidade está sendo manipulada, pois muitas vezes os critérios técnicos para a sua utilização são deixados de lado para que na verdade apenas se chancele uma decisão previamente tomada.

Em outras palavras, nas sentenças judiciais percebe-se uma tentativa de disfarçar o realismo judiciário afirmando que prepondera a lei nos casos fáceis, mas que nos chamados hard cases (casos difíceis), o magistrado pode se valer de outros critérios também "legítimos" para resolver o caso (STRECK, 2014).  A  regra da ponderação vira então um remédio com grave efeitos colaterais, pois serve apenas como justificativa para fundamentar decisões previamente tomadas pelos juízes e tribunais. 

 

3.1 As supremas interpretações

Nos últimos anos o protagonismo judicial tem também reverberado na Suprema Corte. Obviamente não é desapercebido a ninguém que é impossível que o magistrado chegue "zerado" frente ao problema de decidir um caso concreto. Ele sempre carrega consigo todas as suas circunstâncias (morais, éticas, religiosas etc.). Mas quando se pretende buscar uma solução para uma lide pergunta-se "acerca de como o direito proporciona uma resposta para o case" (STRECK, 2012, p. 200) e não sobre as convicções pessoais do juiz. A situação fica mais gravosa quando é o Supremo que adota um comportamento subjetivista.

Streck (2014) assevera que em determinados julgados, a bem da verdade, colisões foram forjadas no STF para que se viabilizasse uma decisão contrária ao expressamente prescrito em norma.  Fernandes (2014) também advoga nesse sentido e vai além dizendo que mesmo quando se vislumbra uma real colisão, os critérios para o sopesamento são superficialmente tratados. Na prática uma nova vertente metafísica do positivismo se assenta: direito é aquilo que o Supremo diz que é direito.

Mostra-se a título de exemplificação do modus operandi do STF o seguinte trecho extraído de uma obra do renomado Lênio Streck a respeito do julgamento da Questão de Ordem formulada no inquérito n. 2.424-RJ:

[...]foi decidido, por maioria dos votos, que as provas produzidas por meio de interceptações telefônicas oriundas da esfera criminal, poderiam ser utilizadas como prova emprestada em processo administrativo disciplinar de caráter civil, sob o pretexto de que, na hipótese vertente, haveria uma colisão entre o princípio da privacidade e o direito de intimidade - tutelado pelas regras que determinam a produção de provas - e o vetusto princípio da supremacia do interesse público - que estaria a requerer o uso processual de tais provas. Tal decisão se formou a partir da ponderação entre os citados princípios - pretensamente em colisão - determinando que as provas colhidas no âmbito do direito penal e do processo penal fossem utilizadas em um processo de natureza civil, a despeito de o artigo 5°, em seu inciso XII, restringir as possibilidades de violação de sigilo telefônico ao âmbito criminal e processual penal. (STRECK, 2014, p. 422).

 

Esta e outras decisões da Suprema Corte trazem reflexos que não se circunscrevem apenas ao caso a que se referem. A ideologia que os Ministros da Corte Maior espraiam de que são eles os verdadeiros intérpretes da Constituição leva parte da doutrina a erroneamente apenas referendar "as verdades" proferidas pelo órgão do cume do Judiciário. Na prática cai por terra a tese defendida por Haberle da sociedade aberta aos intérpretes da Constituição e do Direito, pois

[...] o critério que aqui prevalece é apenas o da autoridade do órgão estatal que faz da sua vontade o direito de uma sociedade. Nesse sentido, temos o que alguns autores irão denominar de 'giro decisionista' na teoria da interpretação desenvolvida por Kelsen, pois assume uma postura eminentemente realista (do mundo do ser!) na medida em que o direito passa ser aquilo que o juiz diz que ele é! (FERNANDES,  2014, p.178).

 

Colateralmente também fica maculado o futuro de uma perspectiva democrática do Direito, visto que a própria formação dos próximos juristas estará eivada com a falácia do STF ser o especial mediador entre o texto constitucional e os jurisdicionados, ou seja, o único que, como uma divindade, pode dizer o Direito.

