Leonardo Victor Paixão Mesquita[1]

Sumário: Introdução; 1. A relação do infanticídio com o estado puerperal e o posicionamento doutrinário; 2. O estado Puerperal; 3. Divergências acerca do estado puerperal; 4. A psicanálise em análise ao estado mental da mulher no ato do crime de infanticídio; Conclusão; Referências.

RESUMO

O trabalho a seguir visa discutir a aplicação de pena se justa ou legítima quando da mãe sobre o efeito do estado puerperal matar seu filho, caracterizando neste ato de matar o crime de infanticídio, e se esse mesmo estado poderia amenizar ou mesmo extinguir a possibilidade de crime de infanticídio, tendo por base a própria legislação brasileira, analisando todos os princípios constitucionais aqui arraigados e também o entendimento da psicanálise com o propósito de afastar a possibilidade de culpa ou atenuar a mesma.

 

 

PALAVRAS-CHAVE

Infanticídio. Estado Puerperal. Legislação Brasileira. Princípios Constitucionais. Psicanálise.

 

 

INTRODUÇÃO

 

Acerca do crime de infanticídio, previsto no artigo 123 do CP, diz que matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho durante o parto ou logo após, a pena aplicada a este crime será de detenção de 2 a 6 anos. Destarte, o aqui exposto visa discutir sobre a aplicabilidade desta pena no âmbito da psicanálise com o propósito de se analisar se o ato de cometer infanticídio sob este efeito, o estado puerperal, poderia influenciar na não aplicabilidade desta pena, resultando na absolvição imediata daquela pessoa que cometera tal crime, em virtude de estar sofrendo um distúrbio psicótico, muitas vezes emocional, mas também físico, em decorrência do grande sofrimento de uma mãe quando após o parto.

 

1. A relação do Infanticídio com o Estado Puerperal e o posicionamento doutrinário

 

O art. 123 determina: Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após:

Pena - detenção, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.

O objeto jurídico deste crime é a vida humana, de quem está em processo de nascimento (nascente) ou do recém-nascido (neonato). O sujeito ativo é a mãe da vítima, sob a influência do estado puerperal (sistema fisiopsicológico ou fisiopsíquico, em oposição ao sistema psicológico – honoris causa) o qual a doutrina classifica como crime próprio. Há algumas hipóteses acerca do estado puerperal, que quanto à sua natureza podem alterar o crime, deixando de ser um infanticídio e se tornando um homicídio, por exemplo, e em situações que vão depender do estado mental da mãe tornando o crime de infanticídio inimputável.

  1. Quando não há alteração na mulher (emocionalmente), o crime é o de homicídio.
  2. Quando da perturbação psicossomática causa da violência contra o próprio filho é crime infanticídio.
  3. Quando de presença de doença mental, há inimputabilidade (CP, art. 26, caput).
  4. Quando da perturbação da saúde mental (diminuição da capacidade de entendimento e autodeterminação), há aqui a semi-imputabilidade (CP, art. 26, par. ún.)

O sujeito passivo deste crime é o filho neonato ou nascente, com presença de vida biológica (“mínimo de atividades funcionais de que o feto já dispõe antes de vir à luz, e das quais é o mais evidente atestado a circulação sanguínea” – BITENCOURT, p. 119). Não se exige vida extrauterina autônoma ou viável; o feto abortado e morto em seguida não é sujeito passivo de infanticídio (não é neonato nem nascente), neste caso o crime é de aborto; produto de parto prematuro (provocado ou não) → infanticídio; natimorto → crime impossível (absoluta impropriedade do objeto).

Neste crime a conduta típica (da mãe) é matar (este é o tipo objetivo), por qualquer meio, o próprio filho, durante o parto ou logo após e sob influência do estado puerperal, também pode ser praticado por omissão (Ex: ausência de alimentação, falta de ligadura do cordão umbilical. O tipo subjetivo é o dolo direto ou eventual, assim não há forma culposa (no caso, à mãe seria imputado o crime de homicídio culposo). Tal crime se consuma com a morte do nascente ou do neonato e se admite a tentativa.

