CRIME POR OMISSÃO: ANÁLISE geral DO ART.135-A INTRODUZIDO pela LEI 12.653/12 NO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO.[1]

 

Clara Oliveira Almeida Castro e Maria Eduarda Costa Carneiro[2]

Cleopas Isaías Santos[3]

 

SUMÁRIO: Introdução; 1 Análise do crime previsto no artigo 135-A do CP; 1.1 Sujeitos e tipos objetivo e subjetivo do crime; 1.2 Consumação, tentativa e exaurimento; 2 Bens protegidos em face da exigência financeira; 3 Natureza do tipo penal; 3.1 Crimes de perigo abstrato e concreto; 3.2 Crimes omissivos próprios e impróprios; 4 Outros ramos que punem tal conduta; Conclusão; Referências

 

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo suscitar uma discussão acerca da Lei 12.653/12 e sua repercussão sob a ótica do Código Penal Brasileiro, visto que acrescentou o crime previsto no art.135-A. Diante disso, este paper abordará em específico a exigência de cheque-caução ou qualquer garantia como condição para o atendimento de emergência hospitalar, tipificado como crime por omissão, por meio de reflexões teóricas acerca da sua natureza, a fim de evidenciar quais direitos envolvidos na questão, e discussões doutrinárias abalizadas na temática. Para melhor compreensão, será necessária uma leitura mais aprofundada do tema proposto.

PALARAVRAS-CHAVES: crime, omissão, garantias, bem jurídico, perigo

INTRODUÇÃO

A Lei 12.653/12 acrescentou à Parte Especial do Código Penal, em seu Capítulo III intitulado Da periclitação da vida e da saúde, o crime previsto no artigo 135-A, praticado mediante a exigência de cheque-caução, nota promissória ou qualquer outra garantia como condicionante para o atendimento médico-hospitalar emergencial. Tendo em vista que essa prática recorrente não conseguiu ser impedida por outras esferas de controle, e pelo princípio da intervenção mínima do estado, coube por subsidiariedade ao Direito Penal intervir, atribuindo como punição a detenção de três meses a um ano, e multa, podendo ser aumentada.

Nesse sentido, é importante considerar quais bens jurídicos são postos em prioridade em face das exigências financeiras como o cheque caução e nota promissória; ou burocráticas como preenchimento de formulários administrativos, a fim de entender a verdadeira finalidade jurídica da lei e sua repercussão frente à sociedade. Para tanto, é imprescindível conhecer a natureza do crime em questão, que constitui uma modalidade específica de omissão de socorro.

A omissão de socorro está no rol dos crimes omissivos classificados como próprios, ou seja, a omissão é narrada no tipo penal, isto é, no artigo 135 do CP, diferentemente dos impróprios, que não estão expressamente narrados, mas que por uma norma de extensão, busca incluir os garantidores à figura típica do tipo penal. Quanto ao art. 135-A não há uma conclusão absoluta acerca de sua natureza, portanto o trabalho abordará discussões doutrinárias acerca do assunto, bem como definir se tratar de crime de perigo abstrato ou concreto.

Por fim, após uma análise apurada do art. 135-A, é interessante expor quais ramos do direito já haviam sido alvo da tentativa fracassada do legislador em tentar evitar e punir tal conduta, demonstrando através do âmbito administrativo, civil e consumeirista, artigos que traduzem de forma clara esta preocupação, de onde se pode concluir que o tema é pertinente e mereceu a devida atenção do direito penal ao emitir a lei já mencionada.

1        ANÁLISE DO CRIME PREVISTO NO ART. 135-A do CP

A Lei n° 12.653/12 incluiu no Código Penal Brasileiro o art. 135-A, este trás em seu bojo que constitui crime “Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial”. A Lei n.° 12.653/2012 prescreve ainda a obrigação do estabelecimento de saúde que realize atendimento médico-hospitalar emergencial de afixar, em local visível, cartaz ou equivalente, com a informação de que é proibida a exigência de tais garantias.

Assim, o legislador previu a pena em sua forma simples (caput), detenção de três meses à um ano, e multa. As majorantes do tipo penal estão descritas no parágrafo primeiro, hipóteses em que, se da negativa do atendimento emergencial resultar lesão corporal a pena deverá ser em dobro, e se o resultado for morte, a pena deverá ser triplicada, sendo ambas de ação penal pública incondicionada.

