CRIMINALIZAÇÃO DE MORADORES DE RUA EM SÃO LUÍS - MA: o dever de proteção do estado, da sociedade e da família para mudar o caminho das crianças em situação de rua

Dihones Nascimento Muniz[i]

Kelson Barreto Vieira[ii]

 

Sumário: Introdução; 2 As influências dos preconceitos e estereótipos na seletividade penal; 3 Crianças em situação de rua; 4 O dever de proteção do Estado, da família e da sociedade para mudar o caminho das crianças em situação de rua; 5 Considerações Finais; Referências.

RESUMO

 

 

A partir da perspectiva de que existe uma seletividade da norma penal, que expõem os moradores de rua, por se encaixarem aos critérios desta seletividade. O objetivamos neste trabalho esclarecer que a seletividade penal faz parte do ordenamento jurídico penal brasileiro, e que existe um dever especial de proteção do Estado, da sociedade e da família de proteger as crianças que se encontram em situação de rua.

PALAVRAS-CHAVE: Seletividade penal. morador de rua. Criança. dever de proteção.

A humanidade não se divide em heróis e tiranos. As suas paixões, boas e más, foram-lhe dadas pela sociedade, não pela natureza.”

Charles Chaplin

INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende abordar a seletividade penal presente no ordenamento jurídico penal brasileiro, que incluem os moradores de rua nos critérios desta seletividade, através dos estereótipos e preconceitos contidos na sociedade. O trabalho pretende ainda fazer um estudo a respeito das crianças em situação de rua, tratando da situação de risco que as mesmas se encontram e o comprometimento de seu desenvolvimento. Por fim, disporemos do dever de proteção do Estado, da família e da sociedade na proteção e transformação dos caminhos de miséria e criminalidade destas crianças e adolescentes.

2. As influências dos preconceitos e estereótipos na seletividade penal

 

A Constituição Federal brasileira em seu artigo 5º dispõe que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]”. Aristóteles vinculou a justiça à idéia de igualdade, que trata-se de igualdade de justiça relativa que dá a cada um o seu, uma igualdade que segundo Chomé é impensável uma igualdade sem a desigualdade complementar, que se satisfaz se o legislador tratar de maneira igual os iguais e de maneira desigual os desiguais. Cuida-se de uma justiça e de uma igualdade formais. No fundo, prevalece, nesse critério de igualdade, uma injustiça real. Essa verificação impôs a evolução do conceito de igualdade e de justiça, a fim de se ajustarem às concepções formais e reais ou materiais.[1]

Segundo Carmen Lucia Antunes rocha, “Igualdade constitucional é mais que uma expressão de direito; é um modo justo de se viver em sociedade. Por isso é principio posto como pilar de sustentação e estrela de direção interpretativa das normas jurídicas que compõem o sistema jurídico fundamental.”[2]

Quão belas são estas diretrizes trazidas pela Constituição, todavia as mesmas só se realizam na teoria, visto que colocadas na pratica, ocorre o oposto. Alessandro Baratta ao fazer uma dialética entre o sistema escolar e o sistema penal, constatou que ambos se correspondem ao fato de que realizam, essencialmente, a mesma fundação das relações sociais e de conservação da estrutura vertical da sociedade, criando, em particular, eficazes desestímulos à integração dos setores mais baixos e marginalizados do proletariado, ou colocando diretamente em ação processos marginalizadores. Por isso, explica o autor, encontramos no sistema penal, em face dos indivíduos provenientes dos estratos sociais mais baixos, os mesmos mecanismos de discriminação presentes no sistema escolar.[3]

Segundo Zaffaroni, a seletividade do sistema penal serve para atingir apenas as classes sociais mais baixa,

O sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade seu funcionamento e seletivo, atingindo apenas determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas[4]

Os moradores de rua, seres humanos que pertencem aos quadros mais miseráveis da sociedade, encontram-se em situação de vulnerabilidade perante o sistema penal, posto que segundo Alessandro Baratta, os crimes cometidos por pessoas de classes sociais baixas são os que possuem as maiores penas e os que mais são punidos. Segundo o autor, a seleção criminalizadora ocorre já mediante a diversa formulação técnica dos tipos penais e a espécie de conexão que eles causam com o mecanismo das agravantes e das atenuantes, para o Baratta, é muito raro que se realize um furto não agravado. As malhas dos tipos penais são, em geral, mais sutis no caso dos delitos praticados por pessoas pertencentes as classes sociais mais privilegiadas, do ponto de vista da previsão abstrata, tem uma maior possibilidade de permanecerem imunes.

