Criminalização dos moradores de rua em São Luís/MA: Uma visão geral e crítica do quadro atual

 

Augusto Henrique Cruillas Rodrigues

Fernando Pinto Morais

Ícaro Carvalho Gonçalves

Igor Moraes Barbosa

Juliana Cruillas Rodrigues

SUMÁRIO: Introdução; 1. A Criminologia; 2. A Criminologia Crítica; 3. Contexto Nacional; 4. Contexto Ludovicense; Conclusão; Referências.

RESUMO: O presente trabalho destina-se a apresentar uma visão sobre os moradores de rua em São Luís através de um olhar criminológico crítico, tanto do sistema penal quanto das políticas públicas adotadas para evitar o atual quadro que vemos todos os dias na referida cidade, trazendo explicações sobre a criminoligia, em especial a criminologia crítica, entrevistas de campo e uma visão Ludovicense de seus próprios moradores de rua.

PALAVRAS-CHAVE:

Moradoes de rua – São Luís – Criminologia Crítica – Políticas Sociais – Sistema Penal

ABSTRACT: This paper is intended to provide an insight into the homeless in São Luís city through a critical vision at criminology, criminal system and the public policies adopted to avoid the present situation we see every day in that city, providing explanations about criminology, especially the critical criminology, interviews and a local vision of their own homeless.

KEYWORD:

Homeless – São Luis – Critical Criminology – Public Policies – Criminal System

INTRODUÇÃO

            No Brasil, a quantidade de pessoas que moram nas ruas reflete a condição e o tratamento que o Governo dá à esses indivíduos. A criminologia crítica enxerga nisso não somente como uma falha isolada, mas sim a falência do sistema de políticas públicas bem como a do próprio sistema penal que, em vez de resocializar os detentos simplesmente os tornam ainda mais agresivos e entigmatizados. Em São Luís a situação não poderia ser diferente. Com um código penal que vale em todo o país, o quadro nacional apenas é repetido nas diversas cidades brasileiras, afirmando que este não funciona e necessita urgentemente de mudanças.

            Em meio a tantos problemas enfrentados pela nação brasielira, os moradores de rua se destacam como indivíduos duplamente penalizados. Alguns escolheram viver nas ruas, outros não tiveram escolha, mas ambos foram classificados como marginais ao convívio social. Tê-los em nosso dia-a-dia não quer dizer que estamos convivendo com estes, pelo contrário, a situação deles é tão excludente que o sistema os elegeram (dentre outros) como potenciais criminosos, e por isso são tratados como tais, vivendo sob suspeita e repressão de um sistema instrumentalizado pelos mais poderosos.

No entanto, nem os próprios moradores de rua têm a visão de o quanto o sistema é falido. Pra eles, assim como para a maioria, o sistema deve ser maximizado o quanto antes, os crimes devem ser fiscalizados com mais rigor, e a polícia deve agir com mais firmeza e força (não brutalidade). Visão essa que é oriundo e um sistema que sabe se auto promover e se legitimar nas poucas ações que realmente têm eficácia. A propaganda, o Governo, os programas de TV sensacionalistas e uma cultura de tratar criminosos como animais, alimentam o medo e a crueldade, que são saciados com a prisão de mais indivíduos e, justificando assim o uso da força, crescente a cada dia. De frente para o “pelotão de fuzilamento” do Estado estão os moradores de rua, alvos fáceis e lucrativos.

 

1 A CRIMINOLOGIA

A criminologia apresenta-se como uma voz a interpretar e compreender as problemáticas criminais. É uma ciência empírica, antagônica, por conseguinte, crítica ao uso irrestrito do direito penal, que tem como características eminente formalismo, método lógico, dedutivo, dogmático e observância inexorável à norma (propondo sua adequação ao caso típico), buscando interpretar a norma e aplicá-la ao mundo fático.

            A “ciência do crime” está conciliada a vários campos distintos de estudo como a biologia, direito, sociologia, filosofia, psicologia e outras, sofrendo mudanças de seu foco de acordo com a escola e a temporalidade vigente, mas, no geral sempre abordando, em alguma intensidade, uma gama ampla de matérias. A criminologia, não tem como seu objeto apenas os seres humanos, mas também a sociedade e as possíveis influências que dela possam ocasionar neles. No início das investigações criminológicas, começou a busca pelas causas dos crimes, e estas eram primordialmente atribuídas ao criminoso. Logo, não era possível simplesmente extirpá-las para se ter o problema solucionado.

