CRIMES DE PERIGO ABSTRATO: UMA ANÁLISE DE SUA LEGALIDADE[1] 

Ana Carolina Trindade Medeiros Costa[2]

Caroline Duailibe dos Santos[3] 

Sumário: Introdução; 1 Os crimes de perigo abstrato; 1.1 Crimes de perigo abstrato: dolo e culpa;  1.2 Os crimes de perigo abstrato e os princípios constitucionais; 2 O crime de embriaguez; 2.1 Modificações na redação do art. 306 do CTB; 2.2 O crime de embriaguez e os princípios constitucionais; 3 Conclusão, Referências.

PALAVRAS-CHAVE: Crime de perigo abstrato. Crime de perigo concreto. Crime de dano. Crimes de trânsito. Embriaguez.

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo fazer uma abordagem do crime de embriaguez, previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, no que concerne à sua mudança de classificação de perigo concreto para abstrato, por meio de uma análise da legalidade ou não dos crimes de perigo abstrato, e das conseqüências dessa nova classificação à sociedade, como forma de melhor explicar as divergências em relação a tal artigo.

Introdução

Dentre as múltiplas classificações dos crimes contidos no Código Penal temos a de crime de perigo e crime de dano. Os crimes de dano são aqueles que se consumam quando há uma efetiva lesão ao bem jurídico protegido ou ao objeto material; portanto, estes têm um resultado, ocorre uma alteração do estado natural das coisas. Enquanto que, para a consumação dos crimes de perigo, faz-se necessária apenas a possibilidade do dano, por meio da exposição do bem a este tipo de perigo. Os crimes de perigo, ainda, subdividem-se em concretos e abstratos.

Os crimes de perigo concreto são compreendidos como aqueles que necessitam de investigação e comprovação, por meio de perícia; dessa forma, exige-se a existência de uma situação de efetivo perigo ao bem jurídico protegido. Ao contrário destes, temos os crimes de perigo abstrato, tema central deste trabalho, compreendidos como aqueles que resultam de uma ação ou omissão do sujeito, de um comportamento positivo ou negativo deste; e por isso, não necessita de comprovação, nem perícia, portanto.

1 Os crimes de perigo abstrato

Como forma de evitar que danos graves ou ameaças a bens juridicamente protegidos pela nossa Carta Magna ocorram em nossa sociedade, em respeito ao princípio da precaução, ficam previstos os crimes de perigo abstrato. Acreditam os doutrinadores que “punindo-se um comportamento entendido como perigoso, procura-se evitar a ocorrência do dano.” [4]

1.1 Crimes de perigo abstrato: dolo e culpa

Conforme tal entendimento, pune-se o autor pela mera desobediência dos ditames legais, estando ausente qualquer lesão efetiva ou ameaça de lesão ao bem jurídico tutelado, não se levando em consideração a vontade livre e consciente de agir que consiste no dolo.

Fica determinado, pelo art. 18, parágrafo único do Código Penal, que “salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.” Dessa maneira, 

“A doutrina afirma, majoritariamente, que nessas infrações de perigo, o agente deverá agir com dolo, pois não existe a ressalva exigida ao reconhecimento do comportamento culposo, conforme parágrafo único do art. 18 do Código Penal. [...] Na verdade, em muitas situações, aquilo que identificamos como um dolo de perigo acaba se confundindo com a inobservância do dever objetivo de cuidado, característica dos crimes culposos.” [5]

Portanto, a previsão de crimes de perigo abstrato não estaria em concordância com o artigo acima citado, visto que desconsideraria o que foi por ele determinado. Quanto à culpa caracterizada pela negligência, imprudência ou imperícia, esta não pode ser atribuída a estes crimes, uma vez que há a consciência quanto à prática do ato, como nos crimes de trânsito, em que o autor tem a consciência de que ingerindo o álcool ou a substância de efeitos análogos tem grandes chances de causar acidentes, muitos deles, fatais.

1.2 Os crimes de perigo abstrato e os princípios constitucionais

Como dito anteriormente, os crimes de perigo abstrato não necessitam de uma real lesão ao bem jurídico, não havendo, portanto, uma mudança do estado natural das coisas, uma vez que o resultado é o próprio perigo. Segundo Damásio, “o perigo é presumido. Decorre da simples inércia do sujeito.” [6] Dessa maneira, questiona-se a legalidade desses crimes, visto que, a sua existência pode ferir não só ao artigo do Código Penal citado no tópico anterior, mas também, a princípios constitucionais, conforme o que tem sido defendido por parte da doutrina e da jurisprudência.