A valoração da culpa e as circunstancias atenuantes a posição econômica do acusado se correlacionam na aplicação da lei penal. Conseqüentemente, ocorre que nos critérios que presidem à aplicação da suspensão condicional da pena, como os elementos relativos à situação familiar e profissional do acusado jogam um papel decisivo na decisão do juiz.[5] Ora! Como um morador de rua poderia ser beneficiado com a suspensão condicional da pena? Os critérios dispostos em alguns benefícios penais dificilmente seriam alcançados pelos moradores de rua, isso se dá, visto que eles não pertencem a esfera social imune as leis penais. Estes benefícios foram criados apenas para proteger as classes sociais dominantes. Baratta dispõe que

Estudos neste campo mostram que estes critérios são particularmente favoráveis aos acusados provenientes das camadas superiores e desfavoráveis aos provenientes das camadas sociais mais inferiores. Considerando enfim, o uso de sanções pecuniárias e sanções detentivas, nos casos em que são previstas, os critérios de escolha funcionam nitidamente em desfavor dos marginalizados e do subproletariado, no sentido de que prevalece a tendência a considerar a pena detentiva como mais adequada, no seu caso, porque é menos comprometedora para o seu status social já baixo, e porque entra na imagem normal do que freqüentemente acontece a indivíduos pertencentes a tais grupos sociais, enquanto, ao contrario,para reportar as palavras de um juiz pertencente a um grupo o qual foi dirigida uma pesquisa, um acadêmico na prisão é, para, nos, uma realidade inimaginável. Assim, as sanções que mais incidem sobre o status social são usadas, com preferencial, contra aqueles cujos status social é mais baixo.[6]

A citação é longa, ma serve para comprovar que a seletividade do direito penal brasileiro, sobretudo, os moradores de rua, por se encaixarem nos critérios desta seletividade, expõem-se despido de qualquer proteção que nem mesmo a Constituição foi capaz de assegurar com eficácia esta igualdade tão almejada.

 

 

3. Crianças em situação de rua em São Luís-MA

O desenvolvimento de crianças em situação de rua é reduzido, segundo o psicólogo Dr. Claudio Simon Hutz, o fato de estarem em situação de rua, já as proporcionam, em conseqüência, situação de risco, que segundo ele, acontece quando seu desenvolvimento não acontece de acordo com o esperado para sua faixa etária e de acordo com os parâmetros de sua cultura. O risco, Segundo Hutz, poderá ser físico (doenças genéticas ou adquiridas, prematuridade, problemas de nutrição, entre outros), social (exposição a ambiente violento, a drogas) ou psicológico (efeitos de abuso, negligência ou exploração). Para Hutz, os comportamentos de risco referem-se “a ações ou atividades realizadas por indivíduos que aumentam a probabilidade de conseqüências adversas para seu desenvolvimento ou funcionamento psicológico ou social, ou ainda que favorecem o desencadeamento ou agravamento de doenças.” [7]

Para a psicóloga Sílvia Helena Koller, o uso de drogas, comportamento sexual promíscuo, relações sexuais desprotegidas, família desestruturada, falta de modelos apropriados, socialização imprópria para promover o respeito pela vida e pela dignidade dos seres humanos, etc., são fatores que põem em situação de risco, crianças e adolescentes em todas as classes sociais.[8] Em São Luís não o é diferente, as crianças que vivem em situação de rua também estão em situação de risco. Ao observarmos rapidamente crianças em situação de rua em alguns pontos da cidade, podemos constatar que todas se enquadram como crianças em situação de risco, ao nos aproximarmos, constatamos ainda que se utilizam de meios lícitos e ilícitos para sobreviverem. O uso de drogas, segundo elas, é para tentar amenizar a dor de se encontrar nessa situação.

Os abusos da sociedade e a omissão do Estado contribuem para que essas crianças tenham um futuro comprometido, tendo em vista que as perspectivas que elas tem, é de somente viver na mesma situação, a pratica de pequenos delitos pode ser apenas um estagio para que as mesmas passem a cometerem crimes mais sérios e assim serem enquadrados na seletividade do direito penal.

4. O dever de proteção do Estado, da família e da sociedade para mudar o caminho das crianças em situação de rua

A Constituição Federal em seu artigo 227, juntamente com o Estatuto da Criança e do Adolescente nomeiam a sociedade e o Estado para a proteção de crianças e adolescentes.

 

Art. 227, CF É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.[9]

 

 

As obrigações contidas neste artigo em face do Estado, da família e da sociedade para a proteção de crianças e adolescentes, devem ser imediatamente postas em ação, tendo em vista que a situação de risco que as crianças se encontram, sobretudo, em situação de rua é um problema grave, pois, é fácil constatar que é grande o número de crianças e adolescentes nessa situação. A exploração de todo natureza são cometidas contra essas crianças e adolescente, que segundo o direito a igualdade disposto na Constituição Federal em nenhum momento são exercidos, visto que é notório o descaso do poder público para a proteção dessas crianças.