Por conta dos novos ideias e lógicas permeadas na Europa iluminista, com sua doutrina mais racional, humanística, teleológica-reflexiva, liberal etc, ocorreu uma mudança na forma do homem tratar o direito.  A partir do século XVIII, a criminologia tomou contornos próprios, diferindo-se dos conceitos do direito penal, assumindo uma postura mais teórica e crítica acerca da estrutura penal. Marquês de Beccaria foi o nome de maior expressão na criminologia clássica, em especial em sua primeira fase, na obra “Dos delitos e das penas” (1764), apregoava igualdade de todos os cidadãos perante a lei, não era cabível o juiz decidir pela pena, baseando em preceitos próprios, mas devendo obedecer ao legado normativo daquela sociedade, sempre balizado na moral, e o direito tinha função utilitarista quanto de sua aplicação. A segunda fase, capitaneada por Francisco Carrara, procurou a essência jurídica, arraigada de valores filosóficos, método lógico-abstrato, a pena tem uma função social de punir o indivíduo pelo mal que ele causou a sociedade, e o Estado como único tutor legítimo para fazer uso do poder coercitivo. O direito como garantia da coexistência das liberdades entre os cidadãos assim como o livre-arbítrio logo o direito é preexistente a própria natureza do homem.

Em meados do século XIX, com o racionalismo mais maduro, sob efeitos das teorias naturalistas, evolucionistas, sociológicas e biológicas, fazia-se providencial a emergência de um estudo mais sistemático e cientificista, não mais pautado em princípios, influências religiosas, ético-morais ou qualquer outra abstração, mas voltado preponderantemente ao contexto da realidade. Era combatida pela lógica positivista a idéia do livre arbítrio como um dos fatores primordiais na consecução do crime, mas que suas causas se quer estavam em seu domínio. Ao contrário a lógica determinista da Escola Clássica, no positivismo era de grande importância não só o estudo do crime, mas suas causas, atribuindo então fatores sociológicos, biológicos dentre outros.

O médico italiano, Cesare Lombroso foi o maior nome da Escola Positivista, que tinha inspiração as ciências naturais, defendia o máximo laicismo e acreditava em seu pleno uso nos fenômenos naturais, pois apenas tinha caráter científico o que era empiricamente comprovável. Lombroso, em sua obra, “O homem delinqüente”, defendera a teoria do Atavismo ou “delinquente nato”, que seria o ressurgimento de uma determinada característica no homem após ter ficado durante várias gerações sem se manifestar. Com isso, anomalias hereditárias, neurológicas ou psíquicas, estabeleceram função de suma importância no estabelecimento da formação da personalidade. Logo, segundo Lombroso, por seu método científico investigatório, era possível determinar o criminoso a partir de características e peculiaridades físicas daquele ser.

            A criminologia tem como finalidade última não apenas penalizar o infrator, mas preponderantemente identificar as causas e tendências que incidem nele para então realizar um trabalho de prevenção. Não mais derivado apenas de fatores antropológicos, o jurista italiano Enrico Ferri, melhor fundamentando a obra de seu antecessor, Lombroso, associa os fatores sociais também como elementos provocadores do crime. Autointitulado como maior expoente da criminologia positiva, em 1824 Raffaele Garófalo anexou aos aspectos antropológicos e sociológicos, o jurista, e essa ciência estuda a criminalidade, a pena e o delito. Balizado em sua tendência naturalista e influência lombrosiana do criminoso nato, Garófalo então disse que deveria haver os delitos natos e os simplesmente ilegais. O segundo não tinha em si carga moral, apenas se caracterizava pela não observância a norma, já o primeiro infligia princípios éticos e altruístas do homem, devendo sua pena ser aplicada com maior rigor.

2 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA

Na criminologia crítica é feito uma análise das amplas formas de abordagem, segundo preceitos sociológicos, jurídicos e antropológicos, propondo uma política criminal alternativa a abordada no direito penal hodierno. Ela busca a mudança do paradigma, da ideologia penal dominante, que tem se fundamentado na ideologia de classe, racismo, sexismo, estereótipo do delinqüente, onde estão permeados pelo senso comum e apenas corrobora para a manutenção e legitimação o sistema. A crítica formulada é que o direito penal é apenas um repetidor e executor da estrutura vigente, tendo como sua real função legitimar a desigualdade por intermédio dos processos de criminalização, sob o discurso da segurança jurídica e defesa social. A criminologia expõe as chagas do direito penal, afirmando que este não defende todos, as leis não são aplicadas da mesma forma a todos, o etiquetamento de criminoso independe do dano causado na sociedade, evidenciando-o como um sistema seletista classista. Quanto a isso o jurista Alessandro Baratta afirma:

Os órgãos da justiça penal não representam nem tutelam interesses comuns a todos os membros da sociedade, senão, prevalentemente, interesses de grupos minoritários dominantes e socialmente privilegiados [...] o sistema punitivo se apresenta como um subsistema funcional da produção material e ideológica (legitimação) do sistema social global, isto é, das relações de poder e de propriedade existentes, mais que como instrumento de tutela de interesses e direitos particulares dos indivíduos. (BARATTA, 2003).

