CRIMES CONTRA A ORDEM ECONÔMICA E CRIAÇÃO DO SISTEMA DE ESTOQUES DE COMBUSTÍVEIS (LEI Nº 8.176/91): EXTRAÇÃO DE RECURSOS MINERAIS[1]

 

Frederico Nepomuceno Léda[2]

 Laura Rita Sousa Cardoso[3]

Maria do Socorro Almeida de Carvalho[4]

Sumário: Introdução; 1. Breve análise acerca da ordem econômica brasileira; 2. Crimes contra a Ordem Econômica; 2.1. Sistema de Estoques de Combustíveis 3. Crime de Usurpação contra a Ordem Econômica; 4. Crime de Extração de Recursos Minerais; 5. Crimes de Usurpação e Extração de Recursos Minerais: trata-se de conflito aparente de normas ou concurso formal de crimes?; Consideração Finais; Referências

RESUMO

O presente trabalho visa conceituar e analisar os Crimes Contra a Ordem Econômica e Criação do Sistema de Estoques de Combustíveis (Lei nº 8.176/91). Em tem como principal objetivo resolver o conflito existente entre os crimes de usurpação previsto no art. 2º da Lei nº 8.176/91 e o crime de extração de recursos minerais, art. 55º da Lei nº 9.605/98, a fim de saber se trata de um conflito aparente de normas ou concurso formal de crimes.

PALAVRAS-CHAVE: Ordem Econômica Brasileira; Sistema de Estoques de Combustíveis; Crimes; Usurpação; Extração de Recursos Minerais; Conflito Aparente de Normas; Concurso Formal de Crimes.

INTRODUÇÃO

O Brasil é um país capitalista onde é possível encontrar grandes riquezas naturais. Ocorre que, o homem na busca do enriquecimento acaba por se valer demasiadamente da extração de tais riquezas, inobservando que tais recursos se mal utilizados, podem acarretar na sua escassez. A economia tem um papel importante no intuito de controlar a extração de matérias primas, uma vez que, cabe a ela administrar da melhor maneira para que assim sejam atingidas as necessidades da população. Desse modo, a criminalização de determinadas condutas tem um caráter importante de repressão, uma vez que busca diminuir as incidências.

O dano contra a ordem econômica importa em danos para a sociedade, que busca cada vez mais criar sistemas para frear os prejuízos causados pelos crimes. O Direito Penal Econômico e o Direito Ambiental estão cada vez mais juntos no intuito de viabilizar mecanismos com o objetivo de frear tais estragos na natureza, prevenindo-a.

  1. BREVE ANÁLISE ACERCA DA ORDEM ECONÔMICA BRASILEIRA

A ordem econômica brasileira possui um sistema econômico capitalista e tem base na Constituição Federal de 1988 que no seu art. 170 disciplina o assunto por meio de um conjunto de princípios. Tem como fundamento a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, com a finalidade de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, fazendo isso através da observância dos princípios elencados no artigo supracitado. Desse modo, cabe ao Estado a função de regular as atividades econômicas por meio de fiscalização.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

A carta Magna visa garantir a todos os indivíduos uma vida digna, onde o parágrafo único do artigo demonstra tanto uma valorização ao trabalho humano, como também o da livre iniciativa, onde o Estado deve intervir sempre que necessário.

Todo sistema econômico tem como princípio de coordenação o mercado. Através do mercado e com o uso do dinheiro, produtores competem entre si, e dessa forma o mercado aloca recursos e determina a distribuição de renda. No papel de alocador de recursos, o mercado é um mecanismo maravilhoso, embora cheio de falhas e depende da ação regulatória do Estado para poder ser efetivo (PEREIRA, 2005)

  1. CRIMES CONTRA A ORDEM ECONÔMICA

O Direito Penal está dividido em vários ramos, dentre eles tem-se o Direito Penal Econômico, que trata das sanções aplicadas às infrações contra a ordem econômica que atingem as relações econômicas do país. Os ilícitos que infringem a economia podem ser tanto reprimidos na esfera administrativa como na esfera penal.