O direito a vida não se resume apenas no direito de viver, mas no direito de viver com dignidade. O direto à saúde e a alimentação não chegam a estas crianças e adolescentes. A educação que essa crianças tem acesso é somente a o do dia-a-dia, que as ensinam a sobreviver em meio a uma sociedade egoísta e um Estado omisso. O Estado e a sociedade a partir deste artigo, devem fornecer a estas crianças e adolescentes em situação de rua, a oportunidade de terem seus caminhos mudados, que possam sair da miséria e terem uma vida digna.

O Estatuto da Criança e do Adolescente,  criado para amparar as Crianças e Adolescente dispõe em seu art.98 que as medidas de proteção à criança e ao adolescente devem ser tomadas assim que os direitos das mesmas sejam violados ou ameaçados.

Este artigo fornece a premissa de que é dever da sociedade em geral e do Poder Público em especial, alem da família, assegurar as crianças e adolescentes seus direitos básicos.[10] O auto grau de risco que as crianças e adolescente correm ao se encontrarem em situação de rua e a omissão do Estado e da sociedade em fornecer-lhes direitos básicos de sobrevivência e direitos que venham garantir seu pleno desenvolvimentos encaminham essas criança para uma vida de eterna miséria e criminalidade.

Por força da Constituição Federal, dos Tratados Internacionais e do Estatuto é Dever do Estado, da sociedade e da família mudar o caminho dessas crianças para que tenham desde já uma vida digna.

5. Considerações Finais

A seletividade penal impõe aos indivíduos advindos das classes sociais mais baixas toda força punitiva do direito penal, deixando para as classes privilegiadas, impunidade e “regalias”. A promoção da igualdade posta pela Constituição poderá ser vista, na perspectiva do direito penal brasileiro, como algo distante. O judiciário, partindo da vinculação de preconceitos e estereótipos de indivíduos impostos pela sociedade, segundo Baratta, leva os juízes inconscientemente, a tendências de juízos diversificados conforme a posição social dos acusados, e relacionado tanto à apreciação do elemento subjetivo do delito quanto ao caráter sintomático do delito em face da personalidade e, pois, à individualização e à mensuração da pena, a partir destes pontos de vista.

O desenvolvimento de crianças em situação de rua é comprometido pelas diversas mazelas que esta situação as impõe. A situação de risco e a impossibilidade de acesso aos direitos básicos de vida e de desenvolvimento encaminham estas crianças para a continuidade da vida em miséria e criminalidade. O Estado que estas crianças se encontram proporcionam para o futuro uma sociedade cada vez mais desigual, que somente poderá ser transformada se o Estado e a sociedade se dispuserem a mudar este quadro.

O dever de proteção do estado é algo que se distância, tendo em vista que as movimentações em prol das crianças e adolescente são insuficientes e inadequadas, ao ponto de o problema se agravar a cada dia. O acompanhamento preventivo de crianças propicias a se encontrarem em situação de rua, com o acompanhamento familiar é posto pela legislação. Todavia constatamos que é difícil de acontecer se o Estado continuar omisso e a sociedade permanecer no estado de acomodação.

A transformação dessa triste realidade dependerá do esforço conjunto do Estado, da Família e da sociedade, na transformação do futuro destas crianças e adolescente que infelizmente se encontram em situação de rua. Por fim, através deste trabalho, esperamos expor com precisão as intenções aqui pretendidas.

Referências

BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal: introdução à Sociologia do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Renavan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

CHAVES JUNIOR, Airto; MENDES, Marisa Schmitt Siqueira. A criminalização primária e a norma penal brasileira. Considerações acerca da sua seletividade. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2064, 24 fev. 2009. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/12375. Acesso em: 3 maio 2011

CURY, Munir; E SILVA, Antonio Fernando do Amaral; MENDEZ, Emilio Garcia. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: comentários jurídicos e sociais. 5ª ed.São Paulo: Malheiros Editores, 2002.

HUTZ, Claudio Simon; KOLLER, Sílvia Helena. Questões sobre o desenvolvimento de crianças em situação de rua. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1996.

SILVA, José A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros editores, 2002

THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos. O crime e o criminoso: entes políticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998.



[1] SILVA, José A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p.212.

[2] ROCHA apud SILVA, José A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p.213.

[3] BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal: introdução à Sociologia do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Renavan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p.175.

[4] ZAFFARONI apud  BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p.26.

[5] BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal: introdução à Sociologia do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Renavan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p.178.

[6] BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal: introdução à Sociologia do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Renavan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p.178.

[7]HUTZ, Claudio Simon; KOLLER, Sílvia Helena. Questões sobre o desenvolvimento de crianças em situação de rua. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1996.p.176-177.

[8]HUTZ, Claudio Simon; KOLLER, Sílvia Helena. Questões sobre o desenvolvimento de crianças em situação de rua. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1996.p.177.

[9] Art. 227 da Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988.

[10] Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: comentários jurídicos e sociais. 5ª ed.São Paulo: Malheiros Editores, 2002. p.297.



[i] Graduando do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco

[ii] Graduando do Curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco