Cartejane Bogea Vieira Lopes

RESUMO

O tema central deste trabalho gira em torno de dois pontos: a proposta de desmilitarização da polícia e a inaplicabilidade do crime de desacato. Quanto ao último ponto, a tese da inaplicabilidade deste tipo penal já foi levantada pela jurisprudência pátria em algumas ocasiões. Quanto a desmilitarização da polícia militar, pugna-se pela adoção de um modelo de polícia cidadã, que prime pela efetivação e garantia dos direitos fundamentais de todos. Uma polícia que não mais vise combater a criminalidade com uma visão de guerra interna, uma polícia que se aproxime da comunidade, ao invés de ataca-la (mesmo que cotidianamente o ataque seja seletivo). Certo é que na lógica de funcionamento da polícia militar, de repressão aos delitos, estão inseridas ideologias de um Direito Penal do inimigo e a práxis de um Estado de Exceção permanente. O que se suprime são os direitos e garantias fundamentais, o que se tem em troca é um estado policialesco e que prima pela punição de certos tipos de pessoas, os desviantes.

PALAVRAS-CHAVE: Desacato; Direito Penal do inimigo; Estado de Exceção; Polícia Militar.

1 INTRODUÇÃO

O tema central deste trabalho gira em torno de dois pontos: a proposta de desmilitarização da polícia e a inaplicabilidade do crime de desacato. O tema ganhou especial relevo após as manifestações de junho de 2013 que levaram milhões de pessoas as ruas, não obstante a grande incerteza dos fins e do que estava por trás desse movimento, em que se evidenciou, principalmente, o violento modus operandi da polícia militar (muito embora isso pudesse ser evidenciado todos os dias nas periferias brasileiras).

A partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o país viveu uma redemocratização do Estado, passando pela ordem jurídica (com a CF 1988 como parâmetro de validade normativo) e pelas instituições. Apesar disso, o nosso modelo de polícia ainda é caracterizado pela estrutura ditatorial dos anos de 1964 a 1985, de tal modo que possuí o nome de polícia militar, de função manifestamente repressiva. Afinal, dirá

Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos.

Com efeito, conforme Salo de Carvalho (FURQUIM; MÜLLER, 2013), a lógica da polícia militar é achar um inimigo e combate-lo, e como o país não está numa guerra, não encontrando o inimigo externo, vai se encontrando um inimigo interno, em geral o jovem marginalizado e vulnerável que está numa periferia. Nessa estrutura, prevalece uma lógica de pura violência que caracteriza um modelo de sistema penal máximo, quanto ao estímulo à violência, e um verdadeiro Estado de Exceção, quanto aos direitos e garantias fundamentais. Muitos dos casos de desacato, que justificariam uma ação mais incisiva por parte dos policiais, se tratava de mero pedido pela identificação do agente público. Ora, trata-se de dever constitucional (e não se esqueça que constitui direito fundamental conforme o art. 5º, LXIV, CF) por parte dos policiais identificarem-se no momento em que efetuarem a prisão de alguém. Com efeito, a não identificação do policial é ofensa mais grave ao ordenamento jurídico pátrio que a ação de manifestantes mascarados.

Esse tipo de ação só evidencia a lógica punitivista que impera nas polícias brasileiras, não só a militar, como também a civil. Por isso, torna-se de grande relevância a investigação e crítica da proposta de desmilitarização da polícia, passando-se a um modelo de polícia cidadã. Conforme Bengochea, Martin, Gomes e Abreu (2004):

O grande desafio colocado no processo de democratização dos países da América Latina, hoje, quanto às organizações policiais, é a questão da função da polícia, do conceito de polícia. Esta definição é manifestada pela transposição da polícia tradicional, voltada exclusivamente a uma ordem pública predeterminada e estabelecida pelo poder dominante, para uma polícia cidadã, direcionada para efetivação e garantias dos direitos humanos fundamentais de todos os cidadãos

Mais além, a própria aplicabilidade do dispositivo do Código Penal deve ser questionada, afinal o possível confronto com o direito fundamental da liberdade de expressão é de interesse de todos os cidadãos. Para tanto, o fundamento de validade aqui utilizado é a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto San José da Costa Rica), promulgada no ordenamento jurídico brasileiro com o Decreto nº 578, de 1992.

 

2 CRIME DE DESACATO

 

O crime de desacato, conforme Prado (2013), visa tutelar o normal funcionamento e o prestígio da Administração Pública perante a comunidade, pois, agem como longa manus do poder estatal. A tipificação consiste em desacatar funcionário público no exercício de sua função ou em razão desta (CP, art. 331), não obstante, a proteção não é dirigida ao funcionário em-si, mas ao respeito que se deve ter pela função que este respectivamente exerce.

O núcleo do tipo, o verbo desacatar, consiste em um menosprezar, afrontar, humilhar, designa a ação de um sujeito que ofende o funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Essa ofensa, por sua vez, pode ser consubstanciada por palavras difamatórias, caluniosas, injuriosas ou por vias de fato, ameaças, gestos obscenos e agressão física contra o funcionário (BITENCOURT, 2015).

Por se exigir que a ofensa seja proferida no exercício de função pública ou em razão desta, Prado (2013) aponta que é necessário que haja um nexo funcional, até porque, como já se apontou, a tutela penal não se dirige à pessoa do funcionário. Diz-se que no caso de se encontrar o funcionário público no exercício de sua função exige-se apenas um nexo ocasional, bastando que a conduta seja feita ao tempo de exercício funcional. Já no caso de a ofensa ser perpetrada em razão da função, é necessário que haja nexo causal entre o motivo do delito e a função exercida pela vítima, de outro modo, subsistiria apenas eventual crime contra a honra.

Difere-se o desacato do crime de resistência, dirá Bitencourt (2015), pois, neste a violência ou ameaça praticadas têm o objetivo de não realização de ato legal, enquanto que naquele a eventual violência terá o fim de desprestigiar o funcionário público.

É exigido, para configuração do desacato, que a ofensa seja proferida na presença do funcionário público. É preciso que o ofendido perceba ou ouça a injuria (PRADO, 2013). No entanto, não é elementar do tipo a publicidade da ofensa, de tal modo que, ainda que proferida somente na presença do funcionário, se caracteriza o desprestígio pela função pública. Já se a ofensa é perpetrada na ausência do funcionário o agente responderá pelo crime de injúria, na forma qualificada.

O elemento subjetivo é composto pelo dolo, consistente na vontade livre e consciente de desacatar funcionário público, desprestigiando a função. A consumação do delito se perfaz com a efetiva prática do desprezo, seja por ofensas verbais ou por agressões físicas.

 As penas aplicadas ao delito em questão são: detenção de seis meses a dois anos, ou aplicação de multa. Considerando a pena máxima cominada, trata-se de crime de menor potencial ofensivo, admitida a transação penal e a suspensão condicional do processo. A ação é pública incondicionada e a competência é dos Juizados Especiais (BITENCOURT, 2015).