Criança e Escola. Uma Construção Histórica.

 

                A infância é hoje um período bem definido, tanto cientifica, cultural e socialmente. Geralmente sabe-se o que uma criança pode e tem capacidade de fazer. Dentro dos costumes da sociedade contemporânea alguém que não reconhecesse ou mesmo não respeitasse esses direitos e deveres tão simples e “naturais”, com certeza se encaixaria dentro de padrões inaceitáveis a vida social (sanatório ou cadeia). Importantes órgãos internacionalmente respeitados reconhecem os direitos da criança, teoricamente, de forma quase homogênea.

                A infância é a idade do aprender. É o período em que o ser humano mais adquire conhecimento. A psicanálise aponta a infância como a fase em que o ser-humano mais receberá marcas indeléveis que carregará por toda a vida, consciente ou inconscientemente, no entanto, a “descoberta” da infância é algo recente. O modo e os cuidados que dispensamos as crianças nem sempre foram assim. Isso é na verdade o resultado de um longo processo pelo qual atravessaram as civilizações ocidentais. A arte europeia do século XII simplesmente não reconhece a infância, não a retrata em sua arte. A infância é um período tão efêmero, que sua retratação simplesmente não se fez necessária. Mas por quê? Não era a arte a tentativa de imortalizar aquilo que pereceria? A sociedade medieval tinha outros olhos sobre a criança. Esse pequeno, frágil e indefeso ser era o que mais se prejudicava com as péssimas condições de higiene da época. As taxas de mortalidade infantil eram altíssimas se comparadas com as de hoje em dia. Elas simplesmente morriam aos milhares. Essa frágil situação definia o relacionamento dos pais com sua progênie. Quanto mais filhos pudessem ter, maiores as chances de que alguns sobrevivessem. Isso faz parecer que a sociedade europeia medieval era totalmente insensível em relação á mortalidade infantil, se partirmos do ponto de vista contemporâneo, sim, pode parecer extremamente desumano. Porem, isso não significa que os pais da Idade Média não tinham afeto por seus filhos, ou mesmo que não os amassem. Para melhor entendermos, temos que nos atentar á relação do homem medieval com a morte. Essa relação era totalmente diferente da que existe atualmente. Existia sim lamentação e luto por ocasião da morte de uma criança, no entanto, a forma prematura e constante da morte na vida cotidiana do homem europeu, familiarizou-o de forma intima com essa tragédia humana. É claro que não estavam imunes ao pranto e a tristeza, no entanto, a relação construída entre o homem e a morte torna um tanto difícil para nossa compreensão essa aparente indiferença em relação á morte.

                Não é só a morte que afasta a infância do homem europeu. Através de coisas muito simples podemos perceber a negação de um período infante. Pode parecer muito simples, mas as vestimentas também são significativas para nossa compreensão. Quando bem pequenos, meninos e meninas eram vestidos em cueiros de forma idêntica, não se dava muito atenção a definição do sexo da criança. Era como se isso não importasse muito em um pequeno ser, do qual não se sabia se viveria por muito tempo. Nem mesmo o batismo em crianças tinha muita importância, essa preocupação irá surgir para além do século XII. As crianças que alcançassem a idade de sete anos, o que com certeza já poderia ser considerado uma grande vitória, passavam imediatamente ao mundo adulto, não existia um período transitório, hoje reconhecido como a adolescência, passando essa idade, a criança já era adulta, e consequentemente era tratada como tal. A difícil vida do homem medieval começava muito cedo.

                A concepção de família também gravitava em uma lógica muito diferente da contemporânea. A principio, elementos como a morte, a privacidade, a higiene entre outros, situavam a família dentro de uma esfera micro social muito particular ao período. A composição familiar das classes sociais não abarcava apenas membros consanguíneos. Era costume que se enviasse os filhos para aprender um oficio, ou para servirem na casa de algum senhor rico. Essa profissão que era passada ao jovem se decorria dentro de um longo processo de aprendizagem. Esse costume criava um lar heterogêneo, pois ao mesmo tempo em que enviavam seus filhos ao aprendizado, recebia-se também pupilos no lar. O jovem era enviado para aprender uma profissão, para desenvolver um oficio que exerceria, muito provavelmente, pelo resto de sua vida. As famílias das classes baixas habitavam geralmente um pequeno lar, essas moradias, na maioria das vezes, não dispunham de divisão de cômodos, um único cômodo era dormitório de toda a família, que muitas vezes era dividido com animais de criação, o que com certeza contribuía para a péssima higiene também tão responsável pela alta taxa de mortalidade infantil. A ideia moderna de individualidade não existia. O que se constituía de publico, ou privado, não era delimitado de forma clara.  As famílias mais abastadas constituíam de certa forma o mesmo modelo de lar. Porem, com casas muito grandes, eles abrigavam diversas pessoas de diferentes origens. Uma casa geralmente tinha um patrão e uma patroa, dezesseis ou dezessete empregados, aprendizes, governantas, visitantes ocasionais como cônegos, que às vezes passavam longas temporadas, entre outros serviçais. No entanto, engana-se quem achar que as classes elitizadas dispunham de uma maior privacidade, essa busca pelo individual não era definitivamente uma característica medieval. Os quartos não representavam a intimidade que hoje representam. Eles eram cômodos intermediários como qualquer outro, as pessoas o atravessavam-no para chegar a outro ambiente da mesma casa, não era costume a construção de corredores.