A economia tem um papel social importante, é um campo frágil que visa atender as necessidades da população e enriquecer o país. São diversos os bens jurídicos tutelados pelo direito econômico, tais como: o comércio, a fé pública, patrimônio do Estado, etc.

Devido aos reflexos sociais que a economia traz ao Estado, e em decorrência dos ataques que sofre constantemente, entende-se a atenção dada a ela pelo Direito Penal. Desse modo, a criminalização de determinadas condutas tem um caráter importante de repressão, uma vez que busca diminuir as incidências.

Os crimes contra a ordem econômica estão presente na Lei n. 8.176/91 que diz:

Art. 1º Constitui crime contra a ordem econômica: I – adquirir, distribuir e revender derivados de petróleo, gás natural e suas frações recuperáveis, álcool etílico hidratado carburante e demais combustíveis líquidos carburantes, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei; II – usar gás liquefeito de petróleo em motores de qualquer espécie, saunas, caldeiras e aquecimento de piscinas, ou para fins automotivos, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei. Pena: detenção de um a cinco anos

Art. 2º Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo. Pena: detenção, de um a cinco anos e multa. § 1º Incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transportar, industrializar, tiver consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput deste artigo. § 2º No crime definido neste artigo, a pena de multa será fixada entre dez e trezentos e sessenta dias-multa, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e a prevenção do crime. § 3º O dia-multa será fixado pelo juiz em valor não inferior a quatorze nem superior a duzentos Bônus do Tesouro Nacional (BTN)

Dito isso, o art. 1º, tem como objeto jurídico a política econômica do Estado relativa à normalidade do abastecimento, de seus combustíveis derivados, de álcool destinado para fins carburantes e de outros combustíveis líquidos carburantes, além do Sistema Nacional de Estoque de Combustíveis. O sujeito ativo, na modalidade da conduta do inciso I, é o proprietário, diretor ou gerente de estabelecimento industrial ou comercial e na modalidade de conduta do inciso II, o sujeito ativo é qualquer pessoa. Já o sujeito passivo é a coletividade, e, secundariamente, a pessoa eventualmente prejudicada (ANDREUCCI, 2013).

As condutas no inciso I são adquirir (comprar, obter), distribuir (espalhar, dispor) e revender (tornar a vender) derivados de petróleo, gás natural e suas frações recuperáveis, álcool etílico, hidratado e demais combustíveis líquidos carburantes, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei. E no inciso II, a conduta incriminada é usar (utilizar, empregar) GLP em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei. É uma norma penal em branco, o tipo penal depende de complementação para caracterização. O objeto material no inciso I são os derivados de petróleo, o gás natural e suas frações recuperáveis, o álcool etílico hidratado carburante e demais combustíveis líquidos carburantes. Já no inciso II, é o gás liquefeito de petróleo – GLP. (ANDREUCCI, 2013).

O elemento subjetivo é o dolo, não se pune a modalidade culposa. A consumação ocorre com a efetiva aquisição, distribuição e revenda dos derivados de petróleo, gás natural e suas frações recuperáveis, álcool etílico, hidratado carburante e demais combustíveis líquidos carburantes, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei; ocorre também com a utilização de GLP em motores de qualquer espécie, saunas, caldeiras e aquecimento de piscinas, ou para fins automotivos, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei. Não se admite tentativa na modalidade usar, mas nos demais casos admite-se. É uma ação penal pública incondicionada. Sobre a competência a questão não é pacífica, pois o STF tem entendido que a competência é da Justiça Estadual, uma vez que não há lesão a interesse da União. (ANDREUCCI, 2013).

Já no art. 2º tem-se como objeto jurídico o patrimônio público. O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa e o sujeito passivo é o Estado e a coletividade. As condutas incriminadas são produzir (gerar, engendrar, fazer) bens e explorar (aproveitar, tirar lucro) matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo. No parágrafo 1º as condutas incriminadas são adquirir (conseguir, obter), transportar (levar de um local para o outro), industrializar (promover o desenvolvimento industrial), ter consigo (ter em poder, portar), consumir (gastar, usar) ou comercializar (comprar e vender, negociar) produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput do artigo. O objeto material são os bens e a matéria-prima pertencentes à União. (ANDREUCCI, 2013).