Corrobora para este pensamento outro aspecto que não pode deixar de ser levado em consideração: o instrumento das súmulas vinculantes. A crítica em geral não é contra o instituto em si, mas quanto ao seu uso. Uma súmula deveria ser um elemento para a fundamentação da decisão do juiz e não a fundamentação em si.

O problema é que as súmulas (brasileiras) têm a pretensão de universalização que é incompatível com um direito que deve ser construído a partir da discussão dos casos concretos. Explicando melhor: as súmulas vinculantes - do modo como são compreendidas pela dogmática jurídica - encarnam uma instância controladora de sentidos, metafisicamente, isto é, através delas, acredita-se que é possível lidar com conceitos sem as coisas (enfim, sem as multiplicidades e as peculiaridaes dos casos concretos) (STRECK, 2014, p. 423)

 

O alerta dado por Lênio remete à contramão que a hermenêutica jurídica brasileira está seguindo em relação às hermenêuticas filosóficas heideggeriana e gadameriana. É notório que o assoberbarmento de processos contribui para que muitos julgadores liguem o piloto automático decisional, julgando de forma arbitrária, ora pendendo para a literalidade da lei, ora pela opção de deixá-la à margem em detrimento de suas convicções pessoais. Quando pendem para um lado e quando pendem para o outro? Deixar essa resposta ao encargo dos próprios juízes é algo extremamente danoso para o Estado Democrático de Direito e corrobora com as preocupações de Streck.

Assim se está diante de uma nova crise do Direito. Não mais aquela do fetichismo do ordenamento que desconsiderava o ideal de justiça da sociedade. Mas a do realismo jurídico, que reduz o Direito às decisões judiciais. 

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A busca do sentido sempre foi uma constante para o ser humano. A procura pelos porquês do mundo, antes de ser uma legitimadora das nossas condutas, foi principalmente algo para aplacar os nossos anseios e angústias. A aventura do homem nessa busca teve várias etapas que foram, por melhor dizer, se complementando do que se superando.

Para Platão o sentido não estaria nas coisas físicas, mas em modelos ideais, universais e imutáveis independentes do homem. Kant foi além, avançando por meio de concepções racionalistas, e concordou em parte com Platão ao afirmar que realmente as coisas não tem um sentido em si, sendo que na perspectiva kantiana a razão é que possibilitava ao homem a revelação do sentido.

O próximo grande salto foi dado por Heidegger e Gadamer ao defenderem ser uma falácia o discurso metafísico de que havia um sentido oculto no mundo que pudesse de alguma forma ser revelado. O sentido para a dupla de pensadores seria algo a ser construído nas vivências práticas do homem e reprojetado continuamente em sua dinamicidade histórica.

As transformações da hermenêutica filosófica influenciaram de forma contundente a hermenêutica jurídica. E é sob essa perspectiva que se pode falar em crises do direito. Procurar o sentido na norma em si, de forma apartada do contexto social gerou uma instabilidade na legitimidade das sentenças judiciais. Travestir o Direito com o livre convencimento do juiz para afirmar que se superou a literalidade da lei, quando na verdade se está no reinado da arbitrariedade judicial, gerou a crise do realismo jurídico. Interessante perceber que ambas as crises convivem no ambiente atual do Judiciário pátrio. Infelizmente o acolhimento que a doutrina jurídica fez da fenomenologia de Heidegger e da hermenêutica gadameriana não foi ainda internalizado majoritariamente pela jurisprudência.

Ademais, ainda não se vislumbra mudança em um futuro próximo na faceta metafísica do STF, seja pelas declarações explícitas em votos de sentenças judiciais recentes (STRECK, 2012), seja pela emanação de entendimentos como o de que não cabe invocar o princípio da insignificância em crime de falsificação de moeda. Em um recente caso, o Supremo negou habeas corpus ao réu condenado por tentar colocar em circulação quatro cédulas falsas de cinquenta reais em Franco da Rocha-SP (PRINCÍPIO, 2014). A Defensoria Pública alegou que não houve grave dano ao bem jurídico tutelado. No entanto, o ministro Luís Roberto Barroso assentiu com as decisões das instâncias inferiores, citando precedentes que atestavam que o STF não admite a aplicação do princípio da insignificância em crime de moeda falsa. Então, deve-se desconsiderar as circunstâncias do caso concreto logo na partida? Hipoteticamente nem a utilização de somente uma nota falsa de dois reais teria força para atrair o princípio da insignificância? Foi perquirido se os precedentes citados realmente tinham DNA constitucional?

Obviamente não se pode vendar os olhos para a necessidade de incorporação de instrumentos processuais que permitam julgamentos mais céleres, principalmente nas chamadas demandas repetitivas. Pois, deve ficar claro que também não se faz justiça se a prestação jurisdicional é demasiadamente demorada. Nessa perspectiva, inúmeros encontros de juristas visam discutir alternativas para tentar desatar esses nós. (APRIMORAMENTO, 2014).

Contudo, é importante destacar que é preciso estar alerta para soluções que visam julgamentos rápidos em detrimento da legitimidade do caminho escolhido. Muitas vezes acaba-se mergulhando mais no modelo metafísico sujeito-objeto e buscando forçar uma identidade entre casos concretos distintos, sem considerar as suas peculiaridades.

Não pode, portanto, o magistrado perder de vista que uma decisão legítima precisa passar por um processo de construção levando em conta a lei, os princípios, o caso concreto e seu entorno.  A despeito da necessidade do magistrado dar respostas às metas do CNJ, ele não pode se transformar em uma máquina que se preocupa apenas na quantidade e não na qualidade dos julgamentos. Sentença legítima é aquela devidamente fundamentada e viável de ser absorvida pelo seio da sociedade.

Felizmente Lenio Streck continua incansável em sua luta para mudar o quadro atual.  Na XXII Conferência Nacional dos Advogados ocorrida em outubro de 2014 no Rio de Janeiro, ele

defende a retirada do novo Código de Processo Civil dos artigos que falam do livre convencimento. 'Democracia significa que Direito não é aquilo que os Tribunais dizem que é. ’ explica. Para ele, o Direito que tem que dizer sobre a causa, e não a opinião pessoal do juiz. (APRIMORAMENTO, 2014, p.2)

 

Frise-se que a sociedade em geral e em particular a comunidade de operadores do Direito não devem simplesmente esperar que o combatente advogado e ex-procurador de justiça tenha êxito em sua empreitada. Para que haja um novo "giro" no modo de decidir do Judiciário brasileiro é preciso fazer fileiras com Lenio.

 

REFERÊNCIAS

APRIMORAMENTO do Judiciário passa por mudanças processuais, dizem ministros. 22 out. 2014. Disponível em: . Acesso em: 22 out. 2014.

 

ARANHA, M. L. A.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à filosofia. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1993. 395 p.

 

COSTA, Alexandre Araújo. Direito e método: diálogos entre a hermenêutica filosófica a e hermenêutica jurídica. 2008. 421 f. Tese (Doutorado em direito). Faculdade de direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2008.

 

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 6. ed. Salvador: Juspodivm, 2014.

 

FERRAZ JUNIOR. Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2008. 346 p.

 

LYRA FILHO, Roberto. O que é direito. São Paulo: Brasilense, 1999. (Coleção primeiros passos; 62)

 

OLIVEIRA, Manfredo Araujo de. A filosofia na crise da modernidade. São Paulo: Loyola, 1989.

 

PRINCÍPIO da insignificância é inaplicável a crime de moeda falsa. 2014. Disponível em: .  Acesso em: 14 out. 2014

 

STRECK, Lenio Luiz. Na democracia, decisão não é escolha: os perigos do solipsismo judicial - o velhor realismo e outras falas. In: STRECK, Lenio Luiz; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN, Wilson. (Org). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica. Porto Alegre:  Livraria do Advogado, 2012. p. 189-201.

 

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

 

 

[1] autora

[2] autor