A crise do sistema penal o tange em dois pontos cruciais: a deslegitimação e a sua maximização. No contexto internacional, põe-se em voga o trabalho de dois dos maiores expoentes da criminologia, o escritor Alessandro Baratta e o ministro da Suprema Corte da Argentina Eugenio R. Zaffaroni, comuns ao pensamento criminólogico, da ideologia de deslegitimação. Assumem que o direito penal se encontra em crise e abrem seus discursos a partir do grau de reincidências de crimes, deixando evidente que o setor punitivo não vem cumprindo sua função originária, em princípio, a de ressocializar o apenado. Segundo Baratta, é de se questionar o sentido reeducativo das prisões, uma vez que se confirma cada vez mais e em maior tom, a influência negativa que delas decorre, tanto pelo convívio com criminosos de maior periculosidade, quanto pelo aperfeiçoamente do potencial criminoso, e em suas próprias palavras assim define o cárcere como servente “[...] para a produção e reprodução dos delinquentes, [...] para representar como normais as relações de desigualdade existentes na sociedade e para a sua reprodução material e ideológica” (BARATTA, 2003).

Ainda pautando-se neste autor, um dos fatores preponderantes para o início da criminalidade se dá pela ditadura do consumismo, evocada pelo capitalismo, onde os mais ricos se sobressaem pela situação financeira favorável a prática. Em contraposição encontram-se os pobres, renegados do sistema consumidor, prestando-se apenas como subservientes a serviço dos ricos, são olvidados das benesses do capitalismo. Esta situação os forçam a buscar status e benefícios a toda prova, desta forma,  restam a eles  prática do crime em busca de seus anseios. 

Para Zaffaroni, é defensável a ideia do minimalismo jurídico, por intermédio do processo de deslegitimação, tangente ao abolicionismo. Trabalhou durante anos dando voz ao garantismo jurídico, mas ao voltar seus estudos para o contexto latino americano, suas obras tomaram cores realistas, reconhecendo a predominante postura política sobre a jurídica no Direito. Seu reducionismo assume a justiça apenas como árbitra de atitudes despóticas do Estado, resguardando a seus cidadãos a conjuntura do Estado Democrático de Direito.

Em contrapartida a política de Estado jurídico mínimo, encontra-se a maximização do direito penal, alegando que o direito penal se encontra em crise de eficiência e para combater esta debilidade precisa passar por um processo de expansão e relegitimação, culminando na hegemonia do direito repressivo.  O movimento “Lei e Ordem”, como assim fora denominado, via o encarceramento a prima ratio no combate a criminalidade, também com o recrudescimento das sanções (em número e exigibilidade), o aparato policial e todo o setor judiciário, com especial atenção na internalização da cultura punitiva na sociedade. Essa abordagem de intolerância é fruto de um pensamento conservador que vê a lógica belicista, realizando um combate ostensivo ás drogas, gangues, e todo e qualquer tipo de delinquência, no maior grau possível de violência, incutindo na população a ideologia do medo como medida mais eficaz para se acabar com o crime.

A Justiça em vez de prestativa aos anseios públicos, foi forjada como instrumento de dominação e legitimação do seu poder, que é emanado não como uma expressão da vontade erga omnes, servindo de instrumento utilitarista de controle social manejado por uma elite. Torna-se complicado a tentativa de compatibilizar a criminologia a processos investigatórios das ciências naturais, o crime não é um fenômeno natural, em contradição aos objetos de estudos das verdadeiras ciências naturais, são estáveis, imutáveis, definidos e absolutos, a criminologia tem seu objeto transitório, demonstrando falha a sua tentativa investigativa.

O ato, por mais imoral e nocivo que seja, apenas será caracterizado por ser um crime se não lhe for atribuído a uma lei penal. A ideologia torna-se cientificizada, com suas assertivas cautelosamente postas, com intuito do discurso da manutenção do status quo vigente, tornando o injusto naturalizado e internalizado aos cidadãos, assim eles não percebem a dimensão das agruras as quais estão sendo acometidos. Em contra-senso ao imaginário popular, a minoria dos criminosos são assim tratados e reconhecidos oficialmente. E apenas uma fração dos “delinqüentes oficiais” se encontra encarcerada, logo a população carcerária representa apenas um simbólico número perante o universo total dos transgressores legais.

Sob o olhar leigo daqueles que tem pouca afeição pela temática jurídica, é notória ideias permeadas de ingenuidades, como que o legislador é um homem extremamente racional na sua atividade legiferante. O ordenamento sendo perfeito, sem vícios, lacunas, contradições, a ordem jurídica sendo magnânima, justa, em um ideal do bem comum, a neutralidade do julgador e busca a verdade real, e não prover valorações em seus atos. Estabelecendo assim uma abstração, no senso-comum, fantasia acerca da figura do legislador, uma idealização ético-metafísica.