                É a vida escolástica que vai construindo uma diferenciação entre o adulto e a criança. Mas é interessante que a principio, como em qualquer outro ambiente social da Idade Média europeia, esse importante espaço social agrega indistintamente todas as fachas etárias, ou seja, não era um espaço que, a principio, deixava uma divisão bem definida. Nos textos medievais é muito raro encontrarmos alguma referência à idade dos alunos. Mesmo quando a Igreja Católica promove uma espécie de reforma para conter o avanço do ensino particular, limitando a este somente uma espécie de ensino primário, que já ameaçava o monopólio da Igreja, as diretrizes nunca foram em relação á idade, e sim, quanto ao conteúdo a ser ministrado. Nos contratos realizados pelos pais ao enviarem seus filhos á escola, quase nunca se menciona a idade, demonstrado assim, que a faixa etária não era de forma alguma um fator determinante. A preocupação com a idade só se tornaria relevante por volta do século XIX. Essa indiferença em relação á idade de companheiros de uma mesma turma, pode causar espanto numa sociedade tão ligada ao tempo, como a contemporânea. Antigamente o tempo nunca fora o cerne social como é hoje. Os que tinham o privilégio de cursar uma escola eram de imediato tratados como adultos. Nem é preciso entrar em detalhes sobre a educação das meninas. Estas não frequentavam os colégios, e em sua grande maioria não sabiam ler e nem escrever. Era muito comum ver moças da aristocracia, muito bem educadas, que não sabiam pronunciar de forma correta aquilo que liam. As que eram enviadas a conventos o faziam em caráter estritamente religioso. Mesmo assim é na instituição escolar que se começa, mesmo que timidamente, a aparecer uma distinção ente os jovens e os adultos. Quando o colégio não prolongava a infância, no resto do mundo nada mudava. “O estabelecimento definitivo de uma regra de disciplina completou a evolução que conduziu da escola medieval, simples sala de aula, ao colégio moderno, instituição complexa, não apenas de ensino, mas de vigilância e enquadramento da juventude”. (Ariès, Philippe. 1978).

                Em determinado momento, a indiferença em relação á idade começa a criar um certo incomodo dentro na instituição escolar. A instituição monástica quer proteger os estudantes da vida leiga, deseja-se proteger sua moralidade. Os estudantes não haviam prestado nenhum tipo de voto eclesiástico, no entanto, dentro dos colégios católicos eram protegidos da imoralidade mundana. É somente no período de estudos que estes são submetidos a esse modo particular de vida. O resto da sociedade continua totalmente indiferente em relação às idades, essa separação não os atingia enquanto crianças, e sim enquanto estudantes. É dentro dos colégios que essa separação começa a despontar.

                De forma não paralela, a partir do século XV começa-se a dividir as classes de acordo com sua capacidade, os mestres adaptam-se a capacidade de determinado grupo de alunos. Essa diferenciação franco - Flamenga é o ponto inicial de uma preocupação da particularidade que existe na infância e na Juventude. Lembremos que a diferença ainda não parte da idade do aluno, e sim da capacidade deste, a idade apenas de forma natural os ajuntava. Diferenças discrepantes de idade começavam a se tornar menos constantes, mas encontra-la dentro de um mesmo grupo, ainda não causava grande espanto. Esse ajuntamento de grupo conforme sua capacidade é o principio de uma percepção da existência de uma infância multifacetada. Durante muito tempo, o reconhecimento de dotes em crianças prodígio, foi sinônimo de sucesso garantido, isso implicava então a precoce entrada dessas crianças nos colégios medievais. Por volta do século XVIII essa precoce entrada de pequenos alunos ao ensino escolar, começa a causar certo incômodo á diligência escolástica. A partir disso são criadas salas especiais para crianças menores, não se tolera crianças tão jovens na companhia de outros alguns anos mais velhos. O mestre não é apenas responsável única e exclusivamente pelo ensino a ser transmitido. Ele é moralmente responsável por seu aluno. Isso envolve a salvação de suas almas. Percebe-se o desenvolvimento da noção de fraqueza da infância e também da responsabilidade moral que o mestre terá sobre seu pupilo.

 

 Ariès, Philippe. (1973) A história Social da Criança e da Família: Rio de Janeiro: Guanabara