O elemento subjetivo é o dolo. A consumação ocorre com a efetiva produção de bens ou exploração de matéria-prima pertencentes à União sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo. Consuma-se, ainda, com a efetiva aquisição, transporte, industrialização, posse, consumo ou comercialização de produtos ou matéria-prima produzidos ou explorados sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo. Admite tentativa. Ação penal pública incondicionada. Competência da Justiça Federal, uma vez que há lesão ao patrimônio da União. (ANDREUCCI, 2013).

Dessa forma, ficam expostos todos os elementos do crime trabalhados nesse artigo, tendo o intuito de facilitar o entendimento nos futuros questionamentos que aqui serão trabalhados.

2.1. SISTEMA DE ESTOQUES DE COMBUSTÍVEIS

Ocorre que, devido à fragilidade do setor econômico é necessário a criação de mecanismo que visam suprir determinadas crises nesse campo.  O sistema nacional de estoques de combustíveis está previsto na legislação Dos Crimes Contra a Ordem Econômica, no seu art. 4º.

O Sistema Nacional de Estoques de Combustíveis foi criado pela Lei nº 8.176 de 1991 e foi regulamentada pelo Decreto 238/91 e tem o fim de garantir que o abastecimento de petróleo nacional de petróleo, como também de seus derivados aconteça na normalidade.

É um sistema destinado a garantir o suprimento de petróleo bruto e de álcool para fins carburantes quando  do surgimento de contingências que afetem de forma grave a oferta interna e externa desses produtos e estes destinados a garantir a normalidade do abastecimento interno de combustíveis derivados de petróleo, bem assim, de álcool etílico, anidro e hidratados e outros líquidos carburantes, em face de ocorrências que ocasionarem interrupções nos fluxos de suprimento e escoamento dos referidos combustíveis.(ARAÚJO, et al.)

  1. CRIME DE USURPAÇÃO CONTRA A ORDEM ECONÔMICA

De acordo com o Dicionário Aurélio usurpar consiste em “apoderar-se violentamente ou fraudulentamente do que pertence a outrem”, “chegar a possuir sem direito”, “obter por fraude, à viva força”, “gozar ou usufruir por usurpação”. A Lei n. 8.176/91, que define os crimes contra a ordem econômica e cria o Sistema de Estoques de Combustíveis, em seu artigo 2º, prevê: “Constitui crime contra o patrimônio, na modalidade usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencente à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo”. Tem como o foco tratar de crimes que atingem o patrimônio, ferindo a ordem econômica brasileira, na modalidade usurpação.

Logo, verifica-se que o bem jurídico aqui protegido é o patrimônio da União, composto, entre outras matérias-primas, pelos recursos minerais; e a lesão caracteriza-se pela usurpação desses objetos materiais (MOSCOGLIATO, 2001). Dessa forma, para que ocorra o crime de usurpação é necessário que incida a efetiva extração do mineral sem autorização legal.

Deve-se destacar também outro termo utilizado no dispositivo incriminador analisado, que é a matéria-prima, ou seja, é um produto no seu estado natural, estado bruto, que passará por um processo de produção. Ou seja, é através da matéria-prima que ocorre a fabricação dos mais variados bens.

A norma incriminadora do art 2º da Lei tem como foco o dano causado pela usurpação patrimonial, trata-se de um crime material, pois, para que ocorra o delito é necessário que se tenha uma efetiva extração dos recursos materiais, o crime se consuma com a produção do resultado. É também um crime de dano, pois também é necessário que ocorra uma efetiva lesão ao bem jurídico tutelado.

