PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO

FILOSOFIA DA CULTURA

Artigo acadêmico de final de curso

TEMA

“CRIANDO ESPECTADORES EMANCIPADOS” 

Arlindo Nascimento Rocha[1].

[email protected] 

 “Há dentro deste processo que é a representação teatral, dentro desse acontecimento de múltiplos personagens, um personagem chave mesmo que não apareça em cena e pareça nada produzir: O espectador. Ele é o destinatário do discurso verbal e cênico, o receptor dentro do processo de comunicação, o rei da festa; mas ele é também o sujeito de um fazer, o artesão de uma prática que se articula perpetuamente com as práticas cênicas.” (UBERSFELD,1981, pg. 303) 

RESUMO

Historicamente o espectador sempre foi visto como uma figura passiva dentro da teoria teatral. Atualmente, continua sendo visto como um receptor passivo, fascinado pela aparência e conquistado pela empatia que o faz identificar-se com as personagens de um espetáculo. Porém, outras teorias demonstram que a capacidade perceptiva não é puramente recepção passiva, mas também atividade.

Assim apoiando nas ideias de Antonin Artaud (1896 /1948), Friedrich Brecht (1898 /1956) defensores das iniciativas modernas da reforma do teatro e de Jacques Rancière (1940), que através das suas obras, “O Espectador Emancipado[2]”, e o “Mestre Ignorante[3]”, pretendemos refletir sobre ideias ultrapassadas sobre o teatro, o espectador e a educação.

Meu objetivo último, não é coletar ou forjar receitas e soluções, mas sim dar continuidade ao debate contemporâneo sobre a importância de emancipação do espectador, como processo de libertação do fascínio que aniquila e aliena sua capacidade crítica e reflexiva diante dum espetáculo.

Palavra chave: Teatro, espectador, espetáculo, emancipação, crítica reflexiva.

 

ABSTRACT

Historically the spectator has always been viewed as a passive figure in theatrical theory. Currently it is still viewed as a passive receptor, fascinated by appearance and conquered by the empathy that makes him relate to the characters in the story. Other theories, however, demonstrate that perceptive capacity is not only passive reception, but also a form of activity. 

So as supported by the ideas of Artaud Antonin, Friedrich Brecht defenders of modern attempts at theatrical reform, and also of Jacques de Rancière who, through his pieces "The Emancipated Spectator" and the "Ignorant Master", has made us reflect on old-fashioned ideas about the relationship between the theater, the spectator and the education. 

My ultimate objective is not to collect or steal any instruction or solution, but to continue the contemporary debate about the importance of the emancipation of the spectator as a form of liberating the fascination that obstructs and alienates his or her critical and reflective capacities when dealing with pieces of entertainment or theatre. 

Key-words: theater, spectator, emancipation, critical reflective

INTRODUÇÃO

Dentro da teia de indivíduos que compõe o teatro pode-se encontrar uma figura que demorou a ser reconhecida e estudada: O espectador. Como um dos elementos fundamentais da relação teatral merece ser compreendido em toda a sua dimensão. Por isso, achei pertinente a escolha do tema.

Iniciei a minha investigação com a leitura da obra “O Espectador Emancipado e do Mestre Ignorante” de Jacques Rancière[4], o que me levou a refletir um pouco mais sobre a questão do espectador, tendo em conta, que sou educador e paralelamente tenho uma carreira teatral como ator desde 1996, no teatro Cabo-verdiano, que nas últimas duas décadas evoluiu de forma significativa, tanto na  formação de atores e atrizes, mas também na educação do público, ou seja, do espectador Cabo-verdiano, que se tem mostrado cada vez mais interventivo, pelas sugestões e críticas pontuais relativamente aos eventos culturais, nomeadamente o teatro.

Utilizei como suporte inicial para a investigação, duas obras de Rancière e posteriormente outras obras e artigos disponíveis na internet, que versam sobre a mesma temática, que serviram de referências para a elaboração do artigo, além da minha contribuição pessoal, através da minha experiência, adquirido ao longo de uma carreira de educador e ator. 

Rancière sempre esteve ao lado de posições da esquerda radical na Europa, ainda que crítico de muitos erros que se foram cometendo ao longo da segunda metade do séc. XX. É uma figura respeitada no mundo da cultura, as suas teses servem de pilar para muitos que tentam reinventar um programa de políticas públicas para as artes. Ele representa alguém a quem devemos um olhar atento para repensar algumas temáticas atuais como: emancipação, para que serve a arte, o que é isto do “consenso’ e arte politizada”. Porém, nesse artigo, ocuparei especificamente da questão da “emancipação” como fator transformador do espectador.

Para trabalhar esta ideia, Rancière analisa o papel do teatro hoje e o que ele pode significar nessa transformação e usa como exemplo a igualdade das inteligências, difundida na obra “O Mestre Ignorante” onde nos revela de forma clara que a vontade de aprender é o que leva o homem a aprender. Advém daí a ideia de uma sociedade de emancipados, onde todos saberiam que não existe desigualdade de inteligências. O que existe é a busca e a ambição por sempre querer saber mais e mais.

Rancière parte da análise do paradoxo do espectador, a saber, que não há teatro sem espectador. Interessa-nos então, compreender o lugar do espectador na trama dramática e situá-lo na dinâmica do espetáculo que lhe é oferecido. Os acusadores apresentam-no como um mal, assumindo que olhar é o contrário de conhecer e de agir, sendo o olhar do espectador tomado como circunscrito ao domínio da aparência e reduzido à passividade. Então, podem-se tirar duas conclusões: que o teatro é algo mau, “o lugar onde gente ignorante vê homens que sofrem”, como defende Platão, ou então é no espectador que reside o mal.

 Como reação a esta concepção de espectador em busca de um teatro novo que favoreça o surgimento de um novo espectador, ou seja, “o espectador emancipado” surge no séc. XX, duas propostas diferentes: o teatro épico de Brecht e o teatro da crueldade de Artaud. Acredita-se que, essas duas propostas não resolvem o problema da emancipação do espectador, uma vez que, apesar de terem tentado transformar o teatro, o espectador continua sendo alguém que precisa ser arrancado da passividade e ignorância e da sua condição de observador passivo.

A reflexão de Rancière é muito pertinente, pois, permite-nos questionar o lugar do espectador e o que significa o olhar para o espetáculo. Essa reflexão nos convida a oscilar entre as duas propostas reformadoras do teatro e questionar: devemos defender como Artaud que, o espectador nunca perde a condição de observador, arrastado para o espaço mágico do teatro, perdendo toda a distância ou devemos fazer com que o espectador seja arrancado da situação de passividade e forçá-lo a avaliar o espetáculo de maneira crítica, com defende Brecht?

Estou ciente de que, é preciso por um fim ao que Jacotot, denomina de embrutecimento, de redução do espectador a um ser passivo e deslumbrado, para que possamos superar esta tensão que caracteriza a relação do teatro com o espectador. Uma comunidade de espectadores emancipados é uma comunidade em que todos são indivíduos são ativos na sua construção do significado artístico e estético do espetáculo.

Acredito que, mediante a emancipação intelectual, o espectador se retira da posição de observador passivo que examina calmamente o espetáculo que lhe é oferecido, e passa a ter uma postura crítica e reflexiva, trocando o privilégio de ser um observador passivo e racional, para um espectador ativo, crítico... É essa linha de pensamento que norteará minha reflexão, sobre a postura do espectador nos dias de hoje.         

O CONCEITO DE ESPETDOR

Uma vez determinado o tema para a elaboração do artigo, “Criando Espectadores Emancipados” iniciei a investigação clarificando a noção do conceito de espectador ao longo dos tempos, para melhor situar minha pesquisa e refletir sobre essa figura de tamanha importância, porém, muitas vezes colocado em segundo plano no domínio teatral, quando sabemos que a máxima “Não há teatro sem espectadores” é uma verdade incontestável, e por isso, o espectador é uma figura tão importante quanto o ator.  

Com efeito, o “espectador” significa objetivamente, aquele que assiste, presencia ou observa um espetáculo, ou seja, uma testemunha, um observador que aprecia voluntariamente um acontecimento. Usualmente utiliza-se o termo para denominar aqueles que apreciam as artes cênicas, a música, o desporto, a televisão, o cinema e os espaços arquitetônicos.

Tradicionalmente o conceito de "espectador" determina um ato ou um sujeito passivo, uma vez que, não interage com o que está assistindo. Entretanto, como afirmou Peter Greenaway a invenção do controle remoto fez com que a passividade de quem assiste a um espetáculo diminuísse, o espectador de televisão passou a ter a possibilidade de interagir, selecionando o que deseja assistir.  A chegada e a popularização da internet, também  eliminou em certa medida o conceito de passividade do espectador, tornando possível novas formas de interação. O espectador passou a poder selecionar o que quer assistir, quando e onde.

A interatividade da internet foi responsável por uma busca em novas formas de linguagem para as chamadas "mídias passivas", que começaram a perder audiência. Com a necessidade de interação, os produtores de televisão e de outras mídias começaram a adicionar elementos interativos para evitar perder espectadores.

Atualmente existe uma mescla das mídias mais antigas com internet, telefone, celular e outros aparelhos de comunicação móvel, integrando essas diversas mídias, procurando aumentar ainda mais a interatividade.

Contudo, a nossa investigação extravasa em certa medida as definições simplistas de espectador, uma vez que, além da mera interatividade, possibilitada pelas novas tecnologias de informação e comunicação, quero trazer à tona a contribuição de vários pensadores, que exerceram e continuam exercendo muitas influências na nossa forma de pensar e analisar as coisas e os acontecimentos culturais, e sintetizar suas ideias como contribuição para a formação de novas opiniões sobre e relação do espectador/espetáculo e da contribuição para a formação de novos espectadores ativos, críticos e reflexíveis, com um poder cada vez mais aprimorado nas escolhas.

Minha pesquisa centrará em primeiro lugar na análise de algumas posições filosóficas sobre o espectador, onde enfatizarei as contribuições de Pitágoras, Platão, Lucrécio e Sócrates, depois farei uma análise sintética sobre a visão moderna do teatro e do espectador; a encenação e o espectador na cena contemporânea; o espectador e o teatro contemporâneo e antes da conclusão analisarei o ponto fulcral do artigo, que é: criando espectadores emancipados, apoiando nas ideias difundidas por Rancière nas obras O Espectador Emancipado e o Mestre Ignorante.

Creio que analisando esses aspetos acima referidos terei conseguido alcançar meus objetivos e trazido a minha contribuição para a desmistificação e o enaltecimento da importância da figura do espectador como sujeito ativo, reflexivo, crítico e participativo dentro da cena teatral.       

 

 

 

 

 

 

ALGUMAS POSIÇÕES FILOSÓFICAS SOBRE O ESPETADOR:

Pitágoras, Platão, Lucrécio e Sócrates.

 

Para iniciar a nossa investigação partimos da figura do “homem/espectador” como espectador desinteressado presente na filosofia tradicional. Essa visão tradicional ocupa uma posição importante, pois, nos ajuda a clarificar a visão moderna sobre a questão do “espectador emancipado” presente na obra de Jacques Rancière, que é objeto da nossa investigação para a elaboração do nosso artigo.

Achei interessante investigar algumas dessas posições filosóficas antigas em torno desse tema para fundamentar melhor a visão ranceriana do espectador emancipado.

 “A vida é... como um festival, assim como alguns vêm ao festival para competir, e alguns para exercer os seus negócios, mas os melhores vêm como espectadores, assim também na vida os homens servis saem à caça da fama ou do lucro, e os filósofos à caça da verdade” ARENDET. A vida do espírito, o pensar, o querer, o julgar, pág. 72.

Neste fragmento de parábola atribuída a Pitágoras[5], tem-se a definição básica do espectador, com sua localização e função. O espectador pitagórico, é aquele que se posiciona fora da competição e observa o espetáculo que é apresentado, podendo, assim, captar todo o jogo e compreender seu significado, o que não é possibilitado ao ator. Esse afastamento é a condição necessária para o juízo, visto que o espectador pitagórico não se interessa pela fama ou pelo lucro. Nesse sentido, há um prazer desinteressado e imparcial, mas que depende dos outros espectadores, que também “comparecem ao festival”.

O espectador pitagórico aprecia o espetáculo e permanece ligado ao mundo das aparências. Na parábola pitagórica, se os atores buscam fama ou lucro, os espectadores buscam a verdade.  A distinção entre verdade e significado indica que, se os filósofos se posicionam como espectadores, conforme analogia efetuada pela parábola, não deveriam esperar, como decorrência disso, a aquisição da verdade, do Bem, mas a apreensão do significado, do “todo”.

O juízo do espectador pitagórico é movido por um prazer desinteressado, não são mais aceitos pela tradição filosófica. A opinião é associada à multidão. O que prevalece, para a tradição, são as verdades dita imutável, que orientam a conduta humana.

Há alguma dificuldade em definir o espectador platônico à semelhança do espectador pitagórico, apesar de “espantar-se” e “olhar para”, tenham a mesma raiz da palavra “espectador”. Baseado nos textos de Platão[6], o espectador  é,  por definição, um “estrangeiro”. Isso está expresso no final do mito da caverna.

O posicionamento do espectador platônico como um estrangeiro, privilegia a “vida contemplativa”, em detrimento da vida ativa, uma vez que, a contemplação empreendida pelo espectador platônico permite-lhe afastar-se do mundo das aparências, onde tudo é contingente, e dedicar-se àquilo que possui eternidade, em que a verdade apresenta caráter imperioso, coercivo e necessário.

Já Lucrécio[7] descreve a posição do espectador/filósofo da seguinte forma: “que prazer, quando, sobre o mar aberto, os ventos revolvem as águas, contemplar da costa o penoso trabalho de outrem! Não porque as aflições de alguém sejam em si mesmas fontes de prazer; mas considerar que estás livre de tais males sem dúvida é um prazer”.

Nesse contexto, desaparece a posição privilegiada do espectador grego, como aquele que tem acesso às verdades imutáveis. O espectador descrito por Lucrécio se apresenta como alguém que observa por curiosidade, a partir de um “porto seguro”. Não precisaria nem ter visto o naufrágio, pois o mais importante é a segurança advinda desse isolamento em relação ao mundo. Em vez do (espanto platônico), o espectador/filósofo adotará a atitude contrária, o de não surpreender-se com nada e nada admirar. A filosofia romana desfere, pois, o último golpe no conceito de espectador (originariamente pitagórico). De acordo com Arendt, “o que se perdeu não foi apenas o privilégio que o espectador tinha de julgar o contraste entre pensar e fazer, mas a percepção ainda mais fundamental de que tudo aquilo que aparece está lá para ser visto...”.

O objetivo do espectador/filósofo é colocar-se em segurança, e acaba por promover uma suspensão da realidade. Se no espectador platônico não há mais a concepção de juízo, devido ao isolamento e à busca de verdades imutáveis, no espectador romano não há mais a necessidade de preocupar-se em “olhar para”, colocando-se como espectador, porque “o espírito carregou para dentro de si as aparências”. 

Mas esse afastamento adotado pelo filósofo romano sofreu alterações, com o decorrer do tempo. Refugiar-se em si mesmo, “porto seguro”, contra os males, transformou-se, na modernidade, em desconfiança em relação ao mundo: o homem evita  os outros,  evita  o “espaço público”. Mais do que isso, a desconfiança do homem volta-se para ele próprio, para os seus sentidos que não seriam aptos a captar a realidade.

Sócrates é considerado como exemplo de pensador não profissional, por ter conseguido ficar “à vontade nas duas esferas [do pensar e do agir], do mesmo modo como nós avançamos e recuamos entre o mundo das aparências e a necessidade de refletir sobre ele”. Isso implica que,  ao  contrário  do  que  a  tradição  filosófica  quer  reafirmar,  a apreensão da verdade não se faz no mundo em repouso. É necessário compreender o mundo em que se vive, marcado pelo movimento, ao mesmo tempo em que o eu torna-se vigilante quanto aos próprios pensamentos.

Concluindo, percebe-se que a figura do espectador presente na filosofia tradicional em geral, implica o afastamento do espetáculo para poder contemplar todos os detalhes, implica numa retirada do agir, mas não implica uma quietude própria à atividade do pensamento.

 Em Pitágoras o espectador observa o espetáculo que é apresentado, há um prazer desinteressado e imparcial; em Platão a ênfase é no espectador/filósofo que se retira para o mundo das ideias, e se afasta da multidão; em Lucrécio as qualidades do espectador nem são mencionadas, porque o que está em questão é a segurança do filósofo. É a partir da constatação de uma pluralidade socrática, interna, que se recupera o conceito e a função do espectador, dentro da filosofia política.

 

 

UMA VISÃO MODERNA DO TEATRO E DO ESPETADOR

 

Uma das características do teatro moderno e mais concretamente do espectador é a pretensa inversão da concepção entre espectador tradicional como sujeito passivo para espectador como sujeito ativo, crítico e reflexivo, ou seja, a inversão entre a contemplação passiva e a ação, que mudou de forma definitiva a visão do universo em geral e das suas particularidades, principalmente no que tange às artes cênicas em geral, o teatro, performance, a dança a música...

Existem vários eventos que caracterizam o surgimento da modernidade, como por exemplo, a expansão marítima, a reforma, a invenção do telescópio entre outros descobrimentos que fizeram com que os segredos do universo fossem revelados à cognição humana. Nessa inversão entre contemplação e ação, a primeira perde sua superioridade em relação à segunda. É importante destacar que a verdade buscada através da contemplação efetuada pelo espectador tradicional, não é aceita pela modernidade.