Dentre tais princípios está o Princípio da Legalidade, previsto no art. 5o, inciso XXXIX da nossa Carta Magna e no art. 1o do Código Penal. Este vem nos assegurar que não seja possível a existência de crime ou de pena, sem existir uma previsão legal anterior a ele, almejando assim, a ausência de arbitrariedade em relação ao poder punitivo do Estado. Porém, os crimes de perigo abstrato não trazem uma descrição completa quanto à conduta a ser punida, valendo-se de expressões que não têm a necessária exatidão para o não prejuízo dos cidadãos regidos pelo ordenamento jurídico brasileiro, permitindo certa discricionariedade por parte dos juristas.

Ter-se-ia também, lesão ao Princípio da Presunção de Inocência, constante na nossa Constituição Federal, em seu art. 5°, inciso LVII. Com base neste, é necessária a comprovação da culpa do indivíduo no delito, pelo fato deste ser presumidamente inocente, até que se prove a sua responsabilidade danosa. Como nos casos dos crimes de perigo abstrato, não ocorre o dano, não se tem como provar a responsabilidade danosa do autor no crime, pois, de acordo com o que é estabelecido por esse tipo de classificação criminal, pune-se apenas, a possibilidade de dano ou a quebra à letra da lei.

Também seria ferido o Princípio da Culpabilidade, base da imputação penal, através do qual, não ocorre crime na ausência de culpabilidade; assim, afasta-se a responsabilidade objetiva. Dessa maneira, não basta que a conduta seja típica e antijurídica, esta deve ser, necessariamente, culpável. Porém, de acordo com os crimes de perigo abstrato, presume-se a culpa do agente, visto que basta que ele cometa a conduta tipificada no artigo para que esta seja considerada culpável.

Ocorreria também, um rompimento com o Princípio da Lesividade, segundo o qual, só será punível a conduta que for efetivamente danosa a um bem jurídico tutelado, ou a que representar uma possibilidade de dano a esse bem.  

E, por fim, com este tipo de crime, o Princípio da Ofensividade também seria ferido, pois este nos deixa claro que ninguém deve ser penalizado sem a efetiva lesão a um bem jurídico protegido penalmente. Dessa maneira, busca-se evitar uma discricionariedade quanto ao que deve ser realmente punido, tentando afastar juízos de valor.

2 Crime de embriaguez

Compreendendo que os crimes de trânsito trazem consigo grandes polêmicas quanto à sua classificação e, por isso, a possibilidade de rompimento com princípios constitucionais, pode-se perceber que ao longo dos anos, ocorreram significativas mudanças em relação aos entendimentos acerca deste tema.

2.1 Modificações na redação do art. 306 do CTB

Foi com a Lei nº 11.705/08 que se trouxe algumas modificações quanto aos artigos que tratam dos crimes de trânsito, previstos no Código de Trânsito Brasileiro. Mesmo agora, após suas novas redações, tais artigos continuam a provocar discussões concernentes a suas classificações, divergindo os autores sobre o fato destes artigos se tratarem de crimes de perigo concreto ou abstrato.

Dentre os artigos que tipificam os crimes de trânsito, situa-se o tema central deste trabalho: o artigo 306 do CTB, que prevê o crime de embriaguez. Sua redação anterior a introdução da Lei nº 11.705/08 em nosso ordenamento, determinava ser crime: “conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”.

Embora as divergências doutrinárias já se fizessem presentes, esse artigo era majoritariamente entendido como um crime de perigo concreto, uma vez que, para o crime se consumar, era necessário expor a dano potencial a incolumidade de outrem, ou seja, era necessário haver uma comprovação de perigo real em cada caso submetido à análise. O fato de alguém apenas dirigir embriagado não era suficiente para se comprovar o perigo. [7]

Visto isso, compreende-se que a antiga redação do artigo 306 do CTB tratava-se de crime de perigo concreto para o bem jurídico protegido: a segurança viária. Tal bem jurídico encontra-se resguardado pelo artigo 1º, § 2º do CTB, que determina: “o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito”.

Neste sentido, para enquadrar-se o tipo analisado, seria necessário a ocorrência de uma diminuição no nível de segurança viária, proveniente de uma conduta faticamente demonstrável, por parte do sujeito que estava dirigindo um veículo automotor, sob influencia de álcool ou substancia de efeito análogo, de forma efetivamente perigosa (como dirigir na contramão, ou dirigir descontroladamente, por exemplo). Dessa maneira, não importava a quantidade de álcool ingerido ou substância de efeitos análogos, mas sim, o real comportamento do condutor.

No entanto, após a Lei nº 11.705/08, o artigo 306 do CTB sofreu alterações, e, em sua nova redação, tal artigo considera como conduta punível, “conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”, sendo classificado majoritariamente como crime de perigo abstrato.

A justificativa para essa nova classificação advém do entendimento doutrinário, a partir do qual se compreende não ser necessária uma demonstração de que o comportamento do motorista em via pública expôs a perigo de maneira efetiva a segurança de outrem. Por isso, independentemente do comportamento do indivíduo no trânsito, o crime se consuma com a concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool, ou qualquer outra substância psicoativa no sangue.

            Assim, o legislador considera que conduzir veículos nessa situação é presumidamente perigoso, pelos milhares de acidentes ocorridos no trânsito que causaram grandes prejuízos à saúde, à integridade física e à própria vida, devido à embriaguez ou ao uso de substâncias de efeitos análogos. No entanto, não foram consideradas as condições em que o motorista se encontrava para que assim, causasse o acidente.

Portanto, presume-se que o motorista tem consciência de que fazendo o uso destas substâncias a uma concentração determinada, coloca em risco a vida das outras pessoas, devendo por isto ser punido. É como se o motorista desejasse produzir o resultado, ou pelo menos, soubesse da possibilidade de produção deste resultado, mas não importasse. O dolo...

2.1 Crime de embriaguez e os princípios constitucionais

O que se pode perceber é que o fato de se considerar este crime previsto pelo artigo 306 do CTB, como crime de perigo abstrato, acaba por ferir aos princípios constitucionais citados no tópico anterior. Fere-se ao princípio da Presunção de Inocência, por não haver necessidade de comprovação da culpa do indivíduo no delito. Sem se ter como demonstrar sua responsabilidade danosa, não se tem como penalizar alguém sem a efetiva lesão a um bem jurídico protegido, ferindo-se também, aos Princípios da Lesividade e Ofensividade.

Percebe-se também, rompimento com o Princípio da Culpabilidade, visto que basta que o motorista conduza o veículo com a concentração acima de seis decigramas de álcool ou outra substância análoga, para que sua conduta possa ser culpável, presumindo-se assim, a culpa do agente. Além de rompimento com o princípio da proporcionalidade, que estabelece que a proporcionalidade da pena em relação à gravidade do delito.

Por fim, rompe-se com o Princípio da Legalidade, uma vez que se pune a possibilidade de dano causada por essas substâncias nessa concentração, não havendo uma crítica quanto ao real perigo que pode ter sido causado se considerarmos a situação em que o motorista se encontrava. Pode-se observar isto, por exemplo, se considerarmos que duas trufas de licor fazem com que a pessoa tenha essa concentração de álcool no sangue, o que não quer dizer que ela não esteja apta a dirigir de forma segura. Portanto, apesar de ser previsto de forma taxativa, tal dispositivo permite uma discricionariedade por parte dos juristas e pode causar severas injustiças aos cidadãos.  

 

Conclusão

Diante do exposto, compreende-se o fato de que a adoção da hipótese de perigo abstrato em relação ao crime de embriaguez, previsto no artigo 306 do CTB, pode gerar grandes injustiças, uma vez que faz generalizações de que o condutor com certa quantidade de álcool ou substância de efeitos similares põe em perigo a população, sem levar em conta o modo que essas substâncias afetaram o motorista do veículo, no caso concreto.

O legislador agiu arbitrariamente ao modificar o artigo aqui analisado, no momento em que penalizou condutas que não necessariamente são lesivas, ou criam perigo a bens jurídicos. Desta maneira, percebe-se a involução da legislação, que, ao deixar a hipótese perigo concreto para trás e adotar o perigo abstrato, acaba por ferir vários princípios constitucionais, como o da lesividade.

 

REFERÊNCIAS

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 1: parte geral. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Álcool e volante. Até que ponto será preciso provar o que é notório?. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/13666/13230>Acesso em: 10.nov.2009.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral, volume I. 6. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2006.

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte geral. 25°. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

 
 


[1] Paper elaborado à disciplina de Direito Penal Especial II, ministrada pela Professora Maria do Socorro Almeida de Carvalho, para obtenção da segunda nota.

[2] Aluna do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[3] Aluna do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[4] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral, volume I. 6. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2006. Pág. 194.

[5] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral, volume I. 6. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2006. Pág. 195.

[6] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: parte geral. 25°. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. Pág. 189.

[7]CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Álcool e volante. Até que ponto será preciso provar o que é notório?. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/13666/13230>Acesso em: 10.nov.2009.