É possível extrair do próprio artigo (135-A), a sua relação com o crime de omissão de socorro previsto no art. 135 do CP, que consiste em deixar de prestar assistência quando assim puder fazê-la sem correr risco pessoal. Apesar de o art.135-A não trazer descrito no tipo penal a palavra omissão, subtende-se à sua descrição, pois deixar de prestar o atendimento emergencial por conta de tais exigências resulta em omissão de socorro ao paciente.

Entretanto, essas duas tipificações penais embora se assemelhem, diferem-se em seus pontos mais importantes, tais como a classificação do tipo penal e seus sujeitos ativos e passivos, pois a omissão de socorro constitui um crime comum, isto é, pode ser cometido por qualquer pessoa, enquanto que a exigência de garantias como condicionante trata-se de crime próprio por só poder ser exigido por pessoas particulares, isto é, próprias, tais como médicos enfermeiros e funcionários hospitalares.

A intenção do legislador ao criminalizar este tipo de conduta, é proibir que bens jurídicos tais como vida, saúde e integridade física não sejam postos em risco em face do protelamento de atendimento emergencial por condicioná-lo ao cheque-caução, nota promissória, e demais garantias, prática esta recorrente em hospitais particulares, e o que deveria ser resultado de puro bom senso, humanidade e solidariedade de todos, necessita da tutela do Direito por meio de sua criminalização no Código Penal, para evitar lesões aos bens jurídicos já mencionados. Nesse sentido, Rogério Greco leciona que:

O fato de vivermos em sociedade implica uma série de direitos e deveres de uns para com os outros [...] existe um dever maior, necessário não somente ao convívio social, mas à manutenção própria da sociedade em si, que é o dever de solidariedade. Como não podemos contar com a boa vontade de todos, faz-se necessário normatizar esse dever de solidariedade esclarecendo, em algumas situações, quando devemos agir, sob pena de sermos responsabilizados criminalmente por tal inação. O fato de virarmos as costas para o nosso semelhante, que vive um momento de perigo não criado por nós, será objeto de reprimenda do direito penal. (GRECO, p.341, 2010)

1.1  SUJEITOS E TIPOS OBJETIVO E SUBJETIVO DO CRIME

 

O tipo penal descrito no art. 135-A como já mencionado, trata-se de crime próprio, isto é, só pode ser cometido por determinadas pessoas, estas constituem o sujeito ativo do delito, e que podem ser desde os administradores do estabelecimento de atendimento emergencial até os prepostos, isto é, médicos, enfermeiros, recepcionistas e demais funcionários hospitalares.

Nesse sentido, é importante destacar que os prepostos não poderiam alegar de forma alguma obediência hierárquica, o que nos termos do art.22 do CP configuraria excludente de culpabilidade, pois esta ordem seria manifestamente ilegal, visto que existe uma lei regulamentando a ilicitude de sua exigência, e também pelo fato de a obediência hierárquica só ser possível em relações de Direito Publico em que este poder hierárquico é inerente à administração pública, mas não se estende às relações entre patrão e empregado como é o caso, no âmbito do Direito Privado. Greco corrobora deste pensamento:

Hierarquia é relação de Direito Público. [...] Nesse sentido, Frederico Marques, quando aduz que para que se possa falar em obediência hierárquica é preciso que “exista dependência funcional do executor da ordem dentro do serviço público, em relação a quem lhe ordenou a prática do ato delituoso”. Isso quer dizer que não há relação hierárquica entre particulares, como no caso do gerente de uma agência bancária e seus subordinados, bem como tal relação inexiste nas hipóteses de temor reverencial entre pais e filhos ou mesmo entre líderes religiosos e seus fiéis. (GRECO, p.397, 2010)

Quanto ao sujeito passivo, é qualquer pessoa que necessite do atendimento emergencial, e seja submetida a quaisquer exigências vedadas nos termos deste artigo. Assim, se a exigência foi dirigida à um parente do paciente, o sujeito do crime do art.135-A é tão somente a pessoa que necessitou do atendimento emergencial, não estendendo-se ao parente, visto que o bem jurídico que o legislador buscou proteger ao tipificar este crime é a saúde, vida e integridade do paciente, sendo indiferente a quem foi exigido o cheque caução ou quaisquer outra garantia.

O tipo penal objetivo é o de cheque caução, que consiste em um cheque com determinado valor ou valor em branco, que deve ser assinado pela pessoa ou acompanhante, a fim de garantir pagamento futuro pelo atendimento emergencial, nota promissória, que é um documento escrito em que o sacador compromete-se em pagar as despesas gastas com o beneficiário, ou qualquer outra garantia, tais como penhora de objetos de elevado valor, bem como preenchimento prévio de formulários administrativos, isto porque, os familiares movidos pela emergência da situação podem assinar contratos de adesão com cláusulas que não suportem ou que sejam abusivas.

Já o tipo subjetivo é constituído pela forma dolosa, e não há sua previsão à titulo culposo, é ainda de dolo específico, pois a exigência de tais garantias para configurar este crime deve ser feita mediante condicionamento do atendimento emergencial.

 

1.2 CONSUMAÇÃO, TENTATIVA E EXAURIMENTO

Por tratar-se de crime formal, o tipo penal descrito no art. 135-A consuma-se com a mera exigência, isto é, no momento em que é exigido o fornecimento de quaisquer garantia, seja cheque-caução, nota promissória, ou preenchimento do formulário administrativo como condição para a prestação de serviço médico-hospitalar emergencial.

A tentativa é admitida na teoria, mas de dificílima ocorrência na prática, portanto, ainda que ao final a vítima receba o atendimento sem a necessidade de tais garantias, por motivos alheios à vontade do hospital, o crime já terá se consumado. O exaurimento do tipo descrito se dá quando é deixado de prestar atendimento emergencial devido à exigência destas garantias, é quando o sujeito ativo pratica o ápice do delito, pois é quando ofende diretamente os bens jurídicos que pretendem ser protegidos pelo legislador ao punir tal conduta.

É necessário frisar que tal conduta é proibida em atendimento emergencial, ou seja, situações em que há um quadro crítico, inadiável por iminente risco de vida do paciente, e não em atendimento de urgência, que embora também requeira rápido atendimento, possui caráter menos imediatista. Portanto é elemento essencial para observância de sua consumação que a exigência seja feita durante atendimento emergencial tal como descreve o art. 135-A, pois não admite-se analogia in mallam partem, devendo ser feita uma interpretação penal restritiva.

Além disso, é perfeitamente exigível garantia condicionada ao atendimento médico após a situação de emergência, para que o paciente continue recebendo serviços médico-hospitalares, pois dessa forma constitui conduta atípica, e não há subsunção ao texto do art. 135-A, mesmo porque os bens jurídicos protegidos pelo constituinte não mais estarão em risco, pois a situação de risco de vida, saúde e integridade já teriam sido contornadas com o eficiente atendimento emergencial.

2 BENS JURÍDICOS PROTEGIDOS EM FACE DA EXIGÊNCIA FINANCEIRA

Atualmente não existe nenhuma contrariedade entre os autores de Direito Penal sobre a importância do estudo do bem jurídico. Em verdade, existe uma invariável concordância entre eles de que a intervenção penal só se justifica para tutelá-los. Diante disso, é necessário conceituar bem jurídico que, no dizer de Luiz Regis Prado:

“vem a ser um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual reputado como essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem e, por isso, jurídico-penalmente protegido.” (p. 249, 2004)

De acordo com o princípio da fragmentariedade, o direito penal não atua sobre toda e qualquer realidade, mas seleciona os bens que considera mais importantes para proteger, desde que comprovada a lesividade e a inadequação das condutas que os ofendam. Portanto, o direito penal não está autorizado a proteger todos os interesses juridicamente relevantes, mas somente aqueles mais essenciais, e em face dos ataques mais graves.

Nessa linha de pensamento, Luiz Regis Prado (p. 250, 2004) explica que convém evidenciar-se que o bem jurídico não se identifica exatamente com o seu substrato: revela algo mais que sua base, visto ser resultado de um juízo positivo de valor sobre algo, e acaba tornando-se um conteúdo ímpar de cunho empírico-valorativo. É sempre portador de um sentido, de algo valioso para o ordenamento jurídico.

Partindo para o caso em análise, tendo em vista a prática rotineira da conduta de exigência de garantias financeiras ou burocráticas em atendimento médico hospitalar emergencial, tornou-se essencial a criminalização da mesma, a fim de tutelar bens jurídicos considerados fundamentais para o indivíduo e a vida social. Nesse caso específico, o legislador observou que os demais campos não foram capazes de extirpar essas condutas reprováveis.

Os bens jurídicos tutelados pelo artigo 135-A do Código Penal são a preservação da saúde e da vida dos indivíduos que não recebem o atendimento rápido e adequado devido à exigência de garantias financeiras ou meramente burocráticas. O legislador, ao tipificar essa conduta como crime, não visa confundir o Direito Penal com questões administrativas ou civis, porque o objetivo não é apenas criminalizar a exigência de garantias financeiras ou preenchimento de formulários para atendimento médico-hospitalar emergencial. O principal interesse, em verdade, é evitar a lesão aos bens jurídicos acima mencionados.

Entende-se que o condicionante de atendimento médico hospitalar emergencial não protege outros bens jurídicos, como a honestidade, a liberdade pessoal e o patrimônio. Porém, além da proteção à vida e à saúde, o fundamento da criminalização de exigência de condição para o atendimento emergencial médico-hospitalar é também o desrespeito ao dever de solidariedade humana, um princípio moral, portanto, um dever jurídico.

3. NATUREZA DO TIPO PENAL

3.1 CRIME DE PERIGO ABSTRATO E CONCRETO

Antes de se chegar à análise da classificação da natureza do tipo penal, é importante conceituar os crimes de perigo abstrato e concreto. Primeiramente, os crimes de perigo são aqueles que se consumam tão só com a possibilidade do dano, ou seja, perigo presumido e se subdividem em crimes de perigo abstrato ou concreto. Segundo Rogério Greco:

“a conclusão da situação de perigo criada pela prática do comportamento, é realizada, independentemente da comprovação, no caso concreto, de que a conduta do agente tenha produzido, efetivamente ou não, a situação de perigo que o tipo procura evitar. A doutrina majoritária aponta como exemplo dessa infração penal o crime de omissão de socorro, previsto no artigo 135 do Código Penal, raciocínio com o qual não compartilhamos.” (p. 100, 2010)

Rogério Greco (p.100, 2010) classifica como crimes de perigo concreto “aqueles cuja situação de perigo supostamente criada pela conduta do agente precisa ser demonstrada no caso concreto.” Nos crimes de perigo concreto primeiramente analisa-se a conduta praticada pelo agente, depois de sua realização, a fim de concluir se, no caso concreto, trouxe ou não perigo ao bem jurídico protegido pelo tipo.

Existe uma divergência doutrinária quanto à classificação do crime de omissão, artigo 135 que criminaliza a conduta de “Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública.” Para a doutrina majoritária, o simples fato de deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo, sem risco pessoal, nas situações elencadas pelo legislador, já se configuraria delito de omissão de socorro. Assim, este crime seria classificado como crime de perigo abstrato.

Porém, Rogério Greco discorda da posição majoritária. O autor revela que somente se constituirá em omissão de socorro quando o agente deixar de prestar assistência ao desamparo ou em grave e iminente perigo para vida ou para a saúde da vítima. A inércia do agente em evitar a subtração de pertencentes de outrem, por exemplo, não importará na sua responsabilização penal pelo delito de omissão de socorro, uma vez que o bem em questão não é a vida ou a saúde, mas o patrimônio. Assim, Rogério Greco considera o crime de omissão de socorro, um crime de perigo concreto.

Ao analisar o artigo 135-A do Código Penal, considera-se mais adequada a posição da doutrina majoritária do artigo anterior. A conduta tipificada como ilícita deve ser considerado crime de perigo abstrato, presumido ou de simples desobediência. Assim, para a consumação do delito basta a prática da conduta típica pelo agente, sem ser necessário demonstrar que houve, concretamente, a produção de uma situação de perigo. De acordo com a redação do tipo percebe-se que não se exige a demonstração de perigo, havendo uma presunção absoluta de que ocorreu perigo pela simples exigência indevida. Se não, vejamos:

“Art. 135-A: Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.”

Vale ressaltar que, apesar de haver polêmica na doutrina, o STF entende que:

“A criação de crimes de perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte do legislador penal. A tipificação de condutas que geram perigo em abstrato, muitas vezes, acaba sendo a melhor alternativa ou a medida mais eficaz para a proteção de bens jurídico-penais supraindividuais ou de caráter coletivo, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde etc. Portanto, pode o legislador, dentro de suas amplas margens de avaliação e de decisão, definir quais as medidas mais adequadas e necessárias para a efetiva proteção de determinado bem jurídico, o que lhe permite escolher espécies de tipificação próprias de um direito penal preventivo. Apenas a atividade legislativa que, nessa hipótese, transborde os limites da proporcionalidade, poderá ser tachada de inconstitucional.”

(HC 104410, Relator Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 06/03/2012)

3.2 CRIME OMISSIVO PRÓPRIO E IMPRÓPRIO

A lei penal não pode vedar a simples causação de resultados, mas apenas e tão somente ações ou omissões (controladas pela vontade) dirigidas à lesão (ou perigo de lesão) e a bens jurídicos essenciais. De logo, importa, então, dizer que a ação e a omissão têm, na teoria jurídica do delito, a função de elemento básico, ainda que não unitário do sistema, suficiente para permitir uma regular interpretação de todos os tipos injustos. (Luiz Regis Prado, p. 292, 2004)

A atual doutrina jurídico-penal possui um significativo consenso em afirmar que a omissão é reconhecida como realidade meramente normativa. Segundo Fabio Roberto D’Avila (p. 187, 2005) é uma realidade a ser buscada não mais na dimensão do ser, mas do dever ser, da normatividade, in casu, jurídico penal. Assim, para o autor, a omissão só pode ser pensada sob a ótica de uma norma. D’Avilla afirma que:

“Torna-se impossível conceber um esquecimento como manifestação da personalidade, uma vez que tal fenômeno somente ganhará status de “esquecimento”, quando confrontado com uma norma preceptiva, ou seja, mediante uma apreciação eminentemente axiológica.” (p. 197, 2005)

 A violação das normas imperativas constitui a essência do crime omissivo, segundo Paulo Vinicius Sporleder de Souza (p. 32, 2009). O autor configura que o crime omissivo ocorre quando o agente não faz o que devia e podia fazer quando juridicamente era obrigado no caso concreto. Sabe-se que os crimes omissivos dividem-se em omissivos próprios e omissivos impróprios. No dizer de Damásio E. De Jesus:

“Os crimes de omissão própria são os que perfazem com a simples abstenção da realização de um ato, independentemente de um resultado posterior; exemplo: o crime de omissão de socorro elencado no artigo 135 do Código Penal. Enquanto os crimes omissivos impróprios ou comissivos por omissão são aqueles que o sujeito, mediante omissão, permite a produção de um resultado posterior, que os condiciona. Nesses crimes, em regra, a simples omissão não constitui crime.” (p. 193, 2002).

Os crimes omissivos próprios, por serem materiais, exigem a ocorrência de um determinando resultado naturalístico para sua consumação. Nesses crimes, o agente não tem simplesmente o dever de agir, mas o dever de agir para evitar o resultado. (Paulo Vinicius de Souza, p. 34, 2009)

Partindo para o caso específico, é importante analisar a omissão penal médica. Quanto à fonte originadora da posição de garantia relativa aos médicos, há dois entendimentos na doutrina. Para uns, o médico enquanto agente tem por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; para outros, o médico assume a responsabilidade de impedir o resultado. No entanto, independentemente de qual seja a hipótese de garantia, os profissionais da saúde têm a função de garantir a vida e a saúde (bens jurídicos) dos pacientes.

A culpa penal médica é caracterizada a partir da constatação da violação do dever objetivo de cuidado; violação do dever de agir e a possibilidade concreta de agir. Ademais, a doutrina tem dificuldades de apontar qual a melhor solução dogmática para se responsabilizar penalmente o médico pela sua omissão, se própria ou imprópria.

A redação do artigo 135-A é clara ao tipificar como crime a simples conduta de exigência de garantias para atendimento médico-hospitalar emergencial. Assim, entende-se que o tipo penal deve ser enquadrado nos crimes omissivos próprios, assim como o artigo 135 do Código Penal, visto que o crime do artigo 135-A é um crime de mera conduta, que independe de resultado para se consumar. No dizer de Paulo Vinicius de Souza (p. 33, 2009) “o resultado que eventualmente surgir dessa omissão será irrelevante para a consumação do crime”.

4 OUTROS ÂMBITOS DO DIREITO QUE PUNEM TAL CONDUTA

Na seara do Direito Administrativo, é possível constatar esta preocupação por uma agência vinculada ao Ministério da Saúde, denominada Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, ao dispor no art. 1° da Resolução Normativa n.° 44, de 24 de julho de 2003 que “Fica vedada, em qualquer situação, a exigência, por parte dos prestadores de serviços contratados, credenciados, cooperados ou referenciados das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde e Seguradoras Especializadas em Saúde, de caução, depósito de qualquer natureza, nota promissória ou quaisquer outros títulos de crédito, no ato ou anteriormente à prestação do serviço”.

Nesse mesmo sentido, o Código de Defesa do Consumidor, por meio da Lei n.° 8.078/90 tipifica como prática abusiva aproveitar-se de quaisquer fraqueza por problemas de saúde por parte do consumidor pelo fornecedor de serviço, vedando à este último no art.39 da lei mencionada em seu inciso IV “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços;”.

Da mesma forma, ao prever as hipóteses de anulabilidade do negócio jurídico, o legislador aponta o estado de perigo como vício de consentimento, característica apta a anular o negócio segundo o Código Civil de 2002, que trás no bojo do art. 156 “Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.”. Dessa forma, o sentimento gerado pela extrema necessidade de atendimento emergencial, faz com que a família ou a própria vítima assinem um cheque-caução ou nota promissória que sejam incapazes de honrar, configurando claro exemplo de estado de perigo.

Portanto, é possível notar a preocupação do legislador em evitar condutas que comprometam e ponham em risco bens jurídicos tão importantes quanto a vida, integridade e saúde da pessoa, que outros ramos do Direito já puniam esta prática, mas ao constatar ser ineficiente estas vedações por ainda constituir prática extremamente recorrente, e visando fazer prevalecer o direito aos bens já mencionados em face de exigências financeiras, o legislador recorreu ao Direito Penal, esfera mais severa de sanção para tentar extinguir tais condutas. 

CONCLUSÃO

O principal objetivo do legislador ao tipificar a exigência de condicionantes para atendimento médico emergencial como crime foi de coibir casos que, com certa frequência, tem ocorrido em diversos hospitais do Brasil: recusas de atendimento emergenciais, ocorrência de graves danos à saúde dos pacientes, inclusive óbitos, em decorrência da falta de atendimento.

Assim, observou-se a necessidade de criminalizar tal conduta para assegurar o bem jurídico mais importante de qualquer indivíduo, a vida, associado com a tutela da integridade física e saúde; por meio da solidariedade humana, mas especialmente pelo dever legal de agir do sujeito ativo, quando o paciente ou vítima encontrar-se em situação de perigo iminente.

A lei surgiu do fato social, visando combater a impunidade que vinha permitindo a continuidade dessa prática. Destaca-se que este tipo penal já era punido em outros âmbitos do direito, porém não se observou a extirpação da conduta considerada reprovável. Assim, fez-se necessária a criminalização dessa conduta que deveria ser afastada pelo simples bom senso e humanidade por parte das pessoas que lidam com o atendimento emergencial médico-hospitalar.

A discussão principal levantada foi em relação à natureza do tipo penal. Através do presente estudo entende-se que esta conduta deve ser classificada como crime de perigo abstrato, uma vez que o texto normativo condena a mera exigência de condicionantes para o atendimento médico-hospitalar emergencial e, ainda, classifica-se como crime omissivo próprio que como dito a mera conduta já criminaliza o agente.

Por fim, não menos importante, espera-se que este tipo penal seja capaz de solucionar definitivamente um problema grave capaz de afetar qualquer pessoa. Uma forma de humanização do atendimento hospitalar-médico emergencial, visando assegurar a dignidade da pessoa humana e o bem jurídico mais precioso do ser humano, a vida. 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Cezar. Condicionamento de atendimento médico hospitalar emergencial. Atualidades do Direito. Disponível em  http://atualidadesdodireito.com.br/cezarbitencourt/2012/07/24/condicionamento-de-atendimento-medico-hospitalar-emergencial/. Acesso em: 07.11.2012

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Comentários ao novo art. 135-A do Código Penal. Dizer o Direito. Disponível em: http://www.dizerodireito.com.br. Acesso em: 08.11.2012

D’AVILA, Fábio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal/ Rogério Greco. – 12. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.

JESUS, Demásio E. de, Direito Penal: Parte Geral. V. 1 – São Paulo: Saraiva, 2002

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. V. 1 – São Paulo: Revista dos Tribunais LTDA, 2004.

TAVARES, Juarez. As controvérsias em torno dos crimes omissivos. Rio de Janeiro: Iinstituto Latino-Americano de Cooperação Penal, 1996.

SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Direito penal médico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

104410 RS , Relator: Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 06/03/2012, Segunda Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-062 DIVULG 26-03-2012 PUBLIC 27-03-2012. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21457539/habeas-corpus-hc-104410-rs-stf. Acesso em: 07.11.2012



[1] Paper apresentado à disciplina de Direito Penal I, Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[2] Alunas do 4º período do curso de graduação em Direito da UNDB.

[3] Professor Mestre, orientador.