Pode ocorrer no crime de infanticídio o concurso de pessoas, a esse respeito alguns posicionamentos são destacados:

1º Posicionamento: comunicabilidade da influência do estado puerperal (CP, art. 30: “Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime”). O terceiro responde por crime de infanticídio; este é posicionamento de Roberto Lyra, Noronha, Frederico Marques, Basileu Garcia, Damásio. 2º Posicionamento: o estado puerperal é condição personalíssima e, por isso, não se comunica. O terceiro responde por crime de homicídio, posicionamento defendido por Hungria, Fragoso e Aníbal Bruno. Sobre estes posicionamento, surge uma dúvida, sobre qual adotar, mas a solução para tal problema é considerar o infanticídio como espécie de homicídio privilegiado, transformando o estado puerperal em simples circunstância pessoal e não em elementar do tipo. Aplicar o artigo 29, § 2º, do CP, quando a mãe é partícipe → a mãe pretende participar de crime menos grave (infanticídio em relação ao homicídio).

 

2. O Estado Puerperal

 

“A Medicina Legal pátria concorda que a influência do estado puerperal pode ocorrer com gestantes aparentemente normais, física e mentalmente, que, estressadas pelo momento do parto, acabam por ocisar contra o próprio filho.” [2] As psicoses que costumam sobrevir durante ou após o parto são chamadas de puerperais. São geralmente caracterizadas como confusões alucinatórias agudas, de ofuscamento da consciência, delírios transitórios.

Damásio E. de Jesus, conceitua o estado puerperal: “Este é o conjunto das perturbações psicológicas e físicas sofridas pela mulher em face do fenômeno do parto”[3].

 

A Medicina Legal reconhece como alterações psíquicas que constituem o estado puerperal a atenção falha, percepção sensória deficiente, memória de fixação e evocação escassas, dificuldade em diferenciar o subjetivo do objetivo, juízo crítico concreto e abstrato enfraquecidos, discernimento inibido implicando na incapacidade de avaliação entre o lícito e o ilícito, inadaptação temporária e desorientação afetivo-emocional.[4]

 

A influência do estado puerperal pode reduzir a capacidade de compreensão, discernimento e resistência da parturiente; pode, também, dias após o parto, causar na mulher uma chamada psicose puerperal, que está quase sempre associada a uma doença mental já preexistente, que possui os mesmos efeitos de falta de discernimento, tanto que quando a puérpera se reabilita, não apresenta nenhuma lembrança do ocorrido.

Irene Muakad cita o pensamento de Bonnet quanto ao estado puerperal, no seguinte trecho de seu livro:

Estado puerperal é um transtorno mental transitório incompleto, por ser de curta duração e porque não chega a constituir um estado de alienação mental. É apenas um estado crepuscular, um estado de obnubilação das funções psíquicas.[5]

 

 

Nesta mesma direção, Marcé afirma:

 

O estado puerperal é uma forma fugaz e transitória de alienação mental, é um estado psíquico patológico que, durante o parto, leva a gestante à prática de condutas furiosas e incontroláveis, mas, após o puerpério, a saúde mental reaparece.[6]

 

Os autores clássicos da Medicina Legal afirmam que esse transtorno dura alguns minutos ou mais, nunca ultrapassando 48 horas. Regride sem tratamento e não deixa sequela, o que dificulta o diagnóstico. A jurisprudência exige como prova da existência do estado puerperal, a realização de um exame pericial na mulher – autora, a fim de que se possa constatar se, ao cometer o crime de infanticídio a mesma encontrava-se sob a influência do estado puerperal. Como já foi dito, o estado puerperal, de acordo com a Medicina Legal, não deixa sequelas, assim, a perícia não oferece segurança para a negativa da existência do mesmo, pois como já não há tantos indícios na época do exame, o perito médico legal deverá apoiar-se em testemunhas e em informações da própria autora.

O estado puerperal é um fenômeno de difícil especificação, muitas vezes sendo confundido com problemas de saúde mental, o que leva os doutrinadores a negar sua existência, justificando não passar de um transtorno psíquico já existente na mãe. Sobre esse estado psicológico, Júlio Fabrini Mirabete cita dois doutrinadores, Almeida Jr e J. B. Costa Jr.:

Nele se incluem os casos em que a mulher, mentalmente sã, mas abalada pela dor física do fenômeno obstétrico, fatigada, enervada, sacudida pela emoção, vem a sofrer um colapso do senso moral, uma liberação de impulsos maldosos, chegando por isso a matar o próprio filho. De um lado, nem alienação mental, nem semi-alienação (casos estes já regulados pelo Código). De outro, tampouco frieza de cálculo, a ausência de emoção, a pura crueldade (que caracterizariam, então, o homicídio). Mas a situação intermédia, podemos dizer até `normal`, da mulher que, sob o trauma da parturição e dominada por elementos psicológicos peculiares, se defronta com o produto talvez não desejado, e temido, de suas entranhas.[7]

 

Para Delton Croce, a psicose puerperal:

 

Via de regra, pode ocorrer com gestantes aparentemente normais, física e mentalmente, que, estressadas pelos desajustamentos sociais, dificuldades da vida conjugal e econômica, recusam de forma neurótica a maternidade, normalmente indesejada por viúvas e nas casadas com homens estéreis, ou por se sentirem aviltadas por serem mães solteiras, enfim, vários fatores psicológicos de adaptação à natalidade, que determinam o enfraquecimento da vontade, perda da consciência, podendo os sofrimentos físicos e morais levá-las a ocisar o próprio filho.[8]

 

 

Enfim, o estado puerperal pode ser considerado como um conjunto de características psicológicas, que tem seu início com o parto, podendo perdurar até logo após o mesmo.

 

3. Divergências acerca do estado puerperal

 

Há divergência entre a doutrina a respeito do estado puerperal. A controvérsia reside na justificativa do infanticídio, ou seja, na influência do estado puerperal, porém, sob o seguinte aspecto: se o estado puerperal é, por si, uma alteração psíquica capaz de levar à prática do crime, ou, se, a alteração psíquica constatada no momento do crime é proveniente de uma já existente, porém talvez não percebida (ou percebida) anteriormente.

A opinião dos doutrinadores divide-se entre:

I) os que entendem que não há possiblidade da existência de um estado puerperal puro, inexistente antes do puerpério e proveniente deste; atribuindo a conduta criminosa não ao estado puerperal em si, mas a perturbações psíquicas já existentes na parturiente antes da gravidez e que surgem em consequência do parto;

II) os que aceitam a existência de um estado puerperal puro, ocasionado somente pelo puerpério.

O grande criminólogo Ramos Maranhão faz parte dos que não acreditam na existência de um estado puerperal puro, mas sim, de um estado psicótico oportuno, já instalado na mulher antes do parto, e que se aproveita justamente deste para aflorar:

 

As psicoses que se instalam pós-parto são erradamente chamadas de puerperais, pois não constituem entidade autônoma, antes trata-se de esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva, estado confusional, etc. Essas manifestações psicopatológicas, com quadros clínicos bem definidos, encontram no puerpério condições propícias para sua instalação, como a exaustão, as alterações hormonais, tensão emocional, que se associam para precipitar um surto ou episódio psicótico.[9]

 

Marcé classificava as ocorrências psicológicas, denominadas de estado puerperal em:

I) psicoses puerperais, que são consequentes do próprio puerpério ou concomitantes a ele. Porém, classifica-se como psicose tóxico- infecciosa, em que a mulher apresenta estado confusional, acessos de mania ou melancolia, etc..

A mãe que mata o próprio filho estando sob essas condições, enquadrar-se-ia no artigo 26 do Código Penal, como doente mental.

II) Puerpério como fator agravante de anormalidades anteriores que podem levar ao crime. Como exemplo desse tipo, temos as mulheres perversas instintivas, histéricas, etc..

A mãe que mata o filho, agindo sob essas condições, enquadra-se no parágrafo único do artigo 26 do Código Penal.[10]

 

J. Alves Garcia concorda com o pensamento de Ramos Maranhão, dizendo:

 

O parto, por si só, não gera estados mentais mórbidos, exceto em mulheres psicopatas que durante o período de expulsão fetal e de dores costumam manifestar desmaios, excitações, crises de furor contra o médico, parteira e contra o recém-nascido.[11]

 

Para Hélio Gomes:

 

O estado puerperal, exigido pelo Código Penal à configuração do infanticídio, é uma entidade no mínimo pouco palpável, para não dizer virtual. As alterações psíquicas advindas desse quadro devem ser de tal monta, que permitam a abolição da capacidade de se conduzir ou se controlar diante do fato adverso...A explicação para o aparecimento desse quadro baseia-se em dois critérios: o psicológico ( ocultar a desonra proveniente de uma gravidez ilegítima) e o físico-psíquico, gerado pelo desgaste físico causado pelo parto.

 

Alfredo Farhat, por sua vez, argumenta: “é muito difícil a verificação do estado puerperal; todavia, esse estado seria a emotividade resultante do parto, uma ligeira perturbação psíquica capaz de diminuir a responsabilidade”[12]. Irene Muakad, em seu livro cita um trecho de uma entrevista do Professor Marcos de Almeida:

 

 O estado puerperal é uma ficção jurídica- não existe tecnicamente para a medicina legal. É um crime que depende de uma perícia médica para se comprovar se a mãe matou o próprio filho sob a influência do estado puerperal. O estado puerperal, criado pelos juristas, é um caso de responsabilidade atenuada, tendo em vista o certo grau de perturbação que acomete a mulher ao ter dado a luz recentemente. Do ponto de vista médico, comprovados clinicamente, são males como o surto psicológico, por exemplo, isto é, doenças clinicamente diagnosticáveis, o que normalmente não ocorre com o estado puerperal.

 

Assim, é estranho acreditar que de algo tão natural e vital, por assim dizer, possa decorrer algo tão brutal e contrário às leis naturais. Há, por sua vez, doutrinadores que concordam com a segunda corrente, a que crê em estado puerperal puro, decorrente do desgaste ocasionado pelo puerpério.

É este o caso do ilustre autor Flamínio Fávero, que admite a possibilidade de um estado puerperal puro, ou seja, gerado unicamente pelo parto, sem nenhum antecedente. Assim, ele diz:

 

Não é preciso que indaguemos mais da existência desse estado especialíssimo, basta o fato de ela eliminar o fruto do seu ventre para ela estar presa, jungida a esse estado puerperal. Basta que se faça o diagnóstico de uma gestação pregressa terminada pelo parto e como consequência final a eliminação do próprio fruto da concepção. A lei é

expressa: estado puerperal. Não podemos exigir um transtorno da mente de vulto, transtorno que implique em uma perturbação de tal sorte que impeça a verdadeira capacidade de imputação.[13]

 

Alguns juristas, como Médici Filho e Aníbal Bruno reforçam a posição a favor da adoção da influência do estado puerperal.

 

Aníbal Bruno salienta que:

 

Um sentimento de justiça conduzirá, então, a fazer cobrir com o privilégio do artigo 123 toda morte dada pela própria mãe ao filho durante o parto ou logo após, desde que não se demonstre ter sido praticada friamente, excluindo qualquer comoção que pudesse justificar a idéia de grave perturbação da consciência.[14]

 

No mesmo sentido, Gomes Neto afirma que:

 

Quanto à influência do estado puerperal, se de fato ocorreu ou não, exige ainda mais atenção, mas em caso de dúvida deve ser admitida como ocorrente. Em geral se a morte do próprio filho pela mãe se deu durante o parto ou logo após, já deve presumir, salvo prova em contrário, que se deu sob a influência do estado puerperal.[15]

 

 

4.  A psicanálise em análise ao estado mental da mulher no ato do crime de infanticídio

 

Como afirma o autor Jorge de Rezende, em sua obra “Obstetrícia Fundamental”, “com o nascimento da criança, e vivenciando o estado puerperal, a mãe pode ser afetada por três tipos de transtornos psiquiátricos: a disforia do pós-parto, depressão pós parto e psicose puerperal”[16].

A disforia do pós-parto é um desconforto mental leve, atingindo a parturiente logo nos primeiros dias após o nascimento de seu filho, os principais sintomas são: sensibilidade, choros fáceis e até certa agressividade em relação a familiares e acompanhantes. Neste quadro não será necessário a utilização de medicamentos, já que o mesmo dura no máximo duas semanas. A depressão pós-parto é um distúrbio mais grave, atingindo a parturiente em sua maneira de agir, já que a mesma apresenta falta de concentração nas tarefas diárias, faltas de sono e de apetite. Neste estado a mulher começa a desenvolver ideias obsessivas em relação ao próprio filho, com pensamentos negativos sempre presentes, tendo que ser tratada com medicamentos antidepressivos e muitas vezes, quando o grau da doença está avançado, acaba perdendo o controle de seus próprios atos, apresentando surtos de inconsciência[17].

 

A depressão pós-parto, em algumas situações, tem causas desconhecidas, mas devem ser tratadas como um distúrbio psicológico. Inclusive a mãe que apresenta tal transtorno não consegue sentir uma ligação direta com seu próprio filho, sente-se como se a criança fosse um ser estranho, ao mesmo tempo, são conscientes de que não deveriam sentir tal sensação, carregam sempre um fardo de culpa por não conseguirem vir a amar seus filhos.
Na depressão pós-parto aguda, as parturientes tendem a apresentar pensamentos suicidas, e idealizam imagens de sua morte e também da morte de seu bebê. Demonstra-se tal sensação em trecho do livro “Depois do parto, a dor – Minha experiência com a depressão pós-parto” da atriz Brooke Shields, que relata sua experiência com a depressão pós-parto aguda pela qual passou:

Fui invadida por um sentimento de derrotismo e aversão a mim mesma e senti ímpeto de golpear minha cabeça contra a parede varias vezes. Durante o que estava se tornando um dos pontos mais obscuros da minha vida, eu segurava minha recém-nascida e não conseguia impedir a imagem dela voando pelo ar e batendo na parede à minha frente.[18]

 

A autora do referido livro descreve sentimentos de total aversão à sua filha, não conseguindo sequer amamentar a criança sem que fosse um fardo diário. Seus dias eram repletos de crise de choros e de pensamentos negativos. Assim como a maioria das mães que sofrem de depressão pós-parto, Brooke Shields sentia-se aterrorizada diante do fato de ficar só com sua filha, pois tinha certeza que não era capaz de cuidar do bebê sem a ajuda de alguém. No ápice de seu transtorno e ainda sem acreditar que sofria de depressão pós-parto, a autora, até então sem ter procurado tratamento, chegou a sentir delírios.

Esse esquema continuava sem cessar e, achando que seria assim para sempre, comecei a me sentir em delírio. Estava praticamente inconsolável. Não aguentava mais nada daquilo. Nunca tinha sentido emoções como essas, e acreditava piamente que mesmo que conseguisse articular o que estava vivenciando, ninguém compreenderia, nem mesmo meu marido.[19]

 

A parturiente, acima referida, sentia extrema falta de sua vida, antes do nascimento de sua filha, já que, sempre foi uma mulher independente e trabalhava desde jovem. Agora, tinha que lidar com um ser desconhecido e que alterava, completamente, sua rotina. Com a presença sempre de familiares, que sentiam a estranheza da situação e não a deixavam só com a filha, Brooke Shields, mesmo possuída por terríveis pensamentos, não chegou a cometer ato indigno contra a criança. Já que sempre estava acompanhada de outra pessoa que estivesse com a mente sã.

 

As mães deprimidas tendem a não se adaptarem à vida de seus filhos recém-nascidos, tornando-se, assim, relapsas quanto à saúde, a cuidados diários, muitas vezes vindo a prejudicar a vida da criança em razão de omitir-se de cuidados essenciais.  Neste transtorno psíquico a mulher possui pseudo-alienações, ou seja, imagens dotadas de veracidade, porém que se projetam para o interior de sua mente. Na pseudo-alienação, os médicos afirmam que o paciente, na maioria dos casos, possui a noção da falta de correspondência com a realidade. È como uma perturbação, ora da imaginação, ora da memória.[20]

 

 

A depressão pós-parto aguda, se não for tratada pode acarretar surtos psicóticos, pode ocorrer uma confusão de imagens e pensamentos com a realidade e é em meios a esses surtos que uma mãe pode vir a fazer mal à vida de seu próprio filho.

“A disforia atinge de 25 a 85% das mulheres, já a depressão pós-parto, afeta entre 10 e 20% das parturientes, sendo este último mais proeminente no primeiro período, ou seja, no último trimestre de gestação.”[21]

A psicose puerperal surge de maneira abrupta, nas primeiras semanas após o nascimento do bebê. É um estado gravíssimo, em que as mulheres apresentam comportamentos desorganizados, não conseguindo controlar de forma alguma e em nenhum momento seus próprios atos, ou seja, a mulher encontra-se, certamente, incapaz.

O quadro de psicose puerperal é delirante e alucinatório, a mãe é acometida por pensamentos obsessivos, como por exemplo pensar que o bebê não nasceu, nasceu defeituoso, está morto ou foi trocado na maternidade. Esses pensamentos fazem com que a mulher tente tirar a vida da criança estando sem consciência alguma do mal que está fazendo.

 

A psicose puerperal, para ser tratada, precisa de intervenção hospitalar urgente, já que os sintomas afetam, diretamente, a parturiente, gerando confusão mental, alucinações, quadros depressivos e maníacos. A mãe neste estado se encontra, totalmente, débil e insana. A mulher vítima da psicose puerperal, ao ser internada fica, totalmente, alienada em relação a sua vida, não sabendo onde está, o motivo pelo qual se encontra naquele hospital e não lembrando se quer que deu a luz a um filho.[22]

No estado de psicose puerperal, diferente da depressão pós-parto, a mulher tem alucinações. Nas alucinações, as imagens vistas e os sons ouvidos são exteriorizados e há um grande grau de convicção revelado pela parturiente, ela, realmente, acredita em tudo aquilo que está vendo e não consegue distinguir o real do irreal.[23]

 

 

É justamente no quadro de psicose puerperal que se encontra o maior índice do cometimento de infanticídio, conhecendo a diferença de ambos os transtornos e as características de cada um, não é correto afirmar que, qualquer mãe que tire a vida de seu filho, seja uma infanticida. Uma mulher, por exemplo, acometida por um simples surto de raiva por ter tido um filho indesejado, vindo a assassinar este, esta sim, seria uma infanticida nos termos da lei, já que, os transtornos por que passou são superficiais e não vieram a atingir o seu psíquico, ensejando apenas uma raiva controlável e que não deveria ser descontada na criança.

Casualmente, mulheres que agem com ódio e raiva ao assassinar seus próprios filhos, comportam-se como homicidas ao assassinar seu maior inimigo, no entanto, no ordenamento Penal vigente, são incursas no crime de infanticídio e beneficiadas com uma pena mais branda que a do homicídio. Apenas com o pretexto de estarem vivenciando a fase do puerpéreo, onde surgem inseguranças e desconforto físicos advindos do parto.

A parturiente que sofre de psicose puerperal, em todos os casos do transtorno, é, totalmente, incapaz em relação a seus atos e ao cometer ato indigno contra seu filho, não age com ódio e raiva conscientes.

“Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), entre 60% e 80% das mulheres apresentam alterações emocionais após o parto.”[24]

A principal característica de uma mãe que sofre de alguns dos transtornos psiquiátricos puerperais é a rejeição total ao bebê, sentindo-se, completamente, aterrorizada e ameaçada por ele, como se a criança fosse seu maior inimigo.

A mulher sente-se apática, abandona os próprios hábitos de higiene e cuidados pessoais, pode sofrer de insônia, inapetência e apresentar ideias de perseguição, como se alguém viesse roubar-lhe o bebê ou fazer-lhe algum mal.

As consequências de um transtorno psiquiátrico agudo, podem-se dividir em precoces e tardias, as primeiras ocorrem quando há negligência na alimentação do bebê, até a morte súbita da criança. As conseqüências tardias teriam como resultados crianças mal tratadas, distúrbios em comportamentos futuros, na vida adulta.

Ou seja, os vestígios de transtorno psíquico puerperal podem afetar a criança no momento presente, levando-a a morte, assim como trazer graves conseqüências para a sua vida adulta, como, por exemplo, uma síndrome de auto-rejeição.

Quando uma mãe sofre de tais transtornos, ela deixa de realizar os cuidados necessários com o seu próprio filho, deixando, por consequência, de ter um contato direto com a criança, interrompendo comunicações importantes que mãe e filho devem manter nos primeiros dias de vida, acarretando alterações, também, no recém-nascido, que não tendo como se comunicar, começa a utilizar apelos corporais como meio de expressão.

A criança apresenta sinais de apelos como: perturbações nas funções do sono, alimentação e inquietação na respiração. Em um estudo sobre a interação mãe-bebê, em meio a uma depressão pós-parto, os autores Frizzo e Piccinini afirmam que as mães deprimidas deixam, consequentemente, de estimular os seus filhos, e citam apreciações dos estudiosos Cohn, Campbell, Mattias & Hopkins a respeito do tema: 

Se o estado puerperal pode atuar sobre o agente, provocando um surto psicótico a ponto de determinar, momentânea privação de sentidos, não permitindo que uma vontade livre e consciente se exerça não se pode cogitar que houve a prática de um crime, pois o agente não agiu com dolo ou culpa.[25]

Para que um ato seja considerado crime, é preciso que seja uma violação imputável, dolosa ou culposa da lei penal ou de um direito protegido por lei penal. É indispensável que a ação seja dolosa ou culposa.

O artigo 18[26] do Código Penal Brasileiro, afirma:

Diz-se o crime:

I -doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo
II -culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligencia ou imperícia.

Ou seja, para que haja crime, é necessária a culpabilidade do agente, isto é, que tenha havido uma vontade livre e conscientemente de exercer a conduta delitiva. O que não ocorre em todos os casos em questão, já que uma mãe, influenciada sob o estado puerperal, totalmente alienada, sob um colapso de senso moral e incapaz de distinguir o lícito do ilícito, chegando a ter inclusive, em alguns casos, pensamentos suicidas, vem a tirar a vida do próprio filho recém-nascido.

É bem provado que esta mãe, acima mencionada, é um agente inimputável e o ato por ela cometido deve ser enquadrado em excludente de criminalidade. Já que, a mesma, não demonstrava uma vontade livre e consciente na hora do cometimento do crime.
Excludente de criminalidade ocorre quando o fato antijurídico é, excepcionalmente, permitido ou ordenado por norma jurídica penal ou extrapenal. O fato perde as características de crime para se tornar um ato licito. 

CONCLUSÃO 

Concluindo-se que uma mãe ao tirar a vida de seu filho estando acometida por um transtorno psíquico grave, não se encontrando responsável pelos seus atos, não pode praticar o ocorrido dolosamente como demonstrado, não pode também praticá-lo por imperícia, negligência ou imprudência, ou seja, culposamente, já que não tinha condições alguma de cuidar de uma criança, estando afetada por transtorno mental grave.

Sendo assim, fica comprovado que a mulher que age sob a influência do estado puerperal inconsciente de seus atos, não comete o crime de infanticídio previsto, já que a mesma encontrava-se incapaz no momento da realização do seu ato delitivo.

 REFERÊNCIAS

 

BARROS, Hércules. Mães Anônimas para reduzir Violência. Diário de Pernambuco, Brasil, A10, Recife, 21 de Outubro de 2007.

BERNARTT, Lilianna de Oliveira. Monografia apresentada ao curso de Direito: O infanticídio e o estado puerperal. São Paulo, 2005. Disponível em:  http://arquivo.fmu.br/prodisc/direito/lob.pdf. Acesso em 22 de maio de 2011.

EWALD, Maria Regina Miranda. Psicose Puerperal: A Intolerável dor de uma Separação. Banco de dados disponível na internet http://www.spcrj.org.br. Acesso em 24 de maio de 2011.

FRIZZO, Giana Bitencourt; PICCININI, Cesar Augusto. Interação Mãe-Bebê em Contexto de Depressão Materna: Aspectos Teóricos e Empíricos. Banco de dados disponível na internet http://www.scielo.br. Acessado em 25 de maio de 2011.

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o patrimônio. 25ª ed. , São Paulo: Atual, 2003.

LÓPEZ, Ramón Rodriguez Arras; PEDALINI, Rodrigo. Depressão Pós-parto. Revisão epidemiológica, diagnóstica e terapêutica. Ed. Científica Nacional Ltda, vol. 18, 1999.

MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal, parte especial. São Paulo: Atlas, 2000.

MUAKAD, Irene Batista. O infanticídio: Análise da doutrina médico-legal e da prática judiciária. 1ª ed. , São Paulo: Mackenzie, 2002.

REZENDE, Jorge; MONTENEGRO, Carlos Antônio Barbosa. Obstetrícia Fundamental. 9ª Ed. Guanabara Koogan, 2003.

SÁ JÚNIOR, Luís Salvador de Miranda. Psicopatologia & Semiologia Psiquiátrica. 1ª Ed. Artmed, 2001.

SHIELDS, Brooke. Depois do parto, a dor. Minha Experiência com a depressão pós-parto. Ed. Prestígio. 2006. 



[1] Aluno do 7º período noturno da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco apresentando paper de Tópicos II, ministrada pelo Prof. Moacir.

[2] BERNARTT, Lilianna de Oliveira. O infanticídio e o estado puerperal. Pg. 37

[3] JESUS, Damásio E. .107

[4] BERNARTT, Lilianna de Oliveira. O infanticídio e o estado puerperal. Pg. 37

[5] MUAKAD, Irene Batista. Infanticídio e seus aspectos médico-legais. 1. ed. São Paulo: Mackenzie.

[6] MARCÉ. Traité de la Folie des Femmes Enceintes – apud BERNARTT, Lilianna de Oliveira. O infanticídio e o estado puerperal. Pg. 37

[7] MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Especial.

[8] MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Especial.

[9] MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal. 3ª ed. , São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984 apud BERNARTT, Lilianna de Oliveira. O infanticídio e o estado puerperal. Pg. 43

[10] MARCÉ. Traité de la Folie des Femmes Enceintes – apud BERNARTT, Lilianna de Oliveira. O infanticídio e o estado puerperal. Pg. 38.

[11] GARCIA, J. Alves. Apud BERNARTT, Lilianna de Oliveira. O infanticídio e o estado puerperal. Pg. 42.

[12] MUAKAD, Irene Batista. Op. Cit.156

[13] FÁVERO, Flamínio apud BERNARTT, Lilianna de Oliveira, pg. 44.

[14] BRUNO, Aníbal apud BERNARTT, Lilianna de Oliveira, pg. 45.

[15] NETO, Gomes apud BERNARTT, Lilianna de Oliveira, pg. 45.

[16] REZENDE, MONTENEGRO, 2002, p.206

[17] Op cit. 2002, p. 206

[18] SHIELDS, Brooke. 2006, p. 68-72

[19] SHIELDS, Brooke. 2006, p.69

[20] SÁ JÚNIOR, 2001, pág. 161

[21] LOPES, PEDALINE, 1999, p. 117

[22] EWALD, 2005, http://www.spcrj.org.br.

[23] SÁ JÚNIOR, 2001, p. 161.

[24] BARROS, 2007, p. A10

[25] FRIZZO, Giana Bitencourt; PICCININI, Cesar Augusto. http://www.scielo.br.

[26] BRASIL, 2007, p.440