De certa forma, a figura do espectador, está intrinsecamente associada à do filósofo que herdamos da tradição filosófica, porém, a decadência dessa figura, na tradição filosófica, está relacionada com a ascensão da figura do ator, na modernidade, então, a contemplação, típica da antiguidade, é substituída pela ação na modernidade.

Para melhor representar a vida e as experiências propostas para o espectador, o teatro moderno, que surgiu na virada do século XIX para o XX, sofreu várias mudanças a fim de manter um diálogo com a sociedade. A vida social contemporânea é marcada por várias transformações.  A expansão dos meios de comunicação em massa, à multiplicação de eventos culturais, a criação de diferentes canais de aproximação, provocam no indivíduo contemporâneo estímulos diversos. Estimulam raciocínios, estabelecem alterações nos valores éticos e estéticos requisitando assim novas maneiras de perceber e compreender as manifestações culturais, para que se estabeleça um diálogo profícuo com os espectadores.

 A arte moderna em geral imbuída no espírito de participação em todas as instâncias culturais pretende provocar o espectador, propondo-lhe que com senso crítico e reflexivo organize interpretações autônomas sobre ela. Por isso, a arte contemporânea vai levar ao extremo a posição do espectador, sendo que este não deve apenas dar sua interpretação à obra, como também, participar da mesma. A obra é aberta para que o espectador elabore outras montagens possíveis como no teatro épico brechtiano, em que a interdependência dos elementos e a desconstrução da cena se tornam um bom exemplo da participação do espectador num mundo passível de transformação, em que este pode construir a obra teatral de outras maneiras para além da proposta.

A ideia de abertura da obra vai além, onde a realidade não se mostra mais desconstruída e transformável, mas sim uma realidade a ser concebida. Não existe mais uma obra, mas possíveis obras a serem construídas pelo espectador. A arte teatral na contemporânea propõe uma atitude analítica ao espectador, não busca construir um consenso acerca da leitura do espetáculo, mas sim que o espectador contemple e analise a obra a partir de seu ponto de vista como um processo inconcluso que suscita uma ação artística na formulação de elementos de significação inexistentes e análises pessoais a cerca do discurso cênico, e juntar-se aos artistas na construção da obra e sua leitura. É a posição dialógica com participação do espectador enquanto co-autor da obra que determina o caráter estético, reflexivo e educacional da experiência artística.

Sendo assim, umas das características do teatro moderno é o fato de incentivar o espectador a uma participação no espetáculo através das  questões apresentadas pelo autor, com isso, pretende-se ir além, quando se faz com que o espectador formule uma concepção própria para o evento artístico, participando ao acrescentando novas interpretações.

O teatro que procura uma reflexão por parte do espectador tem que estar em consonância com as alterações no modo de vida contemporâneo, a fim de estabelecer um diálogo profícuo com este indivíduo contemporâneo, estando imerso numa overdose de informação se encontra sedado; o teatro serviria para despertar, tendo que provocar este indivíduo a elaborar leituras próprias e estimulando a capacidade inventiva propiciaria a imaginação.

Após uma reflexão sobre teatro e do espectador na contemporaneidade, posso concluir que o teatro tem um importante papel na proposição de que o sujeito dos dias atuais saia da sua passividade, ou seja, de mero observador passivo do mundo que contempla para tornar-se um ser ativo, crítico e reflexivo na realização da obra artística e na sociedade. 

 

 

 

 

A encenação e o espectador na cena contemporânea

Na contemporaneidade, existe claramente uma relação estreita entre a encenação e o espectador, tendo em conta que, muitos espetáculos buscam atingir o espectador não apenas pelo discurso, mas pelo caráter sensorial, se aproximando fisicamente do espectador para atingi-lo em suas sensações e proporciona-lo momentos de participação efetiva no espetáculo.

O teatro e a encenação contemporânea rejeitam não somente as características do teatro tradicional, mas também, de modo geral, a racionalidade da sociedade ocidental, propondo as bases para um novo teatro e para uma nova maneira de apreensão do mundo. Algumas propostas do Teatro da Crueldade surgem nos escritos de Artaud já na década de 1920. O termo "crueldade" se refere aos meios pelos quais o teatro pode abalar as certezas sobre as quais está assentado o mundo ocidental.

Artaud propôs um novo conceito de espaço cênico, em que ator e espectador se aproximariam fisicamente, sem qualquer tipo de barreiras que pudesse impedir os diálogos concretos, reais entre ambos. Essa aproximação visa ativar as percepções no espectador que, por sua vez, se torna testemunha viva da ação, e não mero espectador alheio ao drama, assim, a construção cênica se dá através de um diálogo constante entre a encenação e o público objetivando concretizar a participação do espectador como um colaborador do processo de criação, centrado na experiência corpórea dos atores e, por conseguinte, também do espectador; o fim da divisão entre palco e plateia, com a encenação ocupando todo o espaço; um espaço teatral não tradicional (espaços adaptados, galpões, igrejas, hospitais ou quaisquer outros lugares que a encenação demande); e, sobretudo, o teatro visto como experiência ritualística, destinada à cura das angústias e à reintegração do homem à sua totalidade física e espiritual.

Artaud propôs ainda o estreitamento no encontro entre encenação e público, objetivando novas estruturas, como descreve: “A ideia de uma peça feita inteiramente da cena impõe a descoberta de uma linguagem ativa, ativa e anárquica, em que sejam abandonadas as delimitações habituais entre sentimentos e palavras” (ARTAUD, 1999, 40). Desta forma, o teatro estabelece a linguagem ativa, de crítica e descoberta, libertando-se das convenções tradicionalistas vigentes, que reduzem a importância do público, pois o transforma apenas em observador, excluso da ação, não refletindo sobre a obra apresentada. Contrário à atitude passiva, Artaud buscou tirar o espectador do repouso uma vez que uma das funções do teatro é promover o encontro entre o ator e o público.

Estas características da cena contemporânea aproximam o espetáculo teatral da performance, pois, ela é tida como ação real, se opondo ao domínio das ações ditas fingidas, colocando a encenação a disposição para estabelecer relações diretas com o público.

A modificação estrutural estimula o espectador transformando-o em agente da ação, eliminando a barreira imposta pelo jogo ilusionista, que separa a peça teatral dentro de uma caixa cênica. Entre os elementos teatrais mais combatidos estão à visão do espectador como sujeito passivo e apático, o teatro como entretenimento; a caracterização psicológica dos personagens a valorização exagerada do enredo e o predomínio da dramaturgia em relação à encenação.

E encenação contemporânea privilegia a relação do espectador e o espetáculo, dando a devida importância e relevância ao papel que o espectador ocupa na cena teatral e na construção de um espetáculo. As ideias de Artaud sustentam a mudança de atitude por parte do espectador e procura levar para o teatro o caráter das experiências carregadas de fisicalidade pertencentes a culturas não atreladas à civilidade europeia.

 

 

 

 


 

O espectador e o teatro contemporâneo 

 Numa sociedade baseada na contemplação passiva em que o indivíduo encontra-se bombardeado por uma avalanche de recursos tecnológicos, sons, imagens e informações, é preciso refletir, sobre como se efetiva a proposta do teatro contemporânea para o espectador.  

A relação entre o espectador e o teatro contemporâneo está ligada com a maneira de ver, sentir e pensar o mundo. Desta forma, para refletir sobre o papel do espectador no teatro contemporâneo, é importante refletir sobre alguns aspectos da sociedade atual e diferentes modos de participação do espectador ao longo da história do teatro.

No drama, o espectador era convidado a se identificar com o protagonista e embarcar no fluxo de uma ação dramática contínua, de acontecimentos encadeados entre si, como se observasse aqueles momentos através de um buraco de fechadura. A encenação contribuía para que estes efeitos se processassem, buscando manter ao máximo a ilusão de realidade daquele universo representado no palco.

Estas opções se relacionam a valorização dos interesses privados e diante da necessidade de tratar de questões sociais, coletivas, esta forma dramática fechada começa a entrar em crise. Os novos assuntos exigem uma nova forma e, assim, surge a necessidade de extrapolar o diálogo e interromper a ação dramática, incluindo elementos épicos nos textos e na encenação.

Tais recursos cênicos propõem um movimento de aproximação do espectador em relação à ação dramática, ao romper com o efeito ilusionista do teatro. A intenção é que o espectador não perca a consciência de si e da realidade social enquanto assiste à cena e realize constantemente a reflexão crítica sobre a atitude das personagens.  

Sendo assim, o espectador não pergunta “o que isto quer dizer?”, mas sim “o que está acontecendo comigo?”, o que lhe solicita disponibilidade para participar de um jogo que se apresenta de modo inesperado e sem uma sequencia estabelecida, porque se propõe como experiência, e, enquanto tal, só se efetiva plenamente se o próprio espectador se dispuser a constituí-lo enquanto joga.

Esta reflexão sobre o espectador contemporâneo parece fundamental para compreender o lugar que o teatro ocupa na sociedade atual. Se a questão “O teatro é necessário?”, Parece uma pergunta boba, mas o teatro é uma maneira do homem se expressar e revela muito de sua cultura. O teatro traz vida a história de todo um povo.

Para tanto, Denis Guénoun acompanha, ao longo da história do teatro, a formação e as modificações do conceito de identificação com o personagem. Na Antiguidade, a mimese não supunha a identificação. Essa identificação se esboça a partir da releitura renascentista da Poética de Aristóteles e encontra seu ápice no naturalismo do fim do século XIX. Diderot, Stanislávski e Brecht são tomados como marcos na discussão sobre a ilusão no teatro, redirecionada com o surgimento do cinema que, ao se apoderar do imaginário do espectador, satisfazendo o seu desejo de identificação, torna ainda mais evidente a vocação do teatro para o jogo, para o fazer compartilhado entre atores e espectadores.

As análises mais críticas sobre a relação entre a televisão, o cinema e a sociedade colocam em evidência a contemplação passiva e isolada a que conduzem os meios eletrônicos. O espectador está sempre condenado a olhar o que fazem os outros, sem ter nenhum poder sobre a própria vida. O que caracteriza a televisão e o cinema é o olhar imóvel, a contemplação inerte: é isto que caracteriza a televisão e faz dela a expressão de uma sociedade na qual tudo é espetáculo, como disse Debord (...) “Mas esta contemplação não é fruto de uma preguiça ontológica, mas o resultado de uma ordem social que vive graças à passividade.”

 

 

 

 

CRIANDO ESPETADORES EMAMCIPADOS

Para iniciar essa caminhada, torna-se necessário relembrar a metáfora do Mito da Caverna de Platão que, pode ser relacionado com o surgimento do Teatro. Esse surgimento foi devido à reunião de grupos de pessoas em uma pedreira, que se reuniram nas proximidades de uma fogueira para se aquecer do frio. A fogueira fazia refletir a imagem das pessoas na parede, o que levou um rapaz a se levantar e fazer gestos engraçados que se refletiam em sombras. Um texto improvisado acompanhava as imagens, trazendo a ideia de personagens fracos, fortes, oprimidos, opressores e até de Deus e do diabo. Nesse tipo de teatro as pessoas eram atores e espectadores com uma única função, fazer passar o tempo vendo a fazendo figuras engraçadas, mas sem nenhum interesse artístico.

O pressuposto que afirma que “Quem vê não sabe ver”, é uma máxima atemporal. Isso pode ser verificada empiricamente ainda numa franja significativa da sociedade e das suas vivências no próprio cotidiano, movidos pela ignorância deixam ser levados pela aparência, pela superficialidade, por uma cultura hedonista baseada numa sociedade de consumo, onde tudo é passageiro e nós somos meros espectadores passivos e satisfeitos com o que nos é oferecido e aplaudimos. Com efeito, a crise social, artística, política e intelectual na sociedade contemporânea, faz com que as pessoas prefiram a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser. A realidade não passa de ilusão, pois a verdade está no ilusório. Ou seja, à medida que decresce a verdade a ilusão aumenta e as pessoas cada vez mais ignorantes e embrutecidas.

Segundo Rancière, a emancipação do espectador começa quando se põe em causa a oposição entre o olhar e o agir, quando se compreende que olhar é já uma ação, a ação de observar, selecionar, comparar, traduzir e interpretar, de criar uma ideia original daquilo que se observa.

Num excerto de uma entrevista de Jacques Rancière, à revista CULT[8], sobre sua obra “O Espectador Emancipado” quando questionado porque não fala de TV, ele afirma: “Eu tentei reinterpretar a relação das pessoas com o espetáculo sem me interessar tanto pela questão das mídias”. Mas me centrei mais na ideia, tão comum, de que “agora não há nada mais além da TV… não há mais arte, não há mais cultura, não há mais literatura, nada”. Há casos em que o espectador está na frente da TV mudando de canal sem prestar atenção ao que está vendo. Eu me preocupei mais com o cinema, as artes plásticas, nos quais uma relação forte do olhar está pressuposta. A TV, de modo geral, não pressupõe um olhar forte, mas um olhar alienado ou distraído. No espetáculo, o espectador de teatro é levado a trabalhar, porque aquilo que ele tem à sua frente o obriga a um trabalho de síntese. É preciso sair de uma peça, de uma exposição ou do cinema com certa ideia na cabeça, o que não necessariamente é o caso da televisão, em que as coisas podem simplesmente passar. Já um lugar onde os espectadores se encontram, para as artes performáticas, por exemplo, implica um recorte fechado no tempo. Não é uma questão de suporte, mas do tipo de atitude e de atenção criadas. Podemos nos colocar na frente de um filme de TV com a postura de quem está no cinema. Nesse momento, nós agimos como o espectador de cinema.”

Analisando o conceito de espectador, Rancière propõe uma analogia com o professor e o aluno. Então, esta concepção pode ser comparada com o paradigma antigo do “mestre sábio” e da “desigualdade das inteligências”. A emancipação intelectual do aluno consiste na assunção da igualdade das inteligências e na supressão do modelo em que o detentor do saber o transmite ao ignorante através da lição. Então o conceito de “espectador emancipado” é acima de tudo, a capacidade intelectual individual de cada um, em vencer a ignorância que resulta das transmissões apáticas de informações, e por outro lado, a aquisição de uma capacidade seletiva no que tange ao que nos é oferecido de bom e de ruim, tanto nos meios de comunicação de massa e nas manifestações ditas culturais de forma crítica. Por isso, Rancière tece uma análise sobre o papel do Teatro e o que ele pode significar nessa transformação intelectual e usa como exemplo da igualdade das inteligências.

Ele vê o espectador como um sujeito de conhecimento que constrói o sua própria opinião a partir do que já traz consigo, o que o conduzirá a um saber distinto do que tinha antes. Assim, ele progride comparando o que descobre com aquilo que já sabe e não é despojado da capacidade, que tem, de apreender aquilo que ignorava.

Rancière critica essa sociedade de espetáculos e de espectadores embrutecidos, essa sociedade que consiste em ingerir tudo o que existe na atividade humana em estado fluido para depois vomitá-lo em estado coagulado, esse mundo da mercadoria dominando por tudo o que é vivido, diante de seu produto global, mostrando que é possível a emancipação intelectual dos expectadores. Para ele, cada um deve estar em seu lugar, e os revolucionários devem arrancar os dominados das ilusões que os mantêm cegos e presos às armadilhas da ilusão.

Ao contrário do pressuposto expresso de forma alegórica do Mito da caverna, de que “Quem vê não sabe ver”, o que espelha em parte a sociedade contemporânea, para Rancière, a emancipação do espectador é a afirmação de sua capacidade de ver o que vê e de saber o que pensar e fazer a respeito. Para isso, torna-se evidente para Rancière que é preciso refletir sobre a questão da emancipação do espectador nos dias de hoje, colocando-o no cerne das discussões entre arte e política. Nesse caso, seria preciso delinear um modelo global de racionalidade, tendo como pano de fundo o espetáculo teatral, expressão que engloba a ação dramática, dança, performance, mímica e outros.

Os debates e polêmicas que têm levantado a questão sobre o teatro ao longo da história podem ter suas origens em uma contradição muito simples, chamado de “paradoxo do espectador”. Um paradoxo que pode se provar mais crucial do que o paradoxo do ator e que pode ser formulado da seguinte forma: Não há teatro sem espectador, e eu acrescento que, não há espectador sem expectativa, mesmo que seja espectador único e oculto.

Muitos poderão questionar o que venha a ser um espectador? A resposta é o mais simples possível: Ser um espectador significa olhar para um espetáculo. Contudo, se limitarmos somente a olhar, o que nos é oferecido, sem antes questionarmos e refletirmos sobre esse ato, esse olhar torna-se uma coisa ruim, por duas razões: primeiro, o olhar significa estar diante de uma aparência sem conhecer as condições que produziram aquela aparência ou a realidade que está por trás dela, enquanto que o conhecer, implica uma ação consciente ou a adaptação em relação a alguma coisa adquirida a partir de uma análise racional das percepções desta.  Sendo assim o olhar é o contrário do conhecer; segundo, o olhar é considerado o oposto de agir, porque o espectador que olha permanece imóvel na sua cadeira, sem qualquer poder de intervenção. Ser um espectador significa ser passivo, tendo em conta que, está separado da capacidade de conhecer, assim e da possibilidade de agir, uma vez que a ação implica o conhecimento a priori e de um julgamento a posteriori.

Assim, analisando o paradoxo do espectador “não existe teatro sem espectadores” é verossímil apontar duas conclusões opostas: 1)a primeira é aquele com que deparamos quase sempre, ou seja, o teatro como um palco da ilusão, onde espectadores ficam abismados e iludidos com o que veem, ou seja, é um espectador impotente.  Neste caso concordamos com Platão, que afirmou que “o teatro é um lugar onde “ignorantes” são convidados a ver sofredores”; 2) em segundo lugar, o espectador seria oposto ao atuar imóvel na sua cadeira, é um espectador que deve provocar e questionar o tempo todo. Olhar de fora para dentro, a entender o dentro. Sair da zona de conforto, provocar, escutar, compreender e duvidar de tudo o que vê. O espectador deve sair da posição de observador e examinador passivo, deve ser desapossado do controle ilusório do que vê representado. É preciso neste caso arrancar o espectador do embrutecimento, do fascínio pela aparência, mostrando-o um espetáculo estranho e inabitual. Torna-se necessário que o espectador saia da sua zona de conforto e trocar de posição de espectador passivo, para espectador ativo, inquiridor e experimentador que observa os fenômenos e procura as causas.

Essas duas conclusões nos remete para as duas iniciativas modernas de tentativas de reforma do teatro, que oscilam entre dois pólos opostos, no que tange a participação do espectador. O teatro épico de Brecht, poeta e dramaturgo alemão (1898-1956), e o teatro da crueldade de Antonin Artaud (1896 - 1948), ator, diretor, poeta e teórico francês. Para o primeiro, o espectador deve ganhar distância enquanto para o segundo, o espectador deve perder toda e qualquer distância. Para Brecht, um dos pressupostos é o efeito didático que procura um distanciamento do espectador. Sua proposta se opõe ao teatro clássico e tradicional um teatro  que em vez de suscitar emoções e sentimentos desperta uma atitude crítica.

Para Brecht, é preciso arrancar o espectador do fascinado pela aparência, da sua situação passiva e forçá-lo a avaliar o que lhe é dado no espetáculo, de maneira a que tome uma posição crítica. O espectador deve abdicar da adesão empática ao espetáculo e ganhar distância. O povo deve tomar consciência da sua situação e discutir os seus interesses, o teatro pode conduzir o espectador a um conhecimento crítico da sua situação, deve desencadear o desejo de agir, de transformar, em vez de ficar impávido rendido aos sentimentos que a forma dramática lhe despertava.       

 Para Artaud, o teatro da crueldade também rejeita as características do teatro tradicional, e a racionalidade da sociedade ocidental, propondo as bases para um novo teatro e para uma nova forma de apreensão do mundo. Ao contrário de Brecht, ele defende que, o espectador nunca perde a condição de observador e deve ser mesmo arrastado para dentro do espaço mágico teatral, abdicando da posição de mero sujeito do olhar, deve misturar-se, deixar-se invadir pela energia vital do teatro e, portanto, deve “perder toda a sua distância”. Em vez de estarem perante um espetáculo, são envolvidos nele, levados para o centro da performance, reforçando a energia coletiva que só o teatro pode avivar. O teatro surge então como uma forma de “ritual purificador no qual uma coletividade é posta na plena posse das energias que lhe são próprias”.

Essas duas propostas, a nosso ver, não resolveram o problema inicial, que embora tenham tentado transformar o teatro, continuaram a ver o espectador como alguém que deve ser arrancado da sua passividade e ignorância, em que sua condição de observador passivo deve ser suprimida.

A nosso ver, o espectador também deve agir, tal como o aluno, que observa, seleciona, compara, interpreta e relaciona o que vê com muitas outras coisas que viu em outras cenas, em outros lugares. Então, precisamos de um novo teatro, um teatro sem a condição do espectador passivo e contemplador, uma vez que, “quanto mais se contempla, menos ele é”. Precisamos de um teatro onde os espectadores deixem esta condição, onde vão aprender coisas em vez de ser capturados por imagens ilusórias, onde terão a oportunidade de se tornarem participantes ativos, participativos, reflexivos e críticos de uma ação coletiva em vez de continuarem como mero observadores.

Para que isso aconteça é preciso que o espectador seja libertado da mera observação e da fascinação do espetáculo, ele deve ser impelido a abandonar o papel de observador passivo e assumir o papel ativo e crítico e reflexivo, por forma a realizar a experiência de possuir as verdadeiras energias vitais do teatro.

 Por outro lado, o espectador deve abster-se do papel de mero observador que permanece parado e impassível diante de um espetáculo distante. Ele deve ser arrancado de seu domínio delirante, trazido para o poder mágico da ação teatral, onde trocará o privilégio de fazer às vezes de observador racional pela experiência de possuir as verdadeiras energias vitais do teatro.

Os dramaturgos de hoje em dia não querem explicar à sua plateia a verdade a e os melhores meios para acabar com a dominação, uma vez que a perda das ilusões muitas vezes leva o dramaturgo e os atores a aumentar a pressão sobre o espectador: talvez ele venha, a saber, o que deve ser feito, se o espectador destacar da sua atitude passiva e se tornar um participante ativo no mundo público.

Sintetizando estas duas atitudes paradigmáticas, a do teatro épico de Brecht e a do teatro da crueldade de Artaud, chegam-se as seguintes conclusões: O projeto de reformar o teatro oscilou incessantemente entre estes dois polos de questionamento, por um lado, o espectador deve ficar mais distante, por outro, deve perder toda distância. Por um lado, deve mudar o seu modo de ver para ver de um modo melhor; por outro, deve abandonar a própria posição de observador, para passar a ser um sujeito ativo, crítico e reflexivo.

 

CONCLUSÃO

Como referi no inicio do artigo, reitero novamente que, o objetivo último da investigação não era coletar e nem forjar receitas e/ou soluções que visavam resolver de forma definitiva a visão tradicionalista e distorcida que se tem do espectador, como um sujeito passivo e alienado, mas sim, refletir no sentido de poder começar a falar hoje, e sem reservas que, nós todos devemos em certa medida ser mais do que meros espectadores, que simplesmente consomem passivamente o que lhes são oferecidos. É preciso que cada um de nós espectador dê um salto qualitativo e ultrapasse essa passividade e alienação secular e se transforme em um espectador mais interventivo, reflexivo e crítico na construção de uma sociedade artística plural, culturalmente mais evoluída, mais justa, onde a contribuição de cada um é indispensável para na formação intelectual e valorização das capacidades e competências individuais de cada indivíduo, na cena cultural de um povo.

Contrariamente a ideia de Sigmund Freud (1997) de que o poder do teatro sobre o espectador é o mesmo que o poder do brinquedo sobre a criança, e que permite a identificação segura do ego em múltiplas relações, hoje, certamente, o espectador não se deixa contaminar por essa visão ilusória de um espetáculo alienante e embrutecedor. Todos os agentes teatrais estão motivados em construir espetáculos na esperança que os espectadores sejam capazes de transcender aquilo que assistem, e de formular suas próprias opiniões e não se deixarem contaminar pela ilusão e pelo distanciamento entre o ator e o espectador, uma vez que, ambos estão conscientes do papel de cada um na construção do espetáculo.

 Existe uma relação dialógica entre o ator e o espectador, onde não se pode estabelecer uma relação hierárquica de superioridade e inferioridade, uma vez que, a existência de um não implica a desvalorização da outra, mas sim, uma parceria que transcende, tanto os que representam, bem como, os que assistem, não existindo barreiras objetivamente definidas, quando essa relação é fecunda, e a participação ativa do espectador é um imperativo, consciente e motivado pela abertura e pela possibilidade de poder acrescentar algo mais ao espetáculo.  

Acredito que não existem valores absolutos na concepção estética e política na recepção de uma peça teatral. Contudo, se não se pode aceitar absurdos na recepção de uma peça teatral, por outro lado, não se pode descrever os limites racionais e sensoriais, até onde a percepção e a reflexão do homem pode ir, uma vez que a subjetividade de cada um está relacionada com o seu grau de emancipação intelectual.   

Assim, recusando a lógica do embrutecimento, da redução do espectador a um ser passivo e embrutecido, supera-se a tensão que caracteriza a relação do teatro com o seu público. Entenda-se que, uma comunidade artística emancipada é uma comunidade em que todos são indivíduos ativos na construção do significado artístico e estético do espetáculo.

Reitera-se que, a reflexão de Rancière é muito importante para o debate contemporâneo, pois permite questionar o lugar do espectador e o que significa o olhar para o espetáculo, estando ao mesmo tempo a questionar a própria essência do teatro e a compreensão desse estatuto singular no seio da arte. Esta pretensão de emancipação afirma, assim, o poder detido pelo espectador, de traduzir à sua maneira o que vê e percebe. É o espectador-indivíduo que está em causa, é o homem concreto, que faz a sua interpretação do espetáculo e só retém o significado que ele próprio lhe dá de forma autônoma desprovido de qualquer tipo de alienação.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

RANCIÈRE, Jacques – O Espectador Emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.

RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 

MARINIS, Marco de. Em busca del aCtor y del espectador: Comprender el teatro II. Buenos Aires: Editorial Galerna, 2005.

Web Grafia

Artigos disponíveis nos seguintes endereços na internet, consultados em maio de 2013.

 

O TEATRO E O ESPECTADOR NA CONTEMPORANEIDADE: da fragmentação à totalidade. Disponível no seguinte endereço na Internet: http://ciadeteatrohedonicos.blogspot.com.br/2010/08/o-teatro-e-o-espectador-na.html

RECENSÃO CRÍTICA DE "O ESPECTADOR EMANCIPADO" Disponível no seguinte endereço na Internet: http://acomuna.net/index.php/contra-corrente/4391-recensao-critica-de-qo-espectador-emancipadoq

O ESPECTADOR EMANCIPADO. Disponível no seguinte endereço na Internet:   http://antropofagia-interculturalismo.blogspot.com.br/2010/03/o-espectador-emancipado-artigo-de_12.html

ENTREVISTA – JACQUES RANCIÈRE. Revista Cult. Tags: Entrevista A associação entre arte e política segundo o filósofo Jacques Rancière. Disponível no seguinte endereço na Internet: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-jacques-ranciere/

 

 



[1]  Licenciado em Filosofia Pela (UNICV) Universidade Pública de Cabo Verde, 2006/2011.

Aluno extraordinário do Curso de Pós Graduação em Filosofia, na PUC “Pontifícia Universidade

Católica do Rio de Janeiro”.

 [2] Reflete sobre a recepção da arte e a importância ética e política da posição do espectador;

[3] Faz importantes reflexões sobre a emancipação intelectual dos indivíduos

[4]  Jacques Rancière (JR) é filósofo e professor emérito na Universidade de Paris VIII, é autor de várias obras como o Mestre Ignorante, O Destino das Imagens e O Espectador Emancipado.

 [5]  Pitágoras de Samos foi um filósofo e matemático grego que nasceu em Samos entre  571 a.C. e 570 a.C. e morreu em Metaponto entre cerca de 497 a.C. ou 496 a.C. A sua biografia está envolta em lendas.

 [6] Platão foi filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga, autor de diversos diálogos filosóficos e fundador da Academia em Atenas, a primeira instituição de educação superior do mundo ocidental.

[7] Tito Lucrécio Caro foi poeta e filósofo latino que viveu no século I a.C.. Nasceu ca. 99 a.C. e viveu 44 anos.

[8] “http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevista-jacques-ranciere”

 

> Lattes:http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4300114T0

> Site: http://arlindorocha.wix.com/teatro

> Blog: http://blaisepascalogenio.blogspot.com.br/