O art. 20, inciso IX, da Constituição Federal declara que os recursos minerais, inclusive os do subsolo, são bens de exclusiva propriedade da União, e pertence à ela a competência de regular a exploração desses bens, como está previsto no art. 22, XII da Carta Magna “Compete privativamente à União legislar sobre:  jazidas, minas, outros recursos minerais e metalurgia”.

Embora o art. 20 estabeleça que pertencem à União, o art. 176 estabelece que, “as jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra”.

O Departamento Nacional de Produção de Mineral é um órgão pertencente ao Governo incumbido de conduzir e fiscalizar em todo território nacional o exercício das atividades de mineração. Desse modo, é necessário que aqueles que desejam exercer uma atividade minerária tenham licenciamento e uma permissão para garimpar, pois o art. 2º é claro ao dispor que serão punidos aqueles que extraírem recursos minerais “sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo”.

  1. CRIME DE EXTRAÇÃO DE RECURSOS MINERAIS

O Direito Penal Brasileiro possui princípios que regem o Estado democrático de Direito e normas penais que são criadas visando a proteção de determinado bem jurídico. No caso da Lei nº 9.605/98, os tipos penais nela contidos objetivam a proteção do meio ambiente como condição de existência do ser humano, ou seja, bem jurídico supra-individual, art. 225, CF.

De acordo com Prado (2007, p.17), a tutela do meio ambiente por meio da norma penal contida no artigo 55 justifica-se “à medida que a extração mineral, além da diminuição ou do esgotamento de recursos minerais (como dano ambiental e não patrimonial), pode implicar extinção de espécies da fauna e da flora, interações de reprodução biológica, emissão de gases, modificação da qualidade das águas, enfim, modificação do ecossistema.” Logo, a gravidade penal para exploração mineral sem autorização ambiental está tipificada nesse art. 55 da Lei 9.605/98.

A Lei 9.605/98 trata “sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências”. E o art. 55 Estabelece que seja crime a pratica de “executar pesquisa, lavra ou extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão, concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida”. Como já dito, trata-se de um crime ambientais, que visa tutelar o meio ambiente, estando inserido na Seção III que dispõe sobre a poluição e outros Crimes Ambientais.

Visa-se punir, aqueles que executam a extração de recursos minerais sem a prévia autorização do Órgão competente ou aos que contrariam o que está previamente autorizado. O parágrafo único do artigo mencionado destaca que também será responsabilizado aquele que embora com autorização competente para extrair os recursos minerais, deixar de recuperar a área utilizada para a exploração.

O Crime de Extração de Recursos Minerais é um crime comum, que pode ser realizado por qualquer pessoa, física ou jurídica, e tem como núcleo do tipo penal o executar, sendo uma conduta comissiva de dolo e o sujeito passivo é a sociedade. Trata-se de uma lei penal em branco, uma vez que, faz referência a outras legislações que não são penais. O objeto jurídico tutelado no tipo penal é o Meio Ambiente, e é um crime de perigo abstrato, pois, se consuma ao botar em risco o Meio Ambiente através da pesquisa, lavra ou a extração sem autorização ou em desacordo com a obtida.

  1. CRIMES DE USURPAÇÃO E EXTRAÇÃO DE RECURSOS MINERAIS: TRATA-SE DE CONFLITO APARENTE DE NORMAS OU CONCURSO FORMAL DE CRIMES?

O crime de usurpação está previsto no art. 2º da Lei n. 8.176/91 e trata sobre a produção de bens ou exploração de matéria prima que pertencem à União sem breve autorização, é, portanto, um crime que visa proteger o patrimônio da União, já o crime de extração de recursos minerais previsto no art. 55º da Lei n. 9.605/98 trata de crimes ambientais, ocasionando assim, uma confusão na identificação dos crimes. Esclarecido cada crime nos pontos supracitados, cabe agora questionar se trata de conflito aparente de normas ou de concurso formal de crimes.

O conflito aparente de normas verifica-se quando duas ou mais normas aparentemente são aplicáveis a um mesmo fato, havendo, entretanto, incidência de apenas uma delas, por constituir a mais apropriada à solução do caso, seja porque é específica, principal ou mais abrangente (consuntiva). O conflito resolve-se, então, por meio da interpretação das normas, aplicando-se, respectivamente, o princípio da especialidade, subsidiariedade ou consunção. Tem como pressupostos a unidade do fato, isto é, uma única conduta que provoca uma única lesão ao bem jurídico, e a pluralidade de normas. Já o concurso formal de crimes, se caracteriza quando a pessoa mediante uma só conduta, causa dois ou mais resultados, isto é, comete dois ou mais crimes. Nesse caso há uma pluralidade de fatos, regidos por normas jurídicas distintas (PRADO, 2007).

Assim, havendo uma única conduta, a exemplo extração de recursos minerais, que cause lesão ao meio ambiente, bem comum do povo, e ao patrimônio da União, direito de propriedade do estado, sem as necessárias autorizações dos órgãos competentes ou em desacordo com estas, não há que se falar em unidade de fato, ao contrário, resta caracterizado o concurso formal de crimes. A respeito do tema já se manifestaram o Superior Tribunal de Justiça alguns dos Tribunais Regionais, cujas posições serão expostas a seguir. (PRADO, 2007).

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça manifestou-se, em três oportunidades, contrariamente à tese de conflito (aparente) entre o artigo 55 da Lei n. 9.605/98 e o artigo2º da Lei n. 8.176/91, asseverando, por unanimidade, a existência de concurso formal de crimes, com base no argumento de que as referidas leis cuidam de bens jurídicos distintos, conforme se verifica nas Ementas a seguir transcritas:

CRIMINAL. RHC. CRIME CONTRA A ORDEM ECONÔMICA E CONTRA O MEIO AMBIENTE. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. PRETENSÃO DE DESCLASSIFICAÇÃO DA CONDUTA. AUTORIA E MATERIALIDADE DEMONSTRADAS, EM TESE. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA NÃO-EVIDENCIADA DE PLANO. IMPROPRIEDADE DO WRIT.RECURSO DESPROVIDO.

  1. Denúncia imputando ao paciente a possível prática de delitos contra a ordem econômica e contra o meio ambiente, em razão da extração de areia em cava submersa, sem autorização do Órgão competente, que teria provocado lesão ao patrimônio da União e danos ao meio ambiente.
  2. Comprovada, a princípio, a prática de dois tipos penais – um cuja tutela recai sobre a ordem econômica e o sistema de estoque de combustíveis e, outro, que disciplina as sanções penais e administrativas a serem aplicadas em caso de condutas lesivas ao meio ambiente – não se justifica o trancamento da ação penal.

III. [...]

  1. [...]
  2. Recurso desprovido.

(STJ, 5ª Turma, RHC 14.783-SP (2003/0133289-0), Rel. Min. Gilson Dipp, j. 18.09.2003, DJU 28.10.2003)

Em outro caso de lavra e extração de areia, o Superior Tribunal de Justiça, também por unanimidade, ao decidir pela cassação do Acórdão recorrido que reconhecia o conflito aparente de normas, declarou a existência, em tese, de concurso formal de crimes:

CRIMINAL. HABEAS CORPUS. EXTRAÇÃO DE AREIA SEM AUTORIZAÇÃO DO ÓRGÃO COMPETENTE COM FINALIDADE MERCANTIL. USURPAÇÃO X EXTRAÇÃO. CONFLITO APARENTE DE NORMAS. INOCORRÊNCIA. DIVERSIDADE DE OBJETOSJURÍDICOS. CONCURSO FORMAL CONFIGURADO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

I - O art. 2º da Lei 8.176/91 descreve o crime de usurpação, como modalidade de delito contra o patrimônio público, consistente em produzir bens ou explorar matéria-prima pertencente à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo. Já o art. 55 da Lei 9.605/98 descreve delito contra o meio-ambiente, consubstanciado na extração de recursos minerais sem a competente autorização, permissão concessão ou licença, ou em desacordo com a obtida.

II - Se as normas tutelam objetos jurídicos diversos, não há que se falar em conflito aparente de normas, mas de concurso formal, caso em que o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes.

III - Recurso conhecido e provido para cassar o acórdão recorrido, dando-se prosseguimento à ação penal.

(STJ, 5ª Turma, RESP 547.047-SP (2003/0099603-0), Rel. Min. Gilson Dipp, j. 07.10.2003, DJU 03.11.2003).

No Voto do Acórdão acima referido há declaração de que o artigo 2º da Lei n. 8.176/91 e o artigo 55 da Lei n. 9.605/98 tutelam respectivamente, o patrimônio público (usurpação) e o meio ambiente (extração). Aduz que não há que se falar em conflito aparente de normas, mas sim em concurso formal, pois um comportamento acarretou vários resultados, ofendendo objeto jurídicos diversos. A conduta de extrair areia, sem autorização ou licença, com finalidade mercantil, demonstra a ofensa a objetos jurídicos distintos, um de ordem patrimonial e, outro, ambiental. Isso porque, os recursos minerais, inclusive os do subsolo, pertencem à União, conforme os art. 20, inciso IX, e o art. 176 da Constituição Federal, sendo que para a utilização destes é necessária autorização do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). (STJ, 5ª Turma, RESP 547.047-SP (2003/0099603-0), Rel. Min. Gilson Dipp, j. 07.10.2003, DJU 03.11.2003).

Assim, os recorridos ao extraírem e lavrarem areia, elemento conceituado como substância mineral, sem prévia autorização do órgão competente, praticaram um, delito patrimonial, de acordo com a determinação do art. 2º da Lei n.º 8.176/91, já que a areia é de propriedade da União (PRADO, 2007).

Verifica-se, também, que os recorridos não possuíam licença ambiental para extrair o recurso mineral, portanto, além do delito patrimonial demonstrado acima, restou configurado o delito ambiental, uma vez que houve dano ao meio ambiente, incidindo, desta forma, o artigo 55 da Lei n.º 9.605/98 (Lei Ambiental), verbis:

[...] Assim, o Ministério Público não se equivocou ao denunciar os recorridos como incursos no art. 55 da Lei n.º 9.605/98 e no art. 2º da Lei n.º 8.176/91, em concurso formal e de forma continuada, pois estes ao extraírem e lavrarem areia, sem prévia autorização e licença ambiental, violaram diferentes objetos jurídicos, quais sejam: patrimônio da União (delito patrimonial) e o meio ambiente (delito ambiental).

Como se vê, o artigo 55 da Lei n.º 9.605/98 não pode ser considerado especialização do artigo 2º da Lei n.º 8.176/91 como pretende o v. acórdão, pois cada um busca tutelar bens diversos: o primeiro artigo tem como objetivo proteger o meio ambiente, ao passo que o segundo refere-se à proteção do patrimônio da União. (PRADO, 2007, p.21)

Posição também mantida em decisões mais recentes: REsp 815071-BA (2006/0017018-7), Rel.Min. Gilson Dipp, julgamento 23.05.2006, DJU 19.06.2006; REsp 646869-SP (2004/0036068-0), Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 18.11.2004, DJU 13.12.2004; HC 36624-SP (2004/0095256-2), Rel. Min. Felix Fischer, j. 02.09.2004, DJU 04.10.2004; HC 30852-SP (2003/0176904-8).

No âmbito dos Tribunais Regionais Federais, a Segunda Seção e a Quarta Turma do TRF da 1ª Região, a Segunda Turma do TRF da 3ª Região, bem como as Sétima e Oitava Turmas do TRF da 4ª Região corroboram a tese do concurso formal de crimes. Entretanto, a Segunda Seção, bem como a Terceira Turma do TRF da 1ª Região, a Quinta Turma do TRF da 3ª Região e a Segunda Turma do TRF da 4ª Região sustentam a existência de um conflito aparente de normas, que seve ser resolvido com a aplicação do princípio da especialidade (PRADO, 2007).

A Segunda Turma do TRF da 4ª Região declarou, por unanimidade, que a Lei n. 9.605/98 prevalece sobre a Lei n. 8.176/91, como segue:

PENAL. EXTRAÇÃO DESAUTORIZADA DE MINERAIS. NOVATIO LEGIS IN MELLIUS. READEQUAÇÃO DA PENA. EXTINÇÃO DAPUNIBILIDADE. CRIME DE PERIGO. PROVA.

  1. - O crime previsto no art. 2º da Lei nº 8176/91 foi derrogado pelo artigo55 da Lei nº 9605/98, que retroage, por ser mais benéfica aos apelantes. O abrandamento da pena impõe readequação da dosimetria.
  2. - Extinção da punibilidade que se reconhece de ofício, em face do transcurso de mais de dois anos entre a data da publicação da sentença e a do julgamento do recurso, tomando-se por base a pena recalculada.

3.- [...]

4.- [...]

5.- Dar parcial provimento ao recurso dos apelantes para readequar a pena, reconhecendo de ofício a extinção da punibilidade, bem como para absolvê-los da imputação do crime previsto no art. 15 da Lei nº 6938/81, em face da insuficiência de provas. (ACR 5015, Processo 1999.04.01.08697-9 RS, Rel. Juiz João Pedro Gebran Neto, j. 20.11.2000, DJ 17.01.2001)

 A Sétima Turma também se pronunciou, por unanimidade pela inexistência de um conflito aparente de normas.

“HABEAS CORPUS”. EXTRAÇÃO DE AREIA DE RIO. DENÚNCIA IMPUTANDO OS CRIMES PREVISTOS NO ART. 2º DA LEI 8176/91 E NO ART. 55 DA LEI 9605/98. CONCURSO APARENTE DE LEIS. INEXISTÊNCIA. CONCURSO FORMAL.

  1. A paciente foi denunciada pelos crimes previstos no art. 2º da Lei 8176/91 e no art. 55 da Lei 9605/98 por determinar a extração de areia do rio Itajaí-Açu, entendendo que haveria concurso aparente de leis penais, devendo prevalecer o art. 55 da Lei 9605/98 que teria revogado o art. 2º da Lei 8176/91.
  2. No caso em exame, pune-se pela usurpação com lesão à ordem econômica, porque se retira a areia e, ao mesmo tempo, pune-se pela simples extração da areia em defesa do meio ambiente. À conduta de extrair a areia (art. 55 da Lei 9605/98) soma-se a de usurpar o patrimônio público (art. 2º da Lei 8176/91), não havendo identidade de preceitos e, portanto, nenhum motivo para cogitar-se de revogação de uma regra por outra.
  3. Inexistência de concurso aparente de leis. O concurso é formal, pois com um comportamento lesou-se o patrimônio e o meio ambiente, não havendo de operar-se a desclassificação pretendida.
  4. Ordem denegada. (HC 2001.04.01.05768-5 SC, Rel. Juiz Fábio Rosa, DJ 12.09.2001)

O Acórdão esclarece o afastamento da ocorrência de conflito aparente de normas com base, principalmente, no argumento de que o fato envolve a ofensa a dois bens jurídicos distintos (meio ambiente e patrimônio). No voto diz se tratar de um concurso aparente de leis, pois se caracteriza por um concurso de dispositivos legais sobre um único fato. A diferença fundamental entre o concurso aparente de leis e o concurso formal de crimes (uma ação de que decorrem vários resultados) é a unidade do bem jurídico violado. No caso em questão, pune-se pela usurpação com lesão à ordem econômica, porque se retira a areia e, ao mesmo tempo, pune-se pela simples extração da areia em defesa do meio ambiente. À conduta de extrair areia (art. 55 da Lei n. 9.605/98) soma-se a de usurpar o patrimônio público (art. 2º da Lei n. 8.176/91). Dessa forma, não há identidade de preceitos e, portanto, nenhum motivo para cogitar-se de revogação de uma regra por outra, sendo concurso formal. Pois com um comportamento lesou-se o patrimônio e o meio ambiente. (HC 2001.04.01.05768-5 SC, Rel. Juiz Fábio Rosa, DJ 12.09.2001)