No entanto, são encontrados no universo jurídico quotidiano, em um entendimento mais técnico e apurado, organismos viciosos que deturpam os princípios idealizados. Desse modo, constata-se que o criminoso passa de um sujeito natural ou ente absoluto inerente à criminalidade e torna-se parte da vontade do legislador, que deve perpetuar os “ditames coercitivos” a fim de assegurar seus próprios privilégios e continuar a subjugar os demais, tais preceitos desmitificam o paradigma crime-criminoso e os põem em um plano mais realístico, sintético e positivista. A previsão legal não arrola todos os fatos possíveis do universo hodierno e estes fatos a descoberto nota-se uma não coincidência quanto a seu fim, que não por mero acaso. Como os pobres mais facilmente tangem à criminalidade relativa a pecúnias em espécie, nota-se um maior arrocho nas punições para esses casos se comparados aos crimes predominantes às classes médias e ricas, que também cometem diversos crimes, mas há uma tolerância maior na repressão destas classes mais abastadas. Logo, a “justiça” pauta-se mediante a posição social do autor, não sobre os atos e muitas vezes essa visão está arraigada meramente em uma valorização social distorcida e preconceituosa.

 Como forma de garantismo legal às normas, a figura do advogado permeia-se providencial no auxílio ao processo requerido, aonde há um papel reservado de fato para ser desempenhado pelo advogado, o qual pode ser definido de acordo com as seguintes atribuições: impedir que o constituinte sofra violências e arbitrariedades; manejar em sua conveniência os frutos de pedidos de pistolões e do fornecimento de gratificações (deve saber a quem e com quanto se deve gratificar), de sorte a retirar o máximo proveito de tais fatores (mercê da competência e experiência, sabe o que deve constar ou ser omitido dos autos). 

Ainda sob o olhar de uma criminologia crítica mais extremista, abolicionista, verifica-se que o direito faz uso de subterfúgios para ludibriar os cidadãos, se esconde sob um véu travestido de um discurso benevolente, progressista e democrático escondendo seu escopo finalístico de sistema repressor e punitivo para “restabelecimento de ordem”. Com voz de ressocialização, recuperação do apenado e integração do mesmo novamente à comunidade, esconde os métodos de violência empregados com intuito de punir e mitigar possíveis resistências ao sistema. Os instrumentos que fazem valer as vontades do sistema penal são a penitenciária, o manicômio judiciário e o internato para menores. E como forma de atenuar estas penas, suprime-se parcialmente a liberdade por meio da liberdade vigiada e prisão condicional.

No regime de cárcere deve-se seguir aos ditames das ordens do sistema penitenciário indubitavelmente. Não fazer julgo das ações sofridas ou que se deve cometer, mas simplesmente respeitá-las como verdades dogmáticas onde não devem incorrer julgamentos sobre os meios e fins da metodologia das práticas ali aplicadas. Em contraponto a qualquer princípio ético, o apenado é desprovido de vozes e qualquer outro tipo de expressão, deve se sujeitar a norma impugnada de preconceito sem fazer questionamentos. Aos presos que se submetem ao regime e se comportam de forma a não infligir ou indagar sobre ao que está sendo submetido, ele é tido como um modelo ideal de apenado, discurso reiterado pela classe dominante com intuito de incutir a população como é a “melhor” forma de se portar naquela situação. O que se pode observar é a incompatibilidade da figura falada para o elemento fático atual. O sistema prisional é falho por si próprio, não em falhas pontuais que poderiam ser consertadas, até que se fossem consertar essas falhas já seria uma dificuldade incomensurável, e no fim, o sistema em seu modelo ideal ainda se mostraria incompatível com a realidade.

Em divergência dos submetidos integralmente ao sistema imposto, os “bons presos”, tem a figura dos sujeitos que não aceitam a norma a eles imposta, além da irrrestrita obediência. Esses “maus presos” são tratados como um elemento subversivo ao status quo e, portanto, devem ser eliminados, extirpados do sistema social, eximindo-os de sobremaneira a um convívio social. Devendo estes, ficarem isolados, renunciados de suas faculdades, cessando ferozmente suas possibilidades de lograr êxito em qualquer tentativa de romper ao regime imputado. Esses “elementos” (como assim são julgados pelos órgãos judiciais e policiais), não são interessantes para a perpetuação da sociedade e, sequer para o molde do sistema prisional vigente. Eles se tornam uma ameaça e, por conseguinte, preocupação indesejada para o Estado.

