Carlos Vinícius Sousa Rodrigues Eduardo Silva Merçon SUMÁRIO: Introdução. 1 Diferença entre os crimes de dano e de perigo, e entre os de perigo concreto e abstrato; 2 A sociedade de risco e os crimes de perigo abstrato; 3 Da legalidade dos crimes de perigo abstrato; 4 Conclusão; Referências. PALAVRAS-CHAVE: Crimes de perigo abstrato. Sociedade de risco. Princípios constitucionais penais. INTRODUÇÃO Muito se discute a respeito da legalidade dos crimes de perigo abstrato. Dada a importância dessa discussão, o objetivo desse trabalho é analisar a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato ou de perigo presumido, com base nos princípios constitucionais penais. Antes de analisar a constitucionalidade desses crimes, faz-se necessário conceituar os crimes de dano, de perigo abstrato e de perigo concreto. Depois falaremos da sociedade de risco e o surgimento dos crimes de perigo abstrato. E por final, analisaremos a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, à luz dos princípios da legalidade, da intervenção mínima, da lesividade, da proporcionalidade e da culpabilidade. 1 DIFERENÇAS ENTRE OS CRIMES DE DANO E DE PERIGO, E ENTRE OS DE PERIGO CONCRETO E ABSTRATO Os tipos penais têm como função, apontar os elementos tidos como indispensáveis à configuração de um crime, dessa forma, ao interpretarmos um tipo penal, faz-se necessário atentarmos para sua classificação doutrinária. Classificar doutrinariamente um tipo penal significa o mesmo que apontar a sua natureza jurídica. Uma vez detectada a natureza jurídica de uma infração penal, o trabalho do interprete fica extremamente facilitado no sentido de conhecer os vários aspectos que lhe são relevantes, como o seu momento de consumação, se é possível a tentativa, etc. Nesse trabalho, trataremos especificamente da classificação doutrinária que divide as infrações penais em: crimes de dano e de perigo, e estes últimos em crime de perigo concreto e de perigo abstrato. Os crimes de dano são os que só se consumam com a efetiva lesão do bem jurídico. Ou seja, a conduta do agente é realizada com a finalidade de produzir o resultado de causar dano ou lesão para o bem protegido pelo tipo penal. São exemplos desse tipo de crime: o homicídio e a lesão corporal. Já os crimes de perigo, a conduta do agente não tem a finalidade de produzir dano ou lesão ao bem jurídico protegido pelo tipo, tal conduta produz somente uma situação de perigo. Esse tipo de crime objetiva a punição do agente, antes que sua conduta perigosa venha a produzir um dano ou lesão ao bem jurídico protegido, dessa forma, os crimes de perigo são subsidiários em relação aos crimes de dano. Cria-se uma infração penal de perigo para que seja levada a efeito a punição do agente antes que seu comportamento perigoso venha, efetivamente, a causar dano ou lesão ao bem jurídico protegido. Dessa forma, os crimes de perigo são, em geral, de natureza subsidiária, sendo absorvidos pelos crimes de dano quando estes vierem a acontecer. Os crimes de perigo subdividem-se em: crimes de perigo abstrato e crimes de perigo concreto. Abstrato é o crime de perigo que: "é considerado pela lei em face de determinado comportamento positivo ou negativo. É a lei que o presume juris et de jure. Não precisa ser provado. Resulta da própria ação ou omissão" (Damásio, 1998, p.132). Segundo Magalhães Noronha (2003, p.88), "tais ações ou omissões, são baseadas em regras ditadas pela experiência ou pela lição dos fatos". Diz-se concreto, o crime de perigo, em que será preciso provar que a conduta do agente gerou perigo no caso concreto, ou seja, se levou ou não perigo ao bem jurídico protegido pelo tipo. Concluindo, a visão do perigo de natureza abstrata, considerado como presumido, é sempre feita ex ante, bastando a prática do comportamento comissivo ou omissivo previsto pelo tipo para que se entenda como criada a situação de perigo. Ao contrário, o crime de perigo concreto exige sempre um raciocínio ex post, ou seja, é preciso demonstrar que a conduta do agente, analisada no caso concreto, criou, efetivamente, uma situação de risco para os bens jurídicos de terceiros, pois, caso contrário, o fato será considerado atípico. Hoje, muito se discute a respeito da legalidade dos crimes de perigo abstrato, uma vez que não se verifica, no caso concreto, a potencialidade de dano existente no comportamento do agente, fato que feriria princípios constitucionais penais. E é exatamente nessa discussão, que este trabalho se atem. 2 A SOCIEDADE DE RISCO E OS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO Antes de entramos na discussão sobre a legalidade dos crimes de perigo abstrato, faz-se necessário, buscarmos o surgimento desse tipo de crime. É incontestável o fato da sociedade mundial esta sofrendo inúmeras e profundas transformações, que nos coloca numa fase de transição, marcada pela ambigüidade e complexidade que provocam um descompasso na forma de viver e interagir da sociedade. A transição mencionada diz respeito à mudança de uma sociedade industrial para uma sociedade digital e de uma sociedade nacional para uma sociedade global. Tais mudanças trazem uma série de outras mudanças inerentes a essa fase de transição. Estamos vivendo numa sociedade de risco, marcada pelos perigos que cercam o homem e o planeta, devido ao exagerado avanço tecnológico desprovido da consciência da esgotabilidade dos recursos naturais, marcada pela crença da criação de uma tecnologia perfeita que seria extraordinariamente capaz de resolver todos os problemas do homem e da sociedade e pela crença e esperança na capacidade humana de corrigir amanhã, o que está errado hoje, pela nossa capacidade criativa e inventiva. O certo é que a sociedade em que vivemos, cada vez mais percebe riscos e reflete sobre eles, que conseqüentemente causa uma tentativa a todo custo de diminuir a incidência de tais riscos. Tal percepção e reflexão aumentaram na mesma proporção em que a confiança na ciência diminuiu, e dessa forma, gerando medo ao corpo social, haja vista a dificuldade e a complexidade de lidar com determinadas situações. A partir daí, ocorre uma cobrança por parte dessa sociedade, para que o Direito regule tais situações em suas disposições, com o objetivo de proteger os cidadãos destas ameaças. Neste momento, a sociedade é posta em movimento, o estado de incerteza proveniente dos novos riscos toma conta do debate público e as instituições de controle da sociedade passam a ser questionadas. A partir de então os campos das ciências sociais, em especial as jurídicas, passam a ser orientados por uma nova tendência, a de expandir o espaço de atuação de intervenção estatal para evitar que o maior número possível de condutas, que tenham um conteúdo hipotético de risco, portanto indesejadas, não se realizem. Direciona-se esta nova tendência especialmente ao Direito Penal, o mecanismo de intervenção estatal mais rigoroso. O Estado, para dar respostas aos anseios da sociedade que vive em busca de soluções para a imprevisibilidade, insegurança e novos riscos surgidos, optou por adotar uma concepção de Direito Penal cada vez mais punitivo, preventivo e hipertrofiado, valorizando, dessa forma, a utilização de tipos penais de perigo abstrato, em contraposição aos de dano e perigo concreto, rompendo com a estrutura do direito penal clássico. Esta nova concepção de "Direito Penal do Risco" gerou, paradoxalmente, pontos conflitantes na estrutura fundamental do Direito Penal contemporâneo. Pontos estes que o afetam de maneira tal que se chega a questionar a legitimidade, a necessidade e a finalidade dessa atuação expansionista. Isto, além de causar dúvidas sobre quais os rumos que serão tomados pelo Direito Penal contemporâneo em um futuro próximo.[...] a reformulação do Direito Penal, nos moldes como se apresenta hodiernamente, causa também perplexidade, pois princípios e garantias fundamentais, que funcionam como obstáculos para a intervenção estatal penal na esfera de liberdade individual, passam a ser incondicionalmente flexionadas e, muitas vezes, até desprezados pela busca de uma aludida eficiência no combate aos "riscos". Uma busca que, contudo, não consegue alcançar a almejada eficácia e, assim, pode vir a transformar o Direito Penal em um mecanismo puramente "simbólico". Portanto, em contraposição ao Direito Penal clássico, que faz uso dos seus institutos para coibir o acontecimento de condutas socialmente indesejadas, firmando-se nos princípios da legalidade, proporcionalidade, intervenção mínima, culpabilidade e lesividade dos bens jurídicos tutelados, surge o Direito Penal de risco, que buscando impedir que condutas hipoteticamente arriscadas não se realizem, intervêm nas relações sociais preventivamente, flexionando significativamente os princípios acima mencionados. Vislumbra-se, então, que tentando dar uma solução para esta crise da sociedade, o Direito Criminal é chamado "em primeira mão", e levado a trabalhar cada vez mais com os crimes de perigo abstrato, que abrangem no muito das vezes situações prévias ao crime (punem o pré-delito). Tentando amenizar o medo da sociedade, usa-se a técnica legislativa e político-criminal para a elaboração dos tipos de perigo abstrato, que geram conflitos com princípios fundamentais do Direito Penal, além de sérios problemas de legitimação do ius puniendi, uma vez que os crimes de perigo abstrato sofrem de uma flagrante antecipação da punição criminal. 