Sendo assim, não há que se confundir o patrimônio com o meio ambiente, são bens distintos, que justificam a coexistência de dispositivos penais contidos em leis criadas especificamente para proteção de cada um deles em separado. Sobre o assunto Alessandra Prado (2007, p.32) discorre, “a extração de recursos minerais pode resultar, se praticada sem autorização ou em desacordo com os atos administrativos emanados dos órgãos competentes, na configuração de dois crimes em concurso formal – extração mineral, tipificado na lei n. 9.605/98 (art. 55), e usurpação”, previsto na Lei n. 8.176/91 (art. 2º) – embora possam coincidir os objetos materiais que representam os diversos bens. Com isso, verifica-se a posição que prevalece nos Tribunais, inclusive no Superior Tribunal de Justiça, é aquela que reconhece a existência de concurso formal de crimeCONSIDERAÇÕES FINAIS

O Brasil possui um sistema econômico capitalista disciplinado por vários princípios constitucionais, onde está incumbido ao Estado a função de regular e fiscalizar as atividades econômicas.

 A criação da Lei nº 8.176/91 que veio a disciplinar os Crimes Contra a Ordem Econômica foi de suma importância, diante do caráter social da economia e das incidências de ilícitos voltados contra regularidade econômica brasileira. Como cada vez mais se busca o crescimento econômico juntamente com a sustentabilidade, foi criado também uma lei que visa dar proteção ao Meio Ambiente, disciplinando condutas através da Lei nº 9.605/98.

Diante da polêmica envolvendo os artigos 2º e 55º das referidas leis a respeito da exploração dos recursos minerais e destacado o conflito existente, é possível observar o entendimento jurisprudencial acerca do tema quanto ao não conflito aparente de normas, uma vez que ambas as leis tutelam bens jurídicos diferentes.

 

REFERÊNCIAS

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ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Legislação Penal Especial. 9ª ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013.

ARAÚJO, Maria Medeiros. GALVÃO, Kátia Cheim Pereira. SIQUEIRA NETO, Otalício dos Santos. Da política Energética Brasileira: uma análise acerca de seus princípios e objetivos.  3º Congresso Brasileiro de P&D em Petróleo e Gás

BRASIL, Lei 8.176, de 8 de fevereiro de 1991. Define crimes contra a ordem econômica e cria o Sistema de Estoques de Combustíveis. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 13 fev. 1991.

GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projeto de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2010.

MOSCOGLIATO, Marcelo. Os recursos minerais e a lei 8.176/1991. Artigo publicado na Revista da Faculdade de Direito de Taubaté, n. 05, de 2001. Disponível em:<http://moscogliato.com.br/portugues/artigos/Recursos%20Minerais%20e%20a%20Lei%208176.pdf>. Acesso em: 26 de agosto de 2014.

PEREIRA,LUIS CARLOS BRESSER .O Sistema Econômico Brasileiro. Disponível em: < http://www.bresserpereira.org.br/Works/SmallPapers/5.SistemaEconomicoBrasileiro-ConjEc.p.pdf> acesso em: 27 out 2014.

PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Extração de recursos minerais e crime de usurpação: uma análise da jurisprudência brasileira. Revista Jurídica da Faculdade 2 de Julho. Ano 1, nº1. Salvador: Faculdade 2 Julho, 2007. Disponível em:<http://f2j.edu.br/site/wp-content/uploads/2014/07/revista_juridica_I.pdf>. Acesso em: 26 de agosto de 2014.

SIQUEIRA, Flávio Augusto Maretti. Direito Penal Econômico: Notas introdutórias de sua eficácia e delimitação de atuação na dogmática penal. 2005.

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[1] Paper apresentado à disciplina de Direito Penal Especial III, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB

[2] Aluno do 6º período, do curso de Direito, da UNDB. E-mail: [email protected]

[3] Aluna do 6º período, do curso de Direito, da UNDB. E-mail: [email protected]

[4] Professora, orientadora