Essa inobservância aos preceitos do direito positivo, é mais que um ato ilegal, ele se configura como uma ameaça a estrutura político-jurídica, logo, o violador deve ser eliminado do convívio social, isso porque além dele não desrespeitar os ditames do Estado (que deve ser soberano), também não deve “contaminar” os demais indivíduos ainda “puros”.

3 CONTEXTO NACIONAL

A criminologia foi trazida para a América Latina no início do século XX depois de ver suas teses combalidas por diversos setores científicos europeus, enxergando então no hemisfério sul uma nova chance de reviver suas ideias. Ao inserir-se nas discussões academicistas, em seus congressos e palestras, essa nova disciplina influenciará notoriamente uma ampla gama de setores da sociedade, estabelecendo regimentos a serem obedecidos em penitenciárias, assim como questionará a aplicabilidade e teorias de todo o direito penal em consolidação de várias Constituições instauradas.

No Brasil, um dos maiores nomes na criminologia é a professora Vera Regina Pereira de Andrade, que estuda esta ciência a mais de vinte anos. Entrando em contato e elaborando pesquisas com grandes autores como o pesquisador Eugênio Raúl Zaffaroni, Vera contribuiu, e muito, para que a criminologia fosse incluída nas grades curriculares dos cursos de Direito de diversas universidades nacionais, sobre tudo a Universidade Federal de Santa Catarina. Sempre defendendo que o sistema penal perdeu seu propósito e eficiência, Vera Andrade disserta em seus livros sobre a necessidade de mudarmos o que não está funcionando, não por não funcionar corretamente, mas por funcionar para os fins incorretos. Segundo a autora, a aplicação do Direito Penal sempre foi orientada à algumas classes específicas da sociedade, o que o torna um instrumento de legitimação da impunidade dos mais abastados em troca de punições dos estereotipados.

A corrupção, o despreparo, a impunidade, a prevaricação e o medo de ir contra o sistema são fatores que se destacam para o sistema penal brasileiro continuar funcionando de forma instrumentalizada. É fácil notar o problema em todo o país. Quando vamos ao centro da cidade, podemos ver ações policiais para combater o contrabando e a pirataria, no entanto, na próxima esquina não é difícil achar um policial militar comprando CD pirata, sendo notório que até as autoridades são seletivas para aplicação da lei. Essa falta de “justiça” é o que move, na prática, a criminologia. Nosso cotidiano está cheio de exemplos que confirmam a falta de eficiência do sistema penal, bem como a seletividade do sistema ao escolher onde, quando e a quem aplicar as punições.

As estatísitcas de crimes sobem a cada dia, ligamos a TV e vemos a imensa incidência de mais crimes, e apesar de várias pessoas estarem presas, a sensação de insegurança também aumenta a cada vez que saimos à rua. Os programas policiais que hoje são exibidos nas TVs são extremamente sensacionalistas e alimentam o imaginário popular de que quanto mais “bandido” prender melhor, e infelizmente, não mostram qualquer proposta ou solução para melhorar o sistema, apenas reafirmam o já existente e que não está dando certo.

A tecnologia tem sido a grande aliada do cidadão na tentativa de se “defender” dessa visão de um mundo cheio de crimes e medo. Em meio a todo esse contexto, os equipamentos de segurança, tais como câmeras, central de alarmes, cercas elétricas etc, são vendidos como equipamentos essenciais para a vida na cidade, e à medida em que seus vizinhos instalam os equipamentos, é a sua casa  que passa a ser o alvo mais fácil. Não só os programas de TV são responsáveis pela sociedade ter essa visão errada dela mesma, mas a descrença nas autoridades é um fator determinante. Sem acreditar na capacidade da Polícia, os mais dispostos criam programas populares (grátis) cuja a finalidade é mostrar onde está o crime.

O professor Vasco Furtado, da Universidade de Fortaleza, desenvolveu um site chamado WikiCrimes (WikiCrimes.org) que mostra todos os detalhes de um crime, localizando-o na cidade em que foi cometido. Isso tudo pode ser feito pela própria vítima ou por alguém que testemunhou o crime, ou seja, agora estamos compartilhando informações sobre crimes, quase como as redes sociais que fazem tanto sucesso. Dessa forma, a própria população informa aos indivíduos onde seriam os locais com maior ocorrência de crimes. Até o momento (13/05/2011 – 01:58h), já foram registrados 58.531 crimes em todo o Brasil, sendo dois destes ocorridos na cidade de São Luís.

A sociedade brasileira tende a reafirmar o sistema penal, divulgando e propagando a visão de que o crime cresce a cada segundo, sem procurar as causas ou origem destes. A criminologia não se deixa abater, no entanto precisa enfrentar esses gigantes antes de realmente começar a fazer algum efeito considerável na sociedade e em sua compreenção do que seja o crime, entendendo o porque deste e a real intenção da lei penal.