3 DA LEGALIDADE DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO Os crimes de perigo abstrato prevê uma conduta com a presunção absoluta que ela criará um perigo a um bem jurídico, dessa forma, a simples conduta do agente já é punida independentemente da existência ou não de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado. O tipo descreve e puni uma ação ou omissão e não seu resultado. Para Luiz Flávio Gomes, "o delito não é só desvalor da ação (seu fundamento não reside exclusivamente na conduta do agente criadora de risco) senão, sobretudo, desvalor do resultado (produção de um resultado jurídico penalmente relevante para o bem jurídico)" (2002, p.35). A presunção de perigo nos crimes de perigo abstrato vai de encontro a vários princípios constitucionais penais, qual seja, princípio da legalidade, da intervenção mínima, da proporcionalidade, da culpabilidade e da lesividade. Os crimes de perigo abstrato são fruto de uma técnica legislativa reprovável que fere a estrutura básica do tipo e contraria garantias fundamentais do indivíduo. O princípio da legalidade garante que só é crime, aquilo que a lei diz que é, mas não garante somente esse aspecto formal, pois "além desse aspecto formal, a figura delituosa apresenta também um aspecto substancial: o seu caráter danoso ou, pelo menos, perigoso, que acarrete perturbação às condições vitais da sociedade" (FRANCO, 2007, p. 01). Tendo em vista que os crimes em voga, apresentam em seus tipos uma descrição incompleta, na medida que não exige o resultado e presume o restante da conduta, eles contrariam o princípio da legalidade, e assim, permitem que arbitrariedades sejam cometidas, em prejuízo do réu, pelos aplicadores da lei. Sanção, sem que antes tenha ocorrido uma lesão ou ameaça concreta de lesão, é admitir a possibilidade do pré-crime, é punir alguém que não ofendeu qualquer bem jurídico. Sem lesão ou perigo concreto, não se admite pena, fato que excluiria o princípios da proporcionalidade da discussão, mas não excluirá, pois tal princípio é ferido em outro ângulo de observação. O legislador, em alguns casos, estabelece sanções mais pesadas para crimes de perigo abstrato que para crimes de lesão, exemplo disso, é o caso da pena do crime de disparo de arma de fogo ser maior que a pena do crime de lesão corporal. É um delírio, achar que um perigo é mais gravoso que um dano efetivo, além de ser incompatível com o princípio da proporcionalidade. Ao estabelecer uma conduta típica, sem determinar o resultado lesivo que ela causará e presumindo o restante da conduta do agente, o crime de perigo presumido, também, fere o princípio da lesividade do bem jurídico tutelado, pois "o bem jurídico põe-se como sinal da lesividade (exterioridade e alteridade) do crime que o nega, "revelando" e demarcando a ofensa" (BATISTA, 2007, p. 95). Essa materialização da ofensa, contribui para a limitação legal da intervenção penal e legitima o Direito Penal. O princípio da lesividade transporta para o terreno penal a questão geral da exterioridade e alteridade, assim, "só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral". Na conduta puramente interna e individual, seja pecaminosa ou imoral, falta a lesividade para legitimar a intervenção penal. Como o Direito Penal é o mecanismo de intervenção estatal mais rigoso, deveria ele, ser aplicado somente quando os outros ramos do Direito não foram eficaz. Os bens jurídicos protegidos pelos crimes de perigo abstrato, poderiam ser protegido com maior eficácia por outros ramos do Direito, como o Direito Civil e o Direito administrativo. A eficácia do Direito Penal é lenta e inadequada na proteção dos bens protegidos por esses crimes, podendo torná-lo num mecanismo puramente simbólico na satisfação dos anseios da sociedade de risco, que cada vez mais cria riscos novos. Isso tudo, é incompatível com o princípio da intervenção mínima. "Não é possível que o legislador ordinário venha fazer a presunção de que alguém praticou violência, quando essa inexistiu" (FRANCO, 2007, p. 03). Segundo o princípio da culpabilidade, é preciso não só o nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado dela, mas também, impõem uma subjetividade da responsabilidade penal, não se admitindo a responsabilidade penal objetiva. Portanto, a culpabilidade não se presume, colocando, dessa forma, os crimes de perigo abstrato em descompasso com o princípio da culpabilidade, vez que o legislador estabelece que basta a conduta prevista no tipo penal para que se presuma a culpa do agente, fundamentadas por regras ditadas pela experiência ou pela lição dos fatos. As violações acima expostas são reflexos da exigência da sociedade de risco, impondo que o Direito penal acompanhe a dinâmica social, ampliando sua atuação na proteção dos bens jurídicos criados em decorrência da criação de novos riscos. Tal exigência não passa de um delírio, de uma tentativa cega de se proteger dos novos riscos criados, e assim está sendo feito, amplia-se a abrangência do Direito Penal, mesmo que de forma inadequada e prejudicial à própria sociedade, transformando o Direito Penal, em um Direito cada vez mais punitivo, preventivo e hipertrofiado. É inadmissível que num Estado Democrático de Direito, tipos penais contrariem garantias e diretos fundamentais do indivíduo, utilização do Direito penal como mero símbolo. Assim, é necessário e imprescindível que se faça uma constitucionalização do Direito penal, tendo por base todos os princípios e garantias fundamentais presentes na Constituição Federal. Mesmo que o tipo preveja detalhadamente a conduta, nunca respeitará os princípios constitucionais penais, presumindo parte da conduta com a finalidade de que se consume o tipo. Como já foi dito, presume-se parte da conduta e o resultado, com base em regras de experiência, e regras de experiência não podem prevalecer ante a lesividade e a culpabilidade. A partir desse ponto, já é esperada a afirmação que não deveria existir os crimes de perigo abstrato, mas somente os crimes de perigo concreto (que pode ser provado o perigo), e em casos que não se possa provar o perigo de uma conduta, mas que mereça a intervenção estatal, aplicar-se-ia sanções de Direito Administrativo e de Direito Civil, que seriam muita mais adequado e eficaz. Ainda é preponderante na jurisprudência, apesar de tudo que aqui foi exposto, entendimento sobre a legalidade dos crimes de perigo abstrato. Mas já existem posicionamentos de tribunais, tendo até posicionamento do STF, que vem contrariando essa tradição equivocada de admitir os crimes de perigo presumido. Exemplo de posicionamento do STF: [..] foi com relação ao caso de comerciantes flagrados com produtos fabricado para o consumo, em seus depósitos, em desacordo com as normas regulamentares e sem registro no Ministério da Saúde, o STF decidiu contrariamente à decisão do tribunal de origem da ação, decidindo que não se podia presumir o risco causado, e sim provar que o risco realmente ocorreu, para se caracterizar o crime. 4 CONCLUSÃO Cabe concluir que a pressão feita pela sociedade de risco sobre o Direito penal, ocasionando uma grande inflação legislativa, transformando-o em um Direito cada vez mais punitivo preventivo e hipertrofiado. Os crimes de perigo abstrato é resultado dessa inflação legislativa, são tipos que vão de encontro com princípios constitucionais penais, e por isso são inconstitucionais. Não se pode permitir que o delírio e a tentativa cega, da sociedade e do legislador ordinário, de diminuir a incidência de riscos, atropelem garantias e direitos fundamentais da nossa sociedade. A expansão do Direito Penal e a consequente ampliação dos tipos penais e da criminalização, não vai resolver os muitos problemas da nossa sociedade, e pode até gerar novos problemas. REFERÊNCIAS BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Os crimes de perigo abstrato e o Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://ojs.idp.edu.br/index.php/observatorio/index>. Acesso em: 08.11.09. FRANCO, Alberto Silva. Código Penal e sua interpretação. São Paulo: RT, 2007. GOMES, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal. São Paulo: RT, 2002. GRECO, Rogério. Curso de direito penal. vol. II. Rio de Janeiro: Impetus, 2006 JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. vol. 1. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 1998. MEDEIROS, Carlos Henrique Pereira de. Os "riscos" como paradigma do Direito Penal moderno. Disponível em: , acesso em: 06.11.09. NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003. ROMERO, Diego. Reflexões sobre os crimes de perigo abstrato. Disponível em: , acesso em: 05.11.09.