Exposto o porquê dessa falsa visão brasileira, começamos a entender a razão e “necessidade” que a sociedade tem de retirar das ruas as pessoas que nela moram. O sistema penal não é o que é unicamente porque o Estado quer, a própria sociedade dá seu aval para que este continue existindo e puna qualquer um que se encaixe no perfil que ela tem de um criminoso, como por exemplo os moradores de rua. Segundo o imaginário popular, são essas pessoas que trazem o perigo às ruas, ou melhor, são elas que tornam as ruas perigosas, são elas também que cometem os crimes e elas, consequentemente, que devem ser presas. Os moradores de rua são simplesmente criminalizados para atender aos anseios da sociedade por segurança. Ora, se eu não me vejo como criminoso, nem vejo as pessoas afetivamente próximas a mim como criminosas, mas mesmo assim a TV (mídia), que supostamente deveria ser imparcial e falar a verdade, mostra que os crimes estão ocorrendo em maior quantidade a cada dia, logicamente que alguém tem que ser culpado por isso, alguém deve pagar por isso, o sistema precisa selecionar “um” indivíduo para ocupar o lugar de criminoso e em seguida mandá-lo para o sistema carcerário, e assim, justificar a sua existência e mostrar à sociedade o quão eficiente ele é. Logo, por conveniência e lógica (errada), o sistema escolhe quem está mais desprotegido, ou melhor, o sistema “elege” os mais desprotegidos como os criminosos que devem ser presos e executa a função para que foi criado. Nessa óptica, o morador de rua encaixa-se como uma luva neste “cargo público” criado pelo Direito Penal. “Eleito” para ocupar o sofrido cargo de criminoso público, o morador de rua fica praticamente indefeso diante de um sitema tão forte e bem estruturado.

Nada mais fácil para um sistema corrupto, que lidar na maioria das vezes com pessoas sem chances de defesa. Imagine: Se um indivíduo não tem dinheiro ou status social elevado, o Estado se incumbe de fazer valer os direitos deste indivíduo. Mas essa “ajuda”, nem sempre é uma ajuda real. O Estado é soberano, tendo somente ele o poder de usar a força física para penalizar ou fazer cumprir um dever não cumprido. Ele também é responsável por fiscalizar o abuso durante o uso da força. Se não bastasse, é ele também, o detendor do direito de julgar se foi ou não um ato abusivo. Ou seja, o Estado seleciona, prende, acusa, defende e julga, sendo ao mesmo tempo corrupto. Como levar a sério um sistema tão falido quanto este? A resposta: A propaganda é a alma do negócio e a solução deste problema.

Mesmo que o Estado não cumpra com o dever de proteger a todos, basta mostrar para a sociedade que ela está sendo livrada de um mal, daqueles que consideramos criminosos e, ao mesmo tempo alimentar a visão de que os outro estão protegidos porque merecem. O invidíduo esteriotipado é o ator principal dessa propaganda, pois nada mais bonito aos olhos de um “cidadão de bem” que uma cidade livre de mendigos e barracos de madeira embaixo das pontes e terrenos desocupados.

4 CONTEXTO LUDOVICENSE

Ao contrário de alguns países como os E.U.A., o Brasil tem um único Código Penal que vale em todo seu território. Dessa forma, o contexto nacional apenas se replica nas cidades brasileiras, sendo poucas as cidades cujos projetos criminológicos são colocados em prática e em larga escala. Ver nas ruas campanhas de ressocialização de presas, contra os maus-tratos de detentos, ou até mesmo em defesa de penas mais leves e alternativas, é algo raro, e a cidade de São Luís não foge à regra.

Claro, alguns grupos e ONGs fazem esses trabalhos nas ruas, mas em grande parte apenas cobrem a ferida criada pelo sistema, não geram uma reflexão na sociedade que possa causar um efeito redutor das práticas abusivas. Tentando ganhar mais espaço, a tecnologia entra em cena novamente, mas agora para ajudar a criminologia. Da mesma forma que a sensação de medo é propagada pela internet, as companhias ganham mais força e adeptos com a divulgação on-line, e talvez em um momento essa quantidade seja suficiente para reverter esse quadro e curar as feridas.

Se sairmos nas ruas de São Luís, podemos notar o quão presente o Governo não está (2011). Os semáforos estão queimados a meses, há buracos em todos as ruas, incluindo as avenidas principais e pontos turísticos, no entanto, centenas de viaturas são compradas para equipar a Polícia Militar do Maranhão. Um helicóptero foi comprado recentemente para ampliar as operações a reprimir o crime no Estado - segundo a Secretaria de Segurança Estadual, é o melhor helicóptero da força policial brasileira (no Estado mais pobre da Federação). Em contra partida, os moradores de rua sequer têm albergues públicos para passarem a noite, há poucas oficinas culturais, são raras as vezes que vemos qualquer ajuda humanitária do Governo, a Defensoria do Estado tem pouquíssimos profissionais, e os problemas vão além do que pode ser escrito neste texto.

Não pretendemos com esta comparação, criticar a compra de equipamento mais moderno ou o investimento na frota de PM-MA, mas sim mostrar o quão a visão do Governo é turva. Dar o básico a população não é necessário, mas prender bandido está no topo da lista. Ora, como iremos parar de “produzir” bandidos se não há investimento em educação? Como a população verá o Governo com bons olhos se não tem o básico? Como os crimes diminuirão se estamos “produzindo” bandidos? Se continuarmos agindo assim, chegaremos a ponto de ter que transformar toda a população que não está no esteriótipo de criminoso em policiais, para só então darmos conta de prender os supostos bandidos (isso porque não estamos considerando os policiais bandidos).

Quem fica mais exposto a essa máquina de prender pessoas é quem está na rua. Eles já foram excluídos da sociedade porque a imagem que queremos desta sociedade é outra, e ainda por cima deve ficar de frente com o sistema que está pronto para prendê-los ao menor deslise. Esta situação fica mais evidente se alguém se dispõe a conversar com algum morador de rua.

Para mostrar empiricamente os valores expostos neste artigo, foi realizada uma entrevista com um ex-morador de rua no Centro Histórico de São Luís, considerado Patrimônio da Humanidade (que está abandonado). Em sua fala é fácil notar que a propaganda do sistema é tão forte e bem elaborada, que converte até os próprios moradores de rua, fazendo com que as vítimas do sistema sejam a favor de maior repressão e penalização.

ENTREVISTA COM EX-MORADOR DE RUA (TRECHO – 07/05/2011)

Estudantes: Você  não é morador de rua atualmente, mas você já foi morador de rua?

Ex-morador de rua: Já. Morei na rua em Minas Gerais, Belo Horizonte, Salvador etc.

Estudantes: E como foi essa experiência?

Ex-morador de rua: A experiência era aquela de ficar com um olho aberto e outro fechado. A maioria das pessoas chegava perto pra oferecer bebida e drogas. Queriam endoidar a gente pra levar o pouco que eu tinha.

Estudantes: Como você acabou virando morador de rua?

Ex-morador de rua: Eu comecei a viajar por causa do artesanato e em algumas cidades eu não tinha grana suficiente para ficar em algum local e dormir lá.

Estudantes: E morar na rua, foi algo que o incomodou muito, ou não?

Ex-morador de rua: Às vezes incomodava, mas às vezes era tranquilo. Tem muito gente doida na rua.

Estudantes: Você acha que os moradores têm menos direito que as pessoas com mais posses?

Ex-morador de rua: Ahh....menos moral ele vai ter.

Estudantes: Você já foi denunciar alguma coisa na polícia?

Ex-morador de rua: Sim. Já fui sim. E como eu já passei pelo Quartel, então fica mais tranquilo. Mas se chegar muito sujo, largado, aí num dão muito valor.

Estudantes: Você acha que o sistema é que cria essa imagem do morador de rua ou os moradores de rua contribuem para isso?

Ex-morador de rua: O sistema ajuda, mas os moradores fazem coisas que contribuem para isso.

Estudantes: E você acha que a maioria das pessoas que mora na rua são bandidos?

Ex-morador de rua: Não, a maioria é normal, não são criminosos, mas alguns fazem besteiras.

Estudantes: Então existem injustiças praticadas contra os moradores?

Ex-morador de rua: Tem, mas a maioria das vezes  a própria pessoa (morador de rua) faz coisas que não deveria fazer. Tem vezes que a pessoa tá com coisa, tá com droga e pegam ela e mesmo assim ela não fala. Aí, os policiais batem e torturam pra poder a pessoa falar. Aí, eu acho que é motivo, porque ela mesma está fazendo coisa errada.

Estudantes: Você já foi acusado de algum crime que não cometeu?

Ex-morador de rua: Já.

Estudantes: E o que aconteceu?

Ex-morador de rua: Ah...depois vieram as provas. Provei que não foi eu quem fez a coisa. Se eu não tivesse um bom diálogo teria apanhado.

Estudantes: E porque acontecem essas injustiças?

Ex-morador de rua: O sistem é bruto. Visa grana o tempo todo e aí só dá merda. Qualquer problema com policial corrupto e político...é por causa de grana. Quando eu sou mal recebido em algum local, porque eu estou mal vestido, é porque acham que não tenho grana, se eu tivesse de terno, todo bonitinho, isso não acontecia.

Estudantes: Mas qual seria a solução para mudar essa situação de injustiça?

Ex-morador de rua: Fazer leis mais severas. A pessoa tinha que pagar pelo que fez, preso.

Estudantes: Mas se amanhã a lei fosse ainda mais rígida você acha que a injustiça diminuiria?

Ex-morador de rua: Se fosse forte mesmo, a pessoa não faria besteria. Ficariam com medo de fazer. É igual mandar tirar a mão, o dedo e o braço de quem roubou, o outro já vai ficar com medo de roubar. Não rouba só de medo.

Ainda no Centro Histórico, para se ter uma ideia do ponto de vista das pessoas que fazem parte da linha de frente do Estado no combate ao crime, foi entrevistado um policial militar, integrante do grupo de policiais, responsável pelo policiamento do local. É possível notar que apesar das respostas politicamente corretas do policial, tem-se um preconceito sobre o morador, sendo este algo indesejado para a sociedade. Tal sentimento parece estar internalizado no policial mesmo durante o exercício de sua profissão, que deveria ser imparcial e fazer valer o que está na lei, não a vontade do senso comum da sociedade.

ENTREVISTA COM POLICIAL MILITAR (TRECHO – 07/05/2011)

Estudantes: Quando vocês abordam os moradores, alguém reclama que vocês estão sendo truculentos?

Policial Militar: Ahhhh...tem sim. Esse local ali, olha...chama-se Defensoria Pública. Qualquer problema com a Polícia é lá que eles vão.

Estudantes: E funciona?

Policial Militar: Contra a Polícia tudo funciona. Parece que temos que prender os outros se desculpando pelo ato.

Estudantes: Você acha que com a rotina e o stress a Polícia deixa de cumprir com as garantias do indivíduo, como por exemplo ficar calado, não ser algemado (em regra)?

Policial Militar: Cumprimos sim, só algemamos quando necessário.

Estudantes: Você acha que a lei ampara  a ação policial?

Policial Militar: Não a lei que segura eles, mas a lei de prender sim.

Estudantes: Ou seja, prender é fácil, mas manter preso é difícil?

Policial Militar: Exato!!! Falta algo pra deixar eles  presos, realmente !!!

CONCLUSÃO

            A sede por tornar tudo como queremos de forma rápida e fácil nos leva a excluir as demais pessoas que não nos convêm.  É mais fácil ignorar, deixar de ver um morador de rua e chamá-lo de criminoso que parar e entender o porquê do problema. O Governo tenta satisfazer a todos, dando algumas políticas públicas pontuais que sequer chega a arranhar a casca desse enorme problema, mas seus investimentos nesses projetos não chegam aos pés do montante investido a cada segundo em armas e política de repressão. Ficamos felizes ao ver uma pessoas ajudando a outra, e mais felizes ainda quando vemos um suposto bandido ir parar na prisão, mandado para um sistema que tornará o sofrimento parte integrante da vida do invidíduo, que por lógica tende a espalhar o que sente.

É assim que vemos o Estado, pouco eficiente e pequeno. Queremos que este seja maior e mais forte, combata a todos que nos prejudiquem, todos que têm potencial para nos causar algum mal. Não queremos ver o criminoso se dando bem, saindo ileso. Queremos que ele sofra, que o estado nos vingue e que mostre aos outros o quão é ruim ser um criminoso. No entanto, isso só nos cria outro problema: o indivíduo sai da prisão pior e mais agressivo, ao invés de aprender como ser uma pessoa melhor, aprende como ser um criminoso melhor, mais cruel e por conseguinte mais eficiente.

            Morar na rua é difícil. Viver cada dia em uma rua ou viela, sem teto, sem parede, sem banheiro, cobertor, água, sabonete ou quaisquer pequenos “luxos” que passam desapercebidos aos nossos olhos, não se compara a ter que enfrentar nessas condições um sistema preparado para ser truculento e desonesto. Morar na rua não é fácil, mas mais difícil ainda é ser invisível aos outros, ao convívio social e ao mesmo tempo reluzente para as algemas do Estado.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A construção social da criminalidade pelo sistema de controle penal. 2006. Disponível em: <http://www.novacriminologia.com.br/Artigos/A rtigoLer.asp?idArtigo=1254>. Acesso em: 05 mai. 2011.

ENCICLOPÉDIA BARSA, Crime, Livro 4, página 486. Encyclopaedia Britannica Editores Ltda, Rio de Janeiro, 1997. 

ENCICLOPÉDIA BARSA, Lombroso, Cesare, Livro 9, página 110. Encyclopaedia Britannica Editores Ltda, Rio de Janeiro, 1997. 

SILVA, Leonardo Rabelo de Matos. A criminologia e a criminalidade. 1997. Disponível em: < http://jus.uol.com.br/revista/texto/4137/a-criminologia-e-a-criminalidade>. Acesso em: 03 mai. 2001.

THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos: O Crime e o Criminoso